Estilo de vida nos EUA, União Europeia, China e Japão impactam o mundo inteiro
RIO — Encontrado na região Norte do Brasil e nas Guianas, o macaco-aranha-preto é classificado como espécie vulnerável na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Segundo os autores de uma pesquisa publicada pelo periódico científico “Nature Ecology & Evolution”, a ameaça ao primata não pode ser entendida sem se relacionar o impacto de atividades econômicas, sobretudo a agricultura e a extração de madeira, para atender a consumidores finais nos Estados Unidos.
Usando de metodologia inovadora, que precisou de supercomputadores para cruzar dados sobre biodiversidade com informações de 15 mil indústrias de commodities consumidas em 187 países, os cientistas geraram mapas inéditos. Neles, é possível visualizar o grau de impacto, para espécies terrestres e marinhas, da exportação de produtos para quatro grandes mercados: Estados Unidos, União Europeia, China e Japão.
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Os autores do estudo, Keiichiro Kanemoto, da Universidade de Shinshu, no Japão, e Daniel Moran, da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega, detalham, por exemplo, o impacto do consumo americano sobre as espécies terrestres, incluindo uma surpresa no Brasil. Na pesquisa, eles indicam um alto impacto dos EUA em áreas como Sudeste da Ásia, partes da Europa, Madagascar, Canadá, América Central e, como era de se esperar, o Brasil. Porém, apesar de toda a atenção da comunidade internacional dedicada à Amazônia, eles alertam que é o Cerrado o bioma brasileiro com a biodiversidade mais afetada pela demanda do Tio Sam, sobretudo pelas atividades agropecuárias.
— A Amazônia tem uma biodiversidade mais rica, mas, na verdade, a indústria está mais presente no Sul, então, no final, o que pode acontecer é que há uma pressão maior onde as espécies aparecem em menor quantidade, mas a produção é mais ativa. O Brasil e a Amazônia estão entre as maiores reservas de biodiversidade no mundo, e também o país está crescendo de uma forma geral, tanto interna quanto externamente. Isto significa que o Brasil está envolvido em muitas ameaças à biodiversidade ligadas ao comércio — explicou Moran, em uma entrevista por e-mail ao GLOBO.
Bioma marinho pouco protegido no Brasil
Os mapas revelam cores — e situações — gritantes. A ameaça a espécies marinhas, por exemplo, tem a situação mais crítica do Sudeste da Ásia, atingindo países como Indonésia, Cingapura e Papua Nova Guiné. Os EUA e a União Europeia exercem, por meio do consumo de seus habitantes, uma intensa pressão naquela região, prioritariamente pela atividade pesqueira e de aquicultura, além da poluição decorrente das próprias indústrias. Nas Américas, o impacto dos EUA atinge especialmente a Nicarágua, a Costa Rica e Trinidade e Tobago.
Segundo o mapa elaborado pela pesquisa, o impacto do consumo estrangeiro é um pouco menor no litoral brasileiro, o que não quer dizer que as espécies marinhas não estejam ameaçadas por aqui — muito pelo contrário, alerta o diretor de estratégia costeira e marinha da Conservação Internacional, Guilherme Dutra:
— O Brasil não exporta muito. Mas internamente, temos a sobrepesca no nosso litoral, além da poluição de baías e rios e um percentual muito pequeno de área protegida, de 1,57% do total do bioma marinho, muito abaixo do que aquilo com o qual o Brasil se comprometeu em conferências das Nações Unidas — ressalta Dutra, acrescentando que a exploração no Sudeste de Ásia se deve, em boa parte, à pesca de grandes cardumes, como o atum.
Mesmo a produção de azeite provoca seus danos à biodiversidade de países. Kanemoto e Moran mostram que, na Espanha e em Portugal, espécies ameaçadas como o lince ibérico vêm perdendo habitat devido a hidrelétricas — que servem para a irrigação na agricultura e produção de bens como o azeite de oliva. Já no pequeno território de Papua Nova Guiné, a extração de ouro destinado ao Japão contribui para a vulnerabilidade do dugongo, um mamífero marinho da ordem do peixe-boi.
Para os autores, a responsabilidade pelas pressões ambientais devem ser compartilhadas ao longo das cadeias de comércio, e mapeamentos como estes podem facilitar o início de ações mais diretas entre produtores e consumidores. Kanemoto e Moran têm trabalhado juntos com cruzamentos como estes há anos, e desenvolveram, por exemplo, uma grande plataforma em 2012, que contabilizou ameaças a espécies por países: foi estimado que o consumo no Brasil, por exemplo, ameça 453 espécies em seu território e 111 no exterior — Argentina e Uruguai seriam os mais afetados. A demanda do Reino Unido ameaça 443 espécies no exterior, e a dos Estados Unidos, 1977.
“Pegadas” ambientais da poluição do ar ou da água também têm lugar na literatura científica. Em 2007, uma pesquisa publicada no periódico “Water Resources Management” calculou a “água virtual” — aquela usada para a produção — de bens e mercados consumidores pelo mundo. Novamente, os Estados Unidos lideram no impacto per capita. De quebra, os pesquisadores calcularam o volume de água necessário para a produção de bens como uma fatia de pão (40 litros) e uma camisa de algodão (2.000 litros).
Apesar do necessário alarme soando, já há iniciativas, inclusive no Brasil, para tornar a gestão de negócios mais responsável em toda a cadeia. Uma delas é a Certificação Life, que avalia e oferece metodologia para minimizar os impactos das empresas na biodiversidade. Corporações como a Itaipu Binacional e o Grupo Boticário já foram certificadas, e o Instituto Life está se preparando para implementar a metodologia em Paraguai, Chile, Argentina e Peru.
— A crise da perda de biodiversidade é avassaladora. As empresas falam muito sobre sustentabilidade, mas não detalham como fazer isso proativamente. É preciso ir além do bê-a-ba. Só cumprir a lei, por exemplo, não é mais suficiente — alerta a diretora-executiva do instituto, Maria Alice Alexandre.
O diretor-executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), Fabio Scarano, destaca a Moratória de Soja como exemplo importante no país. O acordo de 2006 entre sociedade civil, indústria e governo, válido até hoje, firmou o compromisso de empresas no sentido de não comprar grãos oriundos de áreas desmatadas, fruto de invasão de terras indígenas ou ainda do trabalho escravo na Amazônia. No final do ano passado, o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, propôs uma moratória semelhante para o Cerrado.
— A pressão dos Estados Unidos sobre o Cerrado me surpreendeu, não imaginava que fosse tão concentrada — destaca Scarano ao comentar o estudo publicado na “Nature Ecology & Evolution”. — A União Europeia, por exemplo, consome mais da metade do café no mundo, o que leva ao desmatamento no continente africano. Já se sabe que o café cultivado à sombra é melhor para o meio ambiente. A decisão está ao alcance de quem compra.
Scarano ressalta, porém, que a região amazônica é cenário de uma volumosa extração de madeira ilegal — e uma vez que o estudo da dupla de pesquisadores Kanemoto e Moran não considera o contrabando em seus mapas, até porque seria difícil mensurar esse problema, o impacto do consumo global no bioma pode, apesar de tudo, estar subestimado.
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