Ararinhas-azuis: o retorno tão esperado é envolto em denúncias e falta de transparência
O dia 3 de março foi uma data histórica para a pequena cidade de Curaçá, na Caatinga baiana. Uma grande celebração marcou a chegada, depois de duas décadas, de 52 ararinhas-azuis (Cyanopsitta spixii). Foi a volta para casa dessa espécie endêmica da região, um dos símbolos da luta contra o extermínio da fauna no Brasil. Vítima do tráfico de animais silvestres, a ave havia sido declarada oficialmente extinta na natureza em 2000.
Os indivíduos trazidos para a Bahia (26 machos e 26 fêmeas) são resultado de um bem-sucedido programa de reprodução em cativeiro realizado por uma organização da Alemanha, a Association for the Conservation of Threatened Parrots e. V. (ACTP), que assinou uma parceria com o governo brasileiro. O evento foi considerado tão importante que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, esteve em Petrolina (PE) para receber as ararinhas, ao lado do proprietário da ACTP, o alemão Martin Guth, e outras autoridades brasileiras.
A repatriação das aves faz parte do Plano de Ação Nacional para a Conservação da Ararinha-azul, coordenado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade – ICMBio, órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Duas outras entidades estrangeiras integram também o programa, a Al Wabra Wildlife Preservation, do Catar, e a Pairi Daiza Foundation, da Bélgica. Esta última está ligada a um zoológico de mesmo nome onde estão expostas quatro ararinha-azuis, as únicas da Europa que podem ser vistas pelo público.
O destino das aves, por ora, é o centro de reintrodução construído especialmente para elas em Curaçá. De acordo com o ICMBio, a previsão é que as ararinhas “alemãs” só sejam soltas na natureza em 2021, após um processo de adaptação.
Quando isso acontecer, será nas duas unidades de conservação criadas em junho de 2018 pelo governo federal, dedicadas exclusivamente ao programa de reintrodução e proteção da espécie: o Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha-Azul, com uma área de 29,2 mil hectares, e a Área de Proteção Ambiental da Ararinha-Azul (90,6 mil hectares).
Caixas com as 52 ararinhas-azuis que vieram para o Brasil passam
pela inspeção no aeroporto de Berlim
pela inspeção no aeroporto de Berlim
A origem do dinheiro
Todos os custos do programa de reintrodução e construção do Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha-Azul foram bancados pela Association for the Conservation of Threatened Parrots. Segundo Martin Guth, o valor da obra do centro foi de US$ 1,4 milhão e ele calcula que, anualmente, serão gastos US$ 180 mil para manter em operação o projeto, que será coordenado por Cromwell Purchase, diretor científico e zoológico da ACTP, juntamente com a equipe do ICMBio.Na Alemanha, a associação fundada em 2006 tem o registro de uma organização não-governamental. Segundo informações obtidas junto à Bundesamt für Naturschutz (BfN), Agência Federal para a Conservação da Natureza da Alemanha, foi reconhecida pelas autoridades regionais competentes como um zoológico.
Todavia, na prática, a ACTP não funciona como um. Não existe visitação aberta ao público. No local, a pouco mais de uma hora de Berlim, não há estacionamento para visitantes e o acesso por transporte público é limitado.
Em uma reportagem publicada em julho de 2019, pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung, intulada “A ararinha-azul é o papagaio mais valioso do mundo. Um criador alemão com reputação duvidosa quer trazê-lo de volta à natureza. Ele pode ser confiável?”, a jornalista, que esteve pessoalmente na sede da associação e entrevistou Guth e seu sócio, o corretor imobiliário Jürgen Dienst, afirma que a legislação alemã determina que, para ser considerado um zoológico, um estabelecimento precisa receber visitas no mínimo sete dias por ano – é o que acontece ali, geralmente em tours guiados com estudantes de escolas.
Para se manter financeiramente, a ACTP afirma, em seu site, que depende de doações. Entretanto, não há nenhuma menção na página a quem seriam essas pessoas físicas e jurídicas. A única empresa citada, como “parceira exclusiva”, é a companhia Deli Nature, da Bélgica, que comercializa ração animal.
Em entrevista por e-mail à Mongabay, perguntado sobre a identidade dos doadores, Martin Guth diz que “os nomes de todos os nossos grandes doadores e apoiadores podem ser encontrados em cada um dos nossos posts no Facebook. Eles não são apenas alemães”.
