segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Brasil não cumpre legislação sobre qualidade do ar


Por Daniele Bragança
Evangelina Vormittag. Foto: Divulgação.
Evangelina Vormittag. Foto: Divulgação.

O monitoramento e controle da qualidade do ar é uma das leis que ficaram apodrecendo nas gavetas da gestão ambiental do país. Em 19 estados da federação, sequer se sabem quantos e quais poluentes são jogados na atmosfera. Desde 1989, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) determina a criação de uma "Rede Nacional de Monitoramento da Qualidade do Ar", que permitiria o "acompanhamento dos níveis de qualidade do ar e sua comparação com os respectivos padrões estabelecidos".

Um ano depois, uma outra resolução estabeleceu o Padrão Nacional de Qualidade do Ar, que vigora até hoje. Os valores estabelecidos pelo padrão são três e até quatro vezes mais permissivos que os valores de segurança definidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o que torna os lançamentos de poluição permitidos pela legislação brasileira um caso de atentado à saúde pública.

Há 9 anos, Evangelina Vormittag, médica e doutora em Patologia, trabalha com poluição atmosférica. Presidente do Instituto Saúde e Sustentabilidade, Evangelina participa, como sociedade civil, das reuniões que ocorrem no CONAMA e como consultora do Ministério Público Federal sobre o tema. Em entrevista a ((o))eco, ela desvenda o quadro do monitoramento da poluição do ar no Brasil.

Leia a entrevista:
((o))eco: Qual é o quadro do monitoramento do ar no país hoje?
Nós temos várias legislações desatualizadas e ultrapassadas sobre a poluição do ar. O Brasil tem uma série de desafios e obstáculos para o cumprimento daquilo que já existe como determinação. Muitas conquistas acabam não sendo, de fato, implementadas. Já é uma luta para conquistar uma lei, uma política e depois, elas não são cumpridas.

Quais leis não estão sendo cumpridas?
Posso te falar de alguns exemplos. O primeiro deles é o Programa Nacional de Qualidade do Ar, que foi determinado pela Resolução nº 005/1989.  E essa Resolução estabelecia a implementação do monitoramento de qualidade do ar nos estados. Hoje, nós só temos 8 estados que possuem o monitoramento de qualidade do ar [Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás e Bahia], embora nem todas as estações de monitoramento controlam todos os poluentes. Quando se fala especificamente de um poluente, a quantidade de estações é menor e muitas estações no Brasil são de origem privada, então, isso quer dizer que os órgãos ambientais estaduais utilizam estações privadas de empresas ou indústrias para monitoramento da qualidade do ar, ao passo que existem, principalmente em São Paulo, os equipamentos de monitoramento de qualidade do ar públicos.

Por que é ruim ser privado?
Porque as estações de monitoramento do ar em indústrias privadas têm uma finalidade que é o monitoramento de poluentes dessa indústria e ela tem um cunho mais para licenciamento, enquanto que a pública é alocada para medir locais que são mais importantes para o monitoramento de poluentes que podem trazer danos à saúde pública. Por exemplo, as públicas são determinadas em dias de grande tráfego, ou próximas de indústrias com vias de grande tráfego porque elas têm outra intenção, outro foco. Nem sempre aquela estação de monitoramento numa indústria vai englobar o que é de maior interesse da população.

Na Bahia o monitoramento é privado, eles utilizam estações privadas. No Rio de Janeiro, metade é privada e metade não é privada. Em São Paulo, todas as estações são públicas. O melhor monitoramento de qualidade do ar é em São Paulo.

E quantos estados fazem esse monitoramento?
Apenas 8 estados. Nem o Distrito Federal realiza o monitoramento de qualidade do ar. Somente 1,6% dos municípios são monitorados no Brasil e nós temos 252 estações de monitoramento com dados de 2014, enquanto que os Estados Unidos têm 10.000 estações e a Europa 7.500 estações. Nós temos muito poucas estações.

“Nem o Distrito Federal realiza o monitoramento de qualidade do ar. Somente 1,6% dos municípios são monitorados no Brasil”.
 
