Por Amelia Gonzalez, G1
A primeira cena, impactante e de uma beleza extraordinária, já deixa
muito clara esta experiência peculiar. Nela aparece uma mãe indígena com
um bebê no colo enrolado em manta e, ao lado, no chão, outro filho, já
mais velho. Venta forte e o grupo está na porta de sua oca, feita de
palha e madeira, tentando espantar o vento e a chuva que virá, com uma
vassoura nas mãos. A vulnerabilidade dos três chega a ser emocionante.
Assim como fica aparente a intimidade que eles têm com fenômenos
naturais.
É assim, também, quando a câmera acompanha jovens coletoras de sementes
pela floresta. Os protagonistas do documentário fazem parte da
Associação Rede de Sementes Xingu, uma rede de trocas e encomendas de
sementes de árvores e outras plantas nativas das regiões do Xingu e
Araguaia, a maior rede de sementes nativas do Brasil. A facilidade com
que tais jovens pegam sementes, com que vão desfolhando os mistérios do
ambiente que os cerca, é aparente. Muito, muito diferente do
conhecimento adquirido em livros e sites que norteiam pesquisas e
relatórios de cientistas e outros especialistas em meio ambiente
reunidos em fóruns e conferências do meio ambiente. Não estamos em tempo
de menosprezar nenhum saber, portanto a comparação não é
preconceituosa. Trata-se de uma constatação.
Está mais do que na hora de ouvir os indígenas para que eles possam
mostrar os sinais, cada vez mais claros, das mudanças do clima. E para
que eles possam ajudar a desenvolver políticas que, quem sabe, ainda nos
poupem de piores fenômenos do que a seca que lhes invade os dias.
Tawa, da Rede de Sementes, põe em palavras o que tem observado quando se lança em campo para fazer a coleta:
"Antigamente a gente seguia os sinais, mas não é mais como era", diz ele.
O jovem Oreme Ikpeng, da aldeia Moygu concorda:
"Quando a gente percebia que ia chover, a gente queimava a roça e, no
dia seguinte, já chovia. Hoje a gente segue esses sinais, mas a chuva
não vem. Queremos seguir as regras antigas, mas o tempo não acompanha
essas regras. Ou eu sigo a cultura tradicional, como é, ou eu me adapto à
nova cultura e aqueles sinais ficam só na história. Isto, para mim, é
triste", diz Ikpeng.
Já estive em algumas aldeias indígenas a trabalho, como repórter e, em
todas elas, procurei fazer perguntas sobre as alterações climáticas.
Para minha frustração, o que conseguia eram respostas evasivas ou muito
ensaiadas. E fiquei com a sensação de que os índios não gostam de falar a
respeito. Foi, portanto, uma grata surpresa ouvir os depoimentos no
documentário.
Dannyel Sá, que junto com Danilo Urzedo e Raíssa Ribeiro (todos da Rede
de Sementes) concebeu o projeto e a pesquisa, aceitou minha provocação
para refletir sobre esta minha percepção:
"A dificuldade é fazer a ponte com a linguagem acadêmica, de base
racional, das observações feitas, por exemplo, pelos cientistas do IPCC.
O que existe é uma incompatibilidade de linguagem porque os indígenas
notam mais do que todo mundo. Os sinais que eles usam são a própria
referência do tempo.
A floração de uma espécie indica que vai estar na
época do pracajá, uma estrela tal que aparece avisa que é época de
queimar. Todos esses sinais estão completamente desregulados, não tem
mais equivalente. Fazer uma tradução para nossa linguagem de forma que
dialogue com o nosso sistema é que é o ponto. O filme teve objetivo de
mostrar isso, explicando pela observação deles. Eles sabem que tem algo
errado, mas não sabem que tem uma discussão ampla, global, falando de
motivos para isso acontecer. Ou seja, essa dificuldade de eles falarem
das mudanças climáticas pode ser dificuldade de diálogo, de
perspectivas, de cosmologia", disse Dannyel, por telefone.
O território indígena do Xingu fica no coração do Brasil e foi a
primeira grande terra indígena demarcada pelo governo federal há 57
anos.
"São 2,8 milhões de hectares, oito mil pessoas que compõem uma
sociobiodiversidade única em uma região de transição entre Cerrado e
Amazônia”, diz o site do ISA,
organização que está com o povo xinguano desde 1994. O território está
preservado, mas há muita destruição em volta causada, basicamente, pelo
agronegócio, que provoca sérios impactos nos cerrados e nas florestas,
intensificando as mudanças climáticas e dificultando a produção agrícola
dos indígenas.
Num dos trechos do documentário, a câmera dialoga com índias coletoras
de sementes. Elas não têm dúvida de que o homem branco é que está
causando tanto mal à floresta, tanto desmatamento:
"Estamos sofrendo com a falta de alimentos que nós mesmos causamos e que os brancos também estão causando e com isso o sol está mais quente", diz uma das mulheres.
O Rio Xingu, que garante a sobrevivência daquele povo, cuja história
está imbricada com a dos indígenas, agora também está mudado. O canoeiro
que transporta as sementes coletadas conta que antigamente ele gastava
menos combustível em seu pequeno barco porque o caminho era mais direto,
não precisava fazer tantas curvas.
"Antigamente o rio era mais cheio e não precisava fazer curvas. Mas agora mudou tudo, está diferente, o rio está muito seco. As viagens noturnas são muito perigosas", diz ele.
São detalhes preciosos que fazem parte de uma vivência que não deve, não pode ser desprezada.
O documentário em curta-metragem foi premiado como melhor fotografia no
Festival dos Sertões e selecionado para mostras no Cinecipó – Festival
do Filme Insurgente e VI Congresso Latino-americano de Agroecologia. A
ideia do pessoal do ISA é que sejam criados grupos de pessoas
interessadas no tema para assisti-lo, gerando com isso um debate
construtivo.
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