Por Clarissa Beretz, jornalista –
Em tempos de mudanças climáticas, holandeses constroem o maior bairro flutuante planejado e autossustentável da Europa
Só podia ser coisa de holandês. Os habitantes do país que há quatro
séculos aumentou seu território (1/4 dele abaixo do nível do mar)
aterrando o que era água através de um sofisticado sistema de drenagem
por moinhos, diques, represas e canais, e que até hoje monitora o maciço
volume hídrico que entra e sai de sua extensão territorial, seguem
usando a tecnologia para se adaptar e viver com o aumento do nível do
mar por conta das mudanças climáticas.
Todo holandês, tem, portanto, uma relação íntima com a água. Só
Amsterdam abriga hoje cerca de 2.500 barcos adaptados como moradia pelos
canais da cidade. E o número só cresce, sobretudo com o preço dos
aluguéis em terra firme cada vez mais caros e disputados.
Dentro
deste contexto, há cerca de dez anos um grupo de amigos se uniu para
criar a maior vila flutuante, comunitária e autossustentável da Europa, a
Schoonschip. O projeto prevê 46 casas estruturadas – com sala,
quartos, cozinha, banheiros e espaço comunitário – em um braço do Rio
IJ, que serão habitadas por mais de 100 pessoas no bairro de
Buiksloterham, uma área da indústria naval decadente nos anos 80 cujos
galpões hoje abrigam ateliês de artistas, festivais e exposições.
A inspiração veio de uma das primeiras casas flutuantes
autossuficientes construídas no estaleiro NDSM, em Amsterdam-Noord, a
geWoonboot. Aberta à visitação, a casa-modelo foi criada justamente para
testar um modo de vida sustentável no ambiente aquático.
Os empreendedores – um grupo composto por arquitetos, artistas,
fotógrafos e ambientalistas – trabalharam juntos para criar uma
estrutura autossuficiente que contemplasse sistemas de filtro e
reaproveitamento de água, biodigestores, painéis fotovoltaicos, telhados
verdes e tudo o que lhes garantisse um modo de vida legitimamente
sustentável.
A arquiteta Marjolein Smeele desenhou a casa onde pretende morar com o
marido e os dois filhos. “Viver causando o menor impacto possível ao
mundo, é um sonho. Como arquiteta, uma obrigação. Quero mostrar aos
meninos que ser sustentável é auto-evidente. Nós ainda temos que pensar
sobre isso, espero que eles não o tenham”, explica.
Na
Schoonschip, as casas são fixas em grandes pilares submersos, um
mecanismo que acompanha o nível da água seja nos períodos de cheia ou
vazante do rio. E se alguém resolver “mudar de rio”, pode rebocar ou
içar sua casa até outro lugar.
“Este protótipo urbano pode ser feito em qualquer lugar e também
funciona para lazer ou hospedagem sustentável. Acreditamos em formas
alternativas de se viver e trabalhar nas grandes cidades. Os conceitos
que criamos são abertos e podem ser copiados por quem quiser”, diz
Tjeerd Haccou, coordenador do Space&Matter, escritório responsável
pelo projeto da área comunitária da Schoonschip.
Cinco protótipos-base foram criados para as casas, que vão de 100m2 a
200m2 e custam entre € 400 mil e € 800 mil. Um conjunto de regras
também foi estabelecido para que os moradores possam definir os espaços
internos junto ao arquiteto que escolheram para assinar a obra.
“Estamos supervisionando 20 arquitetos para garantir a segurança e a
qualidade do projeto. Gostamos de experimentar esse tipo de processo, de
design coletivo. Essa troca cria a verdadeira diversidade”, conta
Haccou.
Parte da Solução
A sustentabilidade em todas as etapas da Schoonschip é garantida pela parceria com 28 empresas
de consultoria em novas tecnologias, sustentabilidade, inovação e
financeira, a começar pelo banco Triodos, tido como pioneiro no “setor
bancário ético”, que concedeu uma linha de crédito para o financiamento
da obra.
A energia elétrica e o aquecimento das casas serão provenientes de
fontes 100% renováveis: painéis fotovoltaicos, pás eólicas construídas
pelos próprios moradores e biodigestores caseiros – que transformam
restos de comida e poda em biogás.
A
preocupação socioambiental também está na certificação dos materiais
utilizados na construção, na redução de resíduos, e na utilização de
métodos de baixo impacto ambiental. Recursos bastante simples também
fazem parte do processo, como a introdução de juta e palha no isolamento
natural entre as paredes de madeira, que se encaixam sem cola ou
adesivos. As primeiras sete casas ficaram prontas no início de dezembro e
estão sendo montadas no local.
“Precisamos mudar nosso modo de vida para diminuir as mudanças
climáticas. É a maior responsabilidade de nosso tempo: fazer parte da
solução”, reafirma Thomas Sykora, fotógrafo e empreendedor sustentável,
um dos mentores da comunidade Schoonschip.
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