Então, uma vez que é feito esse diagnóstico, se pode preconizar e elaborar uma gestão adequada para esse monitoramento. O que acontece no Brasil é que a resolução CONAMA 003/90, que determina o padrão de qualidade do ar, foi publicada há 27 anos e é muito desatualizada. Há 12 anos, temos o guia do Organização Mundial de Saúde que preconiza padrões de qualidade do ar para serem seguidos de acordo com a salvaguarda da saúde da população. Se ultrapassarem os valores de concentração de poluentes no ar determinados pelo padrão da OMS, esse nível de concentração acaba por afetar a saúde da população exposta. E no Brasil os padrões adotados pelo CONAMA são muito altos.

Há uma divergência entre os dois padrões?
Sim. O que acontece é que a concentração de poluentes, mesmo que seja alta, muitas vezes está dentro do padrão adotado pelo Brasil, e por fim, nós temos uma qualidade do ar medida como normal, quando na verdade a população afetada sequer sabe que está sendo exposta a uma quantidade superior ao recomendado. Vou te dar um exemplo: o material particulado é um poluente nocivo para a saúde e o padrão de qualidade do ar no Brasil admite que você tenha uma concentração máxima de 150 mg/Nm³.

A Organização Mundial de Saúde preconiza 50 mg/Nm³ para não afetar a saúde da população. Nosso padrão tolera três vezes o valor da OMS. Agora imagina que uma determinada indústria emita 100 mg/Nm³, que já é um valor muito alto pelo padrão da OMS, o dobro do que deveria ser, mas no Brasil essa concentração é considerada normal. E assim é medido pelo órgão ambiental e informado para a população.

Essa informação sobre a diferença entre os padrões, muitas vezes, os gestores ambientais na ponta, nos municípios, desconhecem. Quem conhece são os órgãos federais e os órgãos estaduais de meio ambiente. Enquanto não houver a mudança do padrão, não vai haver de fato o conhecimento do problema. O padrão da Organização Mundial de Saúde não vai resolver o problema da poluição, mas ele é um instrumento para a gestão.

Há alguma tentativa de mudança do padrão dentro do CONAMA? Essa discussão está acontecendo? Como é que está isso agora?
Essa discussão já acontece há um tempo. Em 2014, formou-se um grupo de trabalho de revisão dos padrões de qualidade do ar, mas não houve consenso. As reuniões duraram o ano inteiro e teve que ser discutido na Câmara Técnica porque não se chegou a um consenso. Ocorre que não houve discussão na Câmara Técnica, ou seja, caiu no vazio. Em 2017, voltou-se a discussão e de novo não houve consenso e de novo foi para a Câmara Técnica.

Já houve reunião esse ano na Câmara Técnica?
“Os [estados] alegam que não têm condições de fazer uma gestão nos estados para se atingir os padrões de qualidade do ar”.
 
Já, houve uma primeira. Os estados, através dos seus órgãos ambientais estaduais, não querem que haja mudança no padrão para OMS e nem querem estabelecer prazo para mudanças. Eles alegam que não têm condições de fazer uma gestão nos estados para se atingir os padrões de qualidade do ar, ou seja, eles não têm condições de fazer uma gestão que regule a diminuição de poluentes nos estados. O Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Saúde e o Ibama entendem que têm que haver uma mudança no padrão para o da Organização Mundial de Saúde, mas não têm uma definição dos prazos.
A sociedade civil e o Ministério Público querem o padrão da OMS num prazo mais curto possível, eles sugerem nove anos, três anos entre cada meta intermediária, no máximo. O que acontece é que os estados e os órgãos federais não querem determinar quando haverá a mudança, porque a gente sabe que para chegar ao padrão da Organização Mundial da Saúde precisa de um prazo e precisa que a mudança ocorra em etapas. Mas os estados não querem nem determinar as etapas.  O que eles querem é primeiro avaliar se vai haver condição de chegar a esses padrões. Os órgãos federais defendem já um prazo mesmo que mais longo, porque eles acham que se não houver um prazo para a determinação, não vai se atingir os padrões que se quer propor. Então, isso é como se divide no CONAMA.

Os estados temem o quê? Perder indústria?
A indústria é outra quarta parte. Também não querem a determinação dos prazos. Os estados defendem a mesma coisa que a indústria. Para os estados atingirem os padrões da OMS, eles têm que diminuir as emissões e existe uma pressão econômica para que continue como está.