Entre o final de fevereiro e dezembro de 2019, só há uma menção a parceiros na timeline da ACTP. Estão ali a Deli Nature, mencionada acima, a Pairi Daiza e a Knutis Shop – Generalvertretung Roudybush-Pellets Deutschland, também do setor de rações.
No caso da fundação belga Pairi Daiza, por exemplo, em seu site aparecem como apoiadores companhias multinacionais como DHL e Unilever, entre outras.
Vale ressaltar que a ACTP possui uma das maiores coleções particulares de psitacídeos em risco de extinção no planeta. Até pouquíssimo tempo atrás, tinha em mãos mais de 90% das ararinhas-azuis em cativeiro do mundo, além de indivíduos da espécie de arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), também brasileira), o papagaio-de-são-vicente (Amazona guildingii) e o papagaio-de-santa-lúcia (Amazona versicolor).
Para Paul Reillo, fundador e presidente da Rare Species Conservatory Foundation e diretor da Tropical Conservation Institute, nos Estados Unidos, uma das regras de ouro para organizações não-governamentais é a transparência total. “De onde vem o dinheiro da ACTP? É preciso que fique claro quem são seus doares, como o dinheiro é investido, além de ser essencial que se tenha acesso a um inventário completo de suas aves – sexo, idade, número de nascimentos e mortes, e os processos de importação e exportação”.
No site também não há nenhuma referência sobre quem são seus profissionais e sua qualificações científicas, nem se há um conselho administrativo ou sequer o endereço da associação.
Biólogo, geneticista ecológico e engenheiro ambiental, Reillo tem sérias ressalvas ao trabalho da ACTP e de Martin Guth. E já externou isso diversas vezes em entrevistas a diferentes publicações. Segundo ele, outros membros da comunidade de conservação internacional também vieram a público demonstrar suas críticas ao criatório alemão.
A ararinha-azul é uma das aves
mais raras do mundo: estima-se que existam apenas 177 indivíduos em
cativeiro no mundo. Na natureza, a espécie está extinta desde 2000
Denúncias e acusações
Não é apenas a falta de clareza e transparência sobre a origem do dinheiro que financia a Association for the Conservation of Threatened Parrots e. V. que tem causado incômodo entre os especialistas da área.Em dezembro de 2018, o jornal britânico The Guardian publicou uma minuciosa reportagem investigativa sobre Guth e a ACTP, com grande repercussão mundial. Durante seis meses os jornalistas Lisa Cox e Philip Oltermann fizeram um levantamento sobre a vida pregressa do alemão, com graves suspeitas sobre seu trabalho, entre elas o possível envolvimento com o tráfico de animais silvestres e o uso da associação para lavagem de dinheiro de máfias europeias.
Com o título de “A legitimate zoo? How an obscure German group cornered global trade in endangered parrots ” (“Um zoológico legítimo? Como um obscuro grupo alemão encurralou o comércio mundial de papagaios ameaçados”), a matéria revela que, na década de 1990, quando tinha cerca de 25 anos, Guth ficou cinco anos na prisão por sequestro e extorsão.
Ainda segundo os jornalistas, pelo menos um dos funcionários que trabalhava na ACTP, naquela época, foi acusado de envolvimento com o tráfico ilegal de aves (estima-se que esse mercado movimente aproximadamente US$ 42,8 bilhões no mundo, perdendo apenas para o de drogas e de armas).
Não é só isso. As primeiras ararinhas-azuis que Guth comprou para a sua coleção foram adquiridas de um criador suíço, a quem ele teria pago 15 mil euros. O homem em questão estaria ligado a dois conhecidos membros de uma máfia de Berlim, conhecida por organizar assaltos, ter envolvimento com o tráfico de drogas, além de usar métodos como chantagem. Em uma foto que pode ser encontrada na internet, o criador alemão pode ser visto junto a Arafat Abou-Chaker, um dos chefes da quadrilha.
Guth afirma que não tinha conhecimento da ligação da pessoa que vendeu as aves a ele com a máfia. Mas não nega seus erros no passado. Na entrevista por e-mail à Mongabay, disse que prefere manter sua vida particular separada de seus projetos e assegura que sua ficha criminal está limpa.
“Uma versão traduzida desse documento foi fornecida imediatamente ao governo do Brasil e ao governo australiano após a publicação do artigo do The Guardian. O governo brasileiro solicitou uma prova de registros limpos como condição para continuar o programa e assinar um novo contrato com a ACTP. Ele foi assinado em 7 de junho de 2019”, revela.
