sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Sem uma visão sistêmica, a urbanização das cidades se alastra como mancha de óleo

Sem uma visão sistêmica, a urbanização das cidades se alastra como mancha de óleo


Sem uma visão sistêmica, a urbanização das cidades se alastra como mancha de óleo. Entrevista especial com Angélica Alvim

Por: João Vitor Santos | IHU
Quando ocorre um vazamento de óleo, a viscosidade do líquido faz com que ele se alastre e vá sufocando tudo que encontra pela frente, seja na água, seja na terra. E, na área contaminada pelo óleo, a vida se estabelece de forma precária. Essa metáfora é ilustrativa e revela como a professora, arquiteta e urbanista Angélica Alvim compreende o crescimento desajustado de cidades brasileiras, o que chama de urbanização dispersa. “Os problemas da urbanização dispersa têm muito a ver com os problemas das cidades brasileiras, que crescem de forma espraiada, como se fosse uma mancha de óleo, sem planejamento”, reitera, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ela, mais do que projeto de urbanização, é preciso um ajuste de foco, numa visão mais sistêmica e integrativa com a realidade da falta de moradia, de moradias precárias e a necessidade de preservação ambiental. “Precisamos trabalhar de forma mais próxima das realidades, não é possível darmos as costas para a participação dessa população. Esta população está lá [em áreas de preservação], então como vamos trabalhar para ela morar melhor sem degradar o meio ambiente? Esse é o primeiro ponto”, tensiona.


Angélica observa que as pessoas ocupam áreas de preservação por pura falta de planejamento e política habitacional. “É preciso ter uma visão sistêmica sobre o problema, é preciso ofertar habitação em áreas consolidadas, habitação a preços acessíveis, onde há infraestrutura”, sugere. Ou seja, sem a oportunidade de ocupar espaços e áreas já urbanizadas, muitas pessoas são forçadas a avançar sobre locais de preservação ambiental. A professora ainda aponta que, quase na mesma proporção em que as pessoas são empurradas para áreas periféricas e de preservação, há um esvaziamento populacional de áreas mais centrais. É o caso de centros de grandes cidades, como São Paulo e mesmo Porto Alegre, que pouco servem à moradia.


“Não adianta proibir urbanização em áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas, próximas às represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas de interesse social nas regiões centrais”, aponta.

Entretanto, a professora diz que também é preciso pensar nas áreas já degradadas e que abrigam moradias extremamente precárias. Para ela, a solução não é simplesmente desocupar, retirar as pessoas dali. “É preciso políticas públicas integradas, em que habitaçãodesenvolvimento urbanosaneamento e as políticas de transporte e mobilidade sejam feitas de forma integrada para que essas pessoas consigam estar ali sem degradar o meio ambiente e, ao mesmo tempo, as pessoas que precisarem ser removidas não percam essas relações que têm com o local”, sugere. Para ela, isso passa até por urbanizar algumas dessas áreas já degradadas, “mas uma urbanização que articule infraestrutura de saneamento ambiental, como também dignidade da habitação e infraestrutura verde”.

Na entrevista, Angélica ainda reconhece o grande papel de movimentos de luta pela moradia, mas aponta que é necessário também trabalhar o pensamento sistêmico nesses grupos. “O processo dos movimentos de moradia é extremamente legítimo, eles precisam ser cada vez mais parte de um trabalho articulado entre estado e município, e a universidade tem um papel a cumprir, contribuindo com a capacitação desses movimentos”, analisa. Um caminho, segundo ela, é qualificar esses movimentos com assistência e formação que trabalhem não só pela luta por uma casa digna, mas também pela preservação do meio ambiente nas cidades. “Assessoria técnica é uma saída importante, porque ela não precisa apenas ser vista como assistência técnica em relação à habitação, mas pode contribuir para uma maior capacitação dos movimentos de moradia em relação ao problema habitacional entendido de forma mais ampla, em que a questão ambiental é parte desse conjunto”, completa.

Angélica Tanus Benatti Alvim é arquiteta e urbanista, graduada pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, mestra e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo – USP. Atua como professora adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também é diretora. Ainda é docente do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Entre suas publicações mais recentes, destacamos “Envelhecimento ativo e saudável nos espaços públicos de áreas protegidas: o Parque Linear Cantinho do Céu em São Paulo” (Oculum Ensaios (PUCCAMP), v. 16, p. 128-145, 2019) e “Memórias e atualidade Espaços públicos da área central de Presidente Prudente” (Minha Cidade, v. 222.01, p. 1-3, 2019).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como analisa a gestão e manutenção de áreas ambientalmente protegidas na Região Metropolitana de São Paulo? E por que muitas dessas áreas acabam dando origem a assentamentos precários?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Em relação à gestão das áreas protegidas da Região Metropolitana de São Paulo, precisamos entender um pouco a complexidade do tema. A Região Metropolitana de São Paulo tem 39 municípios, e 39% desse território está em áreas de proteção dos mananciais, que é uma região protegida por lei desde meados dos anos 1970. Essa é a grande área protegida da Região Metropolitana de São Paulo.

Depois, temos algumas Unidades de Conservação e Áreas de Proteção Ambiental – APA, como, por exemplo, os parques estaduais e municipais, mas principalmente os estaduais, como o da Cantareira, do Guarapiranga, entre outros. Mas são áreas que têm a gestão, em geral, do Estado através da Secretaria do Meio Ambiente.