Para haver a redução de emissão, eles vão ter que se adequar, vão ter que fechar indústria até se adequarem. As emissões de poluentes tem tanto a fonte industrial quanto veicular. Então, é necessário que haja medidas nessas duas frentes. E o que a gente acredita é que se não for determinado o padrão, ninguém diminui nada. Não se faz uma gestão para diminuir como vem acontecendo há 27 anos.

Me fale um pouco sobre a inspeção veicular
“(...) as outras leis praticamente quem têm que cumprir são os estados porque é de ordem estadual a questão da proteção ambiental. Eles não cumprem (...)”.
 
Assim, existem outras leis conquistadas que também não são cumpridas, por exemplo, a inspeção veicular, ela foi determinada há vinte anos, todos os estados deveriam ter implementado a inspeção veicular, mas só o estado do Rio de Janeiro implementou. Outra coisa também, a lei de mudança do clima, a lei municipal em São Paulo determina que haja mudança da matriz energética da frota de ônibus até 2018 e não vai ser cumprida. E por que não é cumprida? Porque os responsáveis são os estados.

Com exceção desta frota municipal, as outras leis praticamente quem têm que cumprir são os estados porque é de ordem estadual a questão da proteção ambiental. Eles não cumprem, mas eles legislam sobre a própria causa, então, não há fiscalização, não há uma sanção, eles não fazem e o órgão federal também não fiscaliza. Antigamente, quem fiscalizava era o Ibama, mas ele não tem mais essa função e fica por isso mesmo.

Se o Ibama não tem mais essa atribuição, quem tem essa atribuição?
Ninguém. A única coisa que poderia obrigar o estado a fazer é o Ministério Público. Na verdade, quem defende essa questão no Brasil é o Ministério Público e a sociedade civil, o próprio governo não atua na questão da saúde da população. Os interesses são outros. Eles deveriam ter esse interesse, os órgãos ambientais foram criados para isso, mas não fazem. É praticamente uma improbidade administrativa. Aquilo que o órgão deveria cumprir, aquilo que ele tem como missão, o propósito de existir, ele não cumpre.

A Resolução de 1989 é federal, mas os estados não cumprem e não tem o que fazer, a não ser que o Ministério Público vá lá e questione e faça uma ação civil contra o próprio estado. É o que está acontecendo em Santa Catarina. Tem uma procuradora que fez uma ação civil porque o estado não cumpre uma série de legislações em relação à qualidade do ar. Santa Catarina tem polos industriais. A procuradora de Santa Catarina questionou duas leis que não foram cumpridas, uma é a inspeção veicular, que é uma lei já de vinte anos e de um programa de controle de poluição veicular. Ela nem questionou o monitoramento que não existe. Na verdade, o que ela está questionando é correto. Eles não têm a inspeção e nem o programa de manutenção de emissões. Mas antes disso, já existe um problema maior, que é não ter o monitoramento e também não tem o controle de fontes fixas industriais. Ela fez uma ação, digamos assim, com uma parte da história.

E a poluição industrial sequer entrou na história
“Antigamente, as indústrias estavam nas grandes cidades. Não estão mais, elas estão no interior. A região metropolitana de São Paulo tem doze cidades acima do nível de São Paulo e ninguém toma conhecimento desses casos.”.
 
A gente acha que como é Norte, Nordeste e Centro-Oeste, lá não tem ar poluído como São Paulo, mas não é verdade, porque tem polos industriais nesses estados e existe toda a fonte veicular.

Então, por exemplo, queimadas têm que ter monitoramento e diagnóstico. Para você ter uma ideia, em São Paulo, temos 30 municípios que monitoram a qualidade do ar. Desses 30, 12 estão com nível de poluição acima da cidade de São Paulo. Antigamente, as indústrias estavam nas grandes cidades.

Não estão mais, elas estão no interior. A região metropolitana de São Paulo tem doze cidades acima do nível de São Paulo e ninguém toma conhecimento desses casos. Cubatão é uma delas. O nível de poluição de Cubatão, hoje, é o nível que existe na China, quase cinco vezes o nível de São Paulo.
Agora, por que não se fala nisso? Porque não aparece, porque o padrão é muito alto, então, por uma série de situações que você vai somando, não se tem o real diagnóstico. Se uma mãe tem um filho com asma e quer saber onde ela pode morar com esse filho, ela não tem essa informação adequada porque o órgão ambiental não está fornecendo essa informação. O técnico ambiental da ponta, muitas vezes, não tem conhecimento sobre isso tudo.

