quarta-feira, 26 de abril de 2017

Chapada dos Veadeiros: a quem pertence essa pérola da biodiversidade?

Por Reuber Brandão
Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Mauricio Mercadante/Wikiparques.
Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Mauricio Mercadante/Wikiparques.

“Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas, para que não suceda de que eles as pisem com os pés e que, voltando-se contra vós, vos dilacerem." Mateus 7:6.

A região geomorfológica denominada Chapada dos Veadeiros é uma pérola da biodiversidade do Cerrado. Todos os estudos com biodiversidade realizados na região apontam para sua importância, sua singularidade e sua fragilidade. Ocorre, nos atuais limites da Chapada dos Veadeiros, ao menos 17 espécies de plantas ameaçadas de extinção, além de algumas das últimas populações de animais raríssimos no Cerrado, como o icônico pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), da onça-pintada (Panthera onca), do socó-boi-rajado (Tigrissoma fasciatum), da águia-cinzenta (Urubitinga coronata), da codorna-mineira (Nothura minor), do tico-tico-mascarado (Coryphaspiza melanotis) e de tantas outras espécies que estão desaparecendo junto com o bioma.


A Chapada dos Veadeiros também é muito importante do ponto de vista evolutivo. Diversas espécies de vertebrados, notadamente de anfíbios, ocorrem exclusivamente lá e apenas lá, podendo ser considerada um “ninho” para a formação de espécies ao longo da evolução. Por conta disso, é corriqueiro o registro de novas espécies, ainda não formalmente descritas em periódicos científicos especializados, como anfíbios, lagartos, roedores, peixes, dentre outros. A Chapada dos Veadeiros parece guardar seus segredos com cuidado, revelando-os apenas àqueles que buscam o conhecimento com dedicação.


A beleza cênica da região é singular e espetacular, sendo o principal motor do ecoturismo. As vastas paisagens, as centenas de cachoeiras e os diversos momentos de contato com a natureza, em suas diferentes dimensões e possibilidades, foram a força responsável por grande parte do crescimento econômico observado nos municípios da região nos últimos 30 ou 20 anos. Foi a força dessa natureza que colocou o norte de Goiás no mapa do mundo e colocou o mundo no norte de Goiás. Em 2016, apenas o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros recebeu aproximadamente 60 mil visitantes. É bem plausível que outro tanto tenha visitado a região sem ter visitado o parque, deixando recursos financeiros e levando saudades.


Se por um lado a visibilidade da Chapada dos Veadeiros tem movimentado economicamente e socialmente a região, por outro lado também está ameaçando a manutenção adequada dos valores ecológicos, evolutivos e sociais da região. A ampliação da Chapada dos Veadeiros não é uma birra de ambientalistas românticos e loquazes. É, acima de tudo, o reconhecimento, baseado em diversos estudos, de que o atual limite do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros é insuficiente para proteger adequadamente os atributos da Chapada dos Veadeiros. Essa demanda visa ampliar a proteção sobre ecossistemas frágeis e raros (e as espécies aí presentes), permitir a viabilidade ecológica de predadores de topo de cadeia (as quais precisam de paisagens amplas e bem conservadas para que suas necessidades ecológicas e demográficas), para garantir a conservação dos processos ecológicos e evolutivos que garantem o provimento dos serviços ecossistêmicos (incluindo aí o sequestro de carbono e o tamponamento dos efeitos das mudanças climáticas), a manutenção da diversidade biológica regional, proteger nascentes (466 segundo dados do ICMBio) e garantir a qualidade do meio ambiente às populações humanas.


“Com a ampliação, outros ecossistemas importantes serão inclusos nos limites, como as formações de mata seca que não estão presentes no parque e são um dos ambientes mais ameaçados hoje no Cerrado
Com a ampliação, outros ecossistemas importantes serão inclusos nos limites, como as formações de mata seca que não estão presentes no parque e são um dos ambientes mais ameaçados hoje no Cerrado. Visa também garantir a conectividade do Parque com outras regiões de grande relevância ecológica regional, como a Serra do Tombador (protegida parcialmente pela Reserva Natural Serra do Tombador), o território Kalunga, a Terra Indígena Avá-Canoeiro e as bacias dos rios Tocantinzinho e Paranã. Além disso, a ampliação irá reforçar a proteção dos ecossistemas associados aos cerrados de altitude da região, repleto de endemismos restritos.


Mesmo em um mundo tão atribulado, a humanidade está de olho (e depende) do que acontece na Chapada dos Veadeiros. Basta ver a mobilização e a sensibilização que movimentos sociais têm conseguido para a causa, incluindo aí o apoio de artistas conhecidos (e reconhecidos) pelo grande público. O título de Patrimônio Natural da Humanidade, recebido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 2001, só aconteceu devido ao processo de ampliação feito naquele ano, que culminou em uma área total de 235 mil hectares, conferindo à unidade de conservação a relevância mundial necessária para o reconhecimento dessa ação do governo brasileiro. Esse reconhecimento mundial deveu-se à singularidade da natureza da Chapada dos Veadeiros, ao seu papel como abrigo a espécies ameaçadas e/ou endêmicas e pela fragilidade da região frente às mudanças climáticas. O decreto que ampliou o Parque Nacional em 2001, anulado pelo STF em 2002, fragiliza o reconhecimento internacional da Chapada dos Veadeiros e a proposição de novos limites (como indicado pelo próprio STF em 2002), é urgente.