Área de Proteção de Mananciais tem várias sub-bacias que são protegidas por lei, que hoje são de gestão do Estado, mas também com forte participação dos Comitês de Bacia, sobretudo do Comitê de Bacias do Alto Tietê e dos Subcomitês de Bacias.

Mapa: Bacias do Alto TietêMapa: Bacias do Alto Tietê
 
Eu avaliaria a gestão dessas áreas como falha. Por mais que tenhamos legislações extremamente importantes e que definem um processo de gestão, inclusive na área de proteção de mananciaiscompartilhada, acredito que ainda há várias lacunas a serem vencidas. Estamos diante de um processo de urbanização que muitas vezes esbarra no processo de proteção dessas áreas, mas, ainda assim, encontra brechas para ocupar essas regiões, às vezes de forma bastante predatória.

Esses assentamentos precários têm a ver com o processo histórico de urbanização da Região Metropolitana de São Paulo. A Região Metropolitana paulista, durante muitas décadas, foi uma área que sempre atraiu muita população de todo o Brasil. Se olharmos os anos 1960 e 1970, por exemplo, com a forte industrialização que ocorreu na região e com a ausência de oportunidades em outras partes do país, veremos que a região metropolitana de São Paulo é a que teve o crescimento populacional em maior ritmo. Esse processo de ocupação e urbanização intenso, principalmente a partir dos anos 1950 e 1960, com a forte urbanização de áreas frágeis ambientalmente, deu origem a uma precariedade nessa urbanização, dissociado de um processo de planejamento. Não é que não houvesse um Plano Diretor, principalmente no município de São Paulo, e legislações, como a Lei de Proteção de Mananciais, que vão buscar impedir essa urbanização, mas é muito difícil sua implementação.

Urbanizar áreas de esvaziamentos

Ou seja, não necessariamente a urbanização vai respeitar a legislação. Mas, se a legislação tem tanta importância assim, como atuar sobre esse território? Seria necessário não apenas ter legislações que visem coibir a urbanização de determinadas áreas – como são as leis que criam as nossas áreas de proteção ambiental –, mas legislações que deem a oportunidade de urbanizar as regiões que vão se esvaziando, como as áreas centrais, por exemplo. Não adianta proibir a urbanização em áreas mais frágeis, que estão nas regiões periféricas, próximas às represas, e não dar oportunidade de criar conjuntos e áreas de interesse social nas regiões centrais.

Nos anos 1970, por exemplo, houve a criação de áreas de habitação social em regiões distantes, como na Zona Leste de São Paulo, onde também há áreas frágeis ambientalmente. No ABC Paulista, por exemplo, temos toda a ocupação das indústrias no eixo Anchieta-Imigrantes, principalmente em São BernardoSanto André e Diadema. Não por acaso esses municípios são os mais afetados por áreas protegidas ambientalmente, por isso há um congelamento de diversos espaços; contudo, é lá que estão as oportunidades de emprego.
Mapa: Eixo Anchieta-ImigrantesMapa: Eixo Anchieta-Imigrantes
 
É um ritmo de urbanização tão intenso que a legislação e o processo de planejamento não dão conta e, ao mesmo tempo, não há políticas públicas de fato efetivas para fazer com que se tenha políticas habitacionais em locais mais centrais nesses municípios e em São Paulo, bem como políticas públicas que olhem para essa realidade de urbanização e busquem minimizar o problema, oferecendo moradia digna para essas pessoas em áreas protegidas ou próximas dessas áreas.

IHU On-Line – Como é possível resolver essa equação: necessidade de urbanização e manutenção das áreas de preservação?

Angélica Tanus Benatti Alvim – Algumas têm urbanização e outras são ocupadasprecariamente, precisando ainda de muito investimento do Estado. Agora, não podemos negar que essas pessoas estão lá, por isso é preciso fazer algo que concilie a urbanização de forma sustentável — esse é um grande desafio — com a preservação e a recuperação dessas áreas. É preciso entender que o problema não é da população de baixa renda e das ocupações precárias, é uma situação muito complexa, porque é um conjunto de fatores que está associado a uma ausência de políticas públicas que por muitos anos não olharam de forma atenta para esses processos, especialmente os processos que se dão nas áreas consolidadas.

O que acontece com as áreas consolidadas? Existe hoje uma valorização exagerada e intensa dessas áreas, então só quem pode pagar pode morar nas áreas consolidadas. É muito difícil conseguir pagar moradia em áreas propícias à urbanização. Houve muitos investimentos de infraestrutura, de empregos, de circulação e mobilidade nas áreas consolidadas, enquanto nas regiões frágeis, mais periféricas, onde há áreas de preservação ambiental, legislações proibiram a ocupação e a infraestrutura de saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, não havia controle e fiscalização dessa população que foi se instalando ali. Havia, inclusive, uma conivência do Estado; por muitos anos os municípios foram coniventes em razão dos votos e de questões políticas.

É preciso ter uma visão sistêmica sobre o problema, é preciso ofertar habitação em áreas consolidadas, habitação a preços acessíveis, onde há infraestrutura – Angélica Alvim

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