Você diria que os índices de poluição do ar no país são uma grande incógnita?
Não. Porque existem oito estados que monitoram, então, os índices são conhecidos nesses estados. Não são conhecidos os dos outros. Praticamente oito estados de vinte e sete. Um terço: os quatro estados da região sudeste; no sul: Paraná e Rio Grande do Sul; Bahia, Goiás.

O estado do Rio de Janeiro é mais poluído, o ar é mais poluído do que o estado de São Paulo; em terceiro lugar, Belo Horizonte, depois Porto Alegre e depois Paraná. Hoje, temos Belo Horizonte, Porto alegre, Vitória e Curitiba. Nesses locais os índices de poluição são conhecidos.

Polos industriais são os mais poluídos. Cubatão, por exemplo, no estado de São Paulo, tem uma situação muito ruim de qualidade do ar. A gente vê as piores situações nos polos industriais, embora a fonte veicular esteja presente, seja importante para todos os estados. Aqui no Brasil, onde há os polos industriais, as refinarias de petróleo, as indústrias de cerâmica, têxteis, cimento, vidro, há maior concentração de poluição do ar.

Onde tem mais estações? É no estado de São Paulo?
Hoje é no Rio de Janeiro. Era São Paulo dois anos atrás, mas com a Copa o Rio de Janeiro teve que implementar várias estações de monitoramento.

E nos estados que não têm o monitoramento, vocês conseguem saber a situação deles?
Não. Onde não tem monitoramento, a gente não tem o diagnóstico de qual a qualidade do ar.

E qual o impacto dessa poluição na saúde pública?
“A poluição no estado de São Paulo, hoje, adoece mais que a Aids, duas vezes mais do que acidente de trânsito, três vezes mais que câncer de mama e seis vezes mais que câncer de próstata. A poluição é destruidora porque ela é invisível.”.
 
No estado de São Paulo, nós fizemos um estudo que se nada for feito, se a poluição se mantiver como é hoje, não alterar o padrão, a gestão, em quinze anos vamos ter 256 mil mortes e 1 milhão de internações por doenças relacionadas à poluição do ar, num custo de R$ 1,5 bilhão a preço de 2011 para a saúde.

 Então, o impacto em saúde é muito alto. A poluição no estado de São Paulo, hoje, adoece mais que a Aids, duas vezes mais do que acidente de trânsito, três vezes mais que câncer de mama e seis vezes mais que câncer de próstata. A poluição é destruidora porque ela é invisível. É difícil constatar que aquela pessoa morreu por causa da poluição do ar. Quais são os efeitos que levam mais à morte da população e adoecimento? É a doença cardiovascular, infarto do coração e o derrame, e doenças pulmonares, como o câncer de pulmão. Câncer de bexiga também está associado. Hoje o ar é líder ambiental em adoecimento e mortes no mundo. Ele já ultrapassou a falta de saneamento de água em termos de adoecimento.

Temos outro estudo que compara o padrão Conama com o Padrão OMS em São Paulo. Olhando os padrões que o estado de São Paulo utiliza, temos 1.100 dias com ultrapassagem dos padrões de qualidade do ar nas estações de São Paulo de acordo com a OMS, enquanto que os relatórios da Cetesb [A Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] relatam só 180 dias. Isso para mostrar o quanto ela deixa de relatar uma realidade de fato.

Se você for conversar com a Cetesb ela vai dizer que tem uma preocupação em relação a isso, que em 2013 eles fizeram uma resolução para atualizar os padrões em relação à OMS,  e é verdade. Em 2013, os estados de São Paulo e Espírito Santo fizeram uma revisão e um decreto para mudar o padrão de qualidade do ar para o da OMS, porém, não estabeleceram prazo para a mudança. Então, eles falam que fizeram. Fizeram, mas caíram no vazio de novo porque não tem prazo para a mudança.


E o que mudou do padrão, nas primeiras metas intermediárias foi muito pouco, a redução é muito pouca. A concentração máxima de 150 mg/Nm³ de material particulado que dei no exemplo hoje em São Paulo é de 120 mg/Nm³. É melhor que o Federal, mas é muito pouca a diferença e está muito longe do padrão da OMS, que é 50 mg/Nm³. E o Espírito Santo usou a mesma métrica que São Paulo.

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