O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem feito sua parte, realizando acordos e negociações com diferentes setores dos governos Federal, do estado de Goiás e do município de Alto Paraíso de Goiás, visando viabilizar politicamente a ampliação do Parque Nacional. Até mesmo as consultas públicas já foram realizadas. A postura inicial do estado de Goiás foi positiva e propositiva. Interessantemente, documentos estaduais, como o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) Estadual do Pouso Alto, reconhecem que a ampliação do Parque Nacional é essencial para garantir a integridade ecológica da região e a preservação de ecossistemas frágeis e especiais no interior do que hoje é APA.     

   
O ICMBio se comprometeu a atender aos acordos realizados entre os diferentes setores governamentais e a demandas apresentadas durante as consultas públicas (realizadas em Setembro de 2015), especificamente excluir as Reservas Particulares do Patrimônio Natural do polígono de ampliação proposto, excluir as áreas onde exista atividade turística consolidada, áreas com atividades agropecuárias consolidadas, áreas onde são previstos assentamentos rurais, além da área pretendida como Estação Ecológica Estadual de Nova Roma.        


“Essa proposição do estado de Goiás fragmenta internamente a proposta e remove regiões de grande valor ecológico.
Parecia que finalmente a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros iria sair. Havia uma declaração pessoal do governador do estado apoiando a ampliação em um momento festivo, as negociações estavam caminhando e, mesmo em um clima de muita boataria e de atrasos inexplicáveis durante as negociações, havia otimismo entre pesquisadores e ambientalistas. No entanto, em dezembro de 2016, o estado de Goiás apresenta uma proposta onde concorda com 90 mil hectares de ampliação (e não os 156 mil do projeto original). Essa proposição do estado de Goiás fragmenta internamente a proposta e remove regiões de grande valor ecológico. Além disso, não há garantias de que a proposta, apresentada pelo estado, de incluir futuramente outras regiões aos limites do parque, será cumprida, visto as dificuldades de negociação ora existentes.


Devido a isso, ainda em dezembro de 2016, a Coalizão Pró-UCs, que agrega importantes organizações civis que atuam em áreas protegidas no Brasil, encaminhou mensagem ao gabinete do governador do estado de Goiás solicitando audiência com a presença de pesquisadores que atuam com a conservação do Cerrado. Esse pedido contava com a eventual boa vontade do estado em acolher os argumentos das organizações e de pesquisadores experientes, em defesa da proposta do ICMBio para a ampliação. Como resposta, essa demanda foi encaminhada ao Secretário do Meio Ambiente do estado de Goiás. Devido à evidente relevância dada pelo Gabinete à solicitação feita, e à conhecida posição do Secretário de Meio Ambiente de Goiás, essa reunião não aconteceu. Por outro lado, a Coalizão encaminhou petição ao atual presidente da República, solicitando a pronta ampliação do Parque.


Para o Secretário do Meio Ambiente do estado de Goiás, a proposta de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, nos seus 156 mil hectares, causará “grande impacto ao desapropriar 228 famílias de agricultores familiares, e não latifundiários ou especuladores”, como declara em notícia publicada pela Folha de São Paulo, em 08 de abril de 2017. 


Tal argumento está em clara oposição ao que afirma os estudos na região, conduzidos desde 2000 pelo ICMBio, muitos dos quais participei. Em nota publicada também pela Folha de São Paulo, em 11 de abril de 2017, o presidente do órgão, Sr. Ricardo Soavinski, contrapõe veementemente os argumentos do estado de Goiás e esclarece que a proposta de ampliação apresentada originalmente pelo ICMBio é baseada no levantamento de ocupações, utilizando imagens de satélite, inúmeras horas de sobrevoos e vistorias de campo, e afirma que haverá pouco impacto para agricultores na região. Segundo a nota, existem apenas 15 edificações na área pretendida para ampliação e que a maioria das terras são devolutas e destinadas à proteção na forma de unidades de conservação, como prevê a Constituição Federal e pela Lei Estadual nº 18.826/2015.
Foto: Vitor Augusto Maia/Wikiparques.
Foto: Vitor Augusto Maia/Wikiparques.


Já existem abaixo-assinados on-line onde é solicitado ao chefe do executivo federal a imediata assinatura do decreto de ampliação, onde os argumentos do estado de Goiás são ainda mais fortemente rebatidos. Ao que consta, a proposta de ampliação está sendo obliterada, em sua forma original, devido à demanda de ocupantes de terra específicos, que aguardam a finalização de processo discriminatório para receberem a doação dos espaços pretendidos em terras devolutas, visando uma “posterior” indenização pela desapropriação. Aparentemente, o estado de Goiás está pretendendo proceder à regularização fundiária de terras devolutas, inventando um mecanismo de pagamento de terras que, segundo o governo federal, é ilegal. E pior, parece estar atuando em prol do interesse individual às custas dos interesses da coletividade.

O que impede o governo de Goiás apoiar a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros? Aparentemente essa pérola, joia da biodiversidade, está ironicamente localizada em um estado que não aprecia, não compreende e, até mesmo, não a merece. Talvez não aprecie, porque natureza não é prioridade onde o agrobusiness é religião. Talvez não compreenda, por falta de clareza e coragem. Talvez não mereça, por não ter grandeza. Quem sabe, o grande problema, na verdade, é ter um enclave federal em uma região para a qual os interesses de Goiás eram outros?


Uma recente intervenção do Ministério Público estipulou que, até 2 de maio de 2017, o estado de Goiás deve dizer quais são as 228 famílias inseridas na área prevista para a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e dos proprietários que possuam “posse definitiva”. Como sempre, a lógica fundiária acaba afetando as propostas de criação ou ampliação de unidades de conservação. Os interesses individuais sobre a terra suplantam os interesses da conservação. Nada de novo sob o céu do caos fundiário brasileiro e da lógica do queromeu.

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