Acumulam capital destruindo vidas, artigo de Gilvander Moreira
Acumulam capital destruindo vidas
Por Gilvander Moreira1
A
realidade dramática causada pela implantação da barragem e hidrelétrica
de Itapebi no Rio Jequitinhonha, no município de Salto da Divisa, na
região do Baixo Jequitinhonha, MG, e em todos os grandes projetos de
interesse do capital, nos recorda Marshall Berman, no livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar,
quando o personagem Fausto, após passar pela primeira metamorfose, que o
ensinou a viver e a sonhar, pela segunda metamorfose, que o ensinou a
amar, já na sua terceira metamorfose, ele aprendeu a construir e a
destruir. E, assim, Fausto planeja “esboçar grandes projetos de
recuperação para atrelar o mar a propósitos humanos: portos e canais
feitos pela mão do homem, onde se movem embarcações repletas de homens e
mercadorias; represas para irrigação em larga escala; verdes campos e
florestas, pastagens e jardins, uma vasta e intensa agricultura; energia
hidráulica para animar e sustentar as indústrias emergentes; pujantes
instalações, novas cidades e vilas por construir” (BERMAN, 2007, p. 79).
Interessa
a Fausto, acima de tudo, desenvolver-se economicamente, acumular
capital. Para isso ele fez um esforço hercúleo e se transformou em um
contumaz destruidor e criador. “Os projetos de Fausto vão exigir não
apenas um imenso capital, mas o controle sobre vastas extensões
territoriais e um grande número de pessoas” (BERMAN, 2007, p. 79).
Fausto recebeu “ilimitados direitos de desenvolver toda a região
costeira, incluindo carta branca para explorar quaisquer trabalhadores
de que necessitem e livrar-se de quaisquer nativos que encontrem no
caminho” (BERMAN, 2007, p. 80). Fausto “exorta seus capatazes e
inspetores, guiados por Mefisto, a ‘usar todos os meios disponíveis /
Para engajar multidões e multidões de trabalhadores. / Incitem-nos com
recompensas, ou, sejam severos, / Paguem-nos bem, seduzam ou reprimam!’”
(BERMAN, 2007, p. 81). Ele “está convencido de que são as pessoas
comuns, a massa de trabalhadores e sofredores, que obterão o máximo
benefício dessa obra gigantesca” (BERMAN, 2007, p. 82), mas no caminho
dos projetos de crescimento econômico de Fausto está um casal de
camponeses idosos que resistem para existirem como posseiros a longa
data em uma pequena propriedade. “Filemo e Báucia, um velho e simpático
casal que aí está há tempo sem conta. Eles têm um pequeno chalé sobre as
dunas, uma capela com um pequeno sino, um jardim repleto de tílias e
oferecem hospitalidade a marinheiros náufragos e sonhadores. Com o
passar dos anos, tornaram-se bem-amados como a única fonte de vida e
alegria nessa terra desolada” (BERMAN, 2007, p. 84).
Filemo
e Báucia, um casal generoso, humilde, inocente e resignado, mas “são
pessoas que estão no caminho – no caminho da história, do progresso, do
desenvolvimento: pessoas que são classificadas, e descartadas, como
obsoletas” (BERMAN, 2007, p. 85). Mas Fausto “se torna obcecado com o
velho casal e sua pequena porção de terra: “Esse casal de velhos devia
ter-se afastado, / Eu quero tílias sob meu controle, / Pois essas poucas
árvores que me são negadas / comprometem minha propriedade como um
todo. / […] Por isso nossa alma se debruça sobre a cerca, / para sentir
em meio à plenitude, o que nos falta” (11 239-52). Eles precisam ser
afastados para dar lugar àquilo que Fausto passa a ver como a culminação
do seu trabalho: uma torre de observação, do alto da qual ele e os seus
possam “contemplar a distância até o infinito”, soberanos sobre o novo
mundo que construíram (Cf. BERMAN, 2007, p. 85).
Fausto
oferece dinheiro ou outra pequena propriedade, mas ao casal idoso não
interessa dinheiro. Aceitar mudar seria como arrancar um pé de bananeira
do campo e tentar plantá-lo no asfalto. Morte na certa. O casal teima e
resiste, não aceita sair da terrinha. Assim, Fausto convoca Melisto e
seus “homens fortes” e ordena-lhes “que tirem o casal de velhos do
caminho. Ele não deseja vê-lo, nem quer saber dos detalhes da coisa.
Só o
que lhe interessa é o resultado final: quer que o terreno esteja livre
na manhã seguinte, para que o novo projeto seja iniciado. Isso é um
estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto, impessoal,
mediado por complexas organizações e funções institucionais. Mefisto e
sua unidade especial retornam “na calada da noite” com a boa notícia de
que tudo estava resolvido. Fausto, de repente preocupado, pergunta para
onde foi removido o velho casal — e vem a saber que a casa foi incendiada e eles foram mortos.
Fausto se sente pasmo e ultrajado, tal como se sentira diante de
Gretchen. Protesta dizendo que não ordenara violência; chama Mefisto de
monstro e manda-o embora.
O príncipe das trevas se vai, elegantemente,
como cavalheiro que é; porém ri antes de sair. Fausto vinha fingindo não
só para outros, mas para si mesmo, que podia criar um novo mundo com
mãos limpas; ele ainda não está preparado para aceitar a
responsabilidade sobre a morte e o sofrimento humano que abrem o
caminho. Primeiro, firmou contrato com o trabalho sujo do
desenvolvimento; agora lava as mãos e condena o executante da tarefa,
tão logo esta é cumprida.
É como se o processo de desenvolvimento,
ainda quando transforma a terra vazia num deslumbrante espaço físico e
social, recriasse a terra vazia no coração do próprio fomentador. É
assim que funciona a tragédia do desenvolvimento” (BERMAN, 2007, p. 85-86) (grifo nosso).
Esse
Fausto de Marshall Berman representa todos os donos de grandes
empresas, seus executivos e acionistas que, à distância, planejam e
implementam megaprojetos que visam a acumulação de capital, mas preferem
não ver o sangue de tantas vidas ceifadas em nome do ídolo mercado.
Belo Horizonte, MG, 03/9/2019.
Referência.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Obs.: Abaixo, vídeos que versam sobre o assunto apresentado, acima.
1 – Atingidos pela barragem de Itapebi em Salto da Divisa, MG: Irmã Geraldinha. 12/08/14
2 – Promotor do MP/MG, de Jacinto, MG: compromisso com os atingidos pela Barragem de Itapebi. 08/06/16
3 – Pescadores de Salto da Divisa, MG, exigem seus direitos pisados por empresas e barragem. 08/06 /16
4 – Vazanteiros de Salto da Divisa, MG, lutam pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
5 – Pedreiros de Salto da Divisa, MG, lutam pelos seus direitos pisados pela barragem. 08/06/16
6 – Em Salto da Divisa, MG, casas desabando pela barragem de Itapebi e extratores pisados. 08/06/16
7 – Lavadeiras de Salto da Divisa, MG, exigem seus direitos pisados pela Itapebi com barragem. 08/06/16
1
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG;
mestre em Ciências Bíblicas; licenciado e bacharel em Filosofia pela
UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; assessor da CPT, CEBI,
SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais
Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG. E-mail: gilvanderlm@gmail.com – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 06/09/2019
Acumulam capital destruindo vidas, artigo de Gilvander Moreira, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 6/09/2019, https://www.ecodebate.com.br/2019/09/06/acumulam-capital-destruindo-vidas-artigo-de-gilvander-moreira/.
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