O proprietário da ACTP menciona o governo da Austrália porque a associação também possui parcerias com outros países, além do Brasil – não sem polêmicas, acusações e denúncias.
Com autorização dos australianos e do Bundesamt für Naturschutz, Guth importou mais de 200 espécies de aves nativas, ameaçadas de extinção, desde 2015, alegando que seriam exibidas publicamente. Em 2018, o membro do parlamento Warren Entsch alertou sobre a exportação, demonstrando preocupação que a ACTP não agia como um zoológico e se comportava mais como uma coleção privada.
Segundo a reportagem do The Guardian, alguns dos papagaios australianos teriam sido colocados à venda na internet, por valores que variavam entre 95 mil e 180 mil euros por um casal.
A Austrália não foi o único país a enviar aves endêmicas e em risco de extinção para a Alemanha. Santa Lúcia e São Vicente, países insulares do Caribe, também fazem parte da lista, assim como Dominica, que em 2018 mandou dois papagaios-imperiais (Amazona imperialis) e dez papagaios-de-colar-vermelhos (Amazona arausiaca) para a sede da ACTP.
Poucos meses antes, em setembro de 2017, o furacão Maria tinha passado pela região e atingido a ilha. A alegação para a retirada dos papagaios foi de que eles não estavam mais seguros.
Em uma carta enviada a autoridades da área ambiental e à BfN, mais de 40 cientistas e pesquisadores internacionais afirmaram que a expatriação dos pássaros não havia sido permitida pelos representantes da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Silvestres Ameaçadas de Extinção (Cites), nem pelo Forestry, Wildlife and Parks Division da Dominica – que nem mesmo tinham sido consultados sobre a transferência.
“Não havia uma emergência para justificar a remoção dos papagaios da Dominica. Todas essas aves eram selvagens e já mantidas em segurança em cativeiro, portanto não havia justificativa razoável para agilizar essa transferência ou violar muitos requisitos legais básicos para tal ação. Todos haviam sobrevivido ao furacão Maria, estavam sendo atendidos por uma equipe de assistência veterinária reconhecida internacionalmente e eram considerados saudáveis”, escreveram os cientistas.
Até hoje, os papagaios-imperiais e os papagaios-de-colar-vermelhos não foram devolvidos a Dominica.
Há uma petição internacional no site Care2, que já conta com 55 mil assinaturas, pedindo que a Bundesamt für Naturschutz faça uma investigação sobre Martin Guth e todas as suspeitas em relação à ACTP. Entretanto, a agência federal alemã garantiu que a associação é fiscalizada regularmente pelas autoridades responsáveis.
“Essas verificações são direcionadas à prova da aquisição legal de aves protegidas, a criação e venda legal de tais aves, de acordo com os regulamentos internacionais relevantes para conservação de espécies”, afirmou Ruth Birkhölzer. “Não foi observada nenhuma irregularidade. Após a publicação de artigos no The Guardian e uma denúncia criminal, os procedimentos de investigação criminal foram conduzidos pela polícia. No entanto, esta investigação foi encerrada sem suspeita de ações ilegais da ACTP ou do Sr. Guth”.
Martin Guth (primeiro à esquerda) e
o então Ministro do Meio Ambiente, Edson Souza (de gravata) durante
visita à sede da ACTP, na Alemanha
Medo de represálias
Paul Reillo é uma das poucas pessoas entrevistadas para esta reportagem que concordam em ter seu nome publicado. Outros criadores e biólogos do Brasil só falaram com a condição de se manterem no anonimato, alegando que o empresário alemão é perigoso, tem ligação com a máfia ou que podem sofrer represália do governo brasileiro, com cortes financeiros em seus projetos.Um desses entrevistados afirmou que, nos últimos anos, alguns criadores científicos (autorizados pelo governo a ter projetos de reprodução em cativeiro de espécies em risco de extinção) sofreram pressão dos órgãos governamentais brasileiros para que as ararinhas-azuis fossem enviadas à ACTP, na Alemanha. A fonte disse ainda que havia um criador bem próximo de ter uma bem-sucedida reprodução de filhotes, mas que, mesmo assim, precisou mandar as aves para a Europa.
Questionado em 2018 sobre o envio desses indivíduos e a razão pela qual a reprodução em cativeiro não foi feita no Brasil, o ICMBio deu a seguinte resposta, através de e-mail de sua assessoria de imprensa:
“A troca de espécimes para fins de reprodução e variação genética da população em cativeiro está prevista no programa de cativeiro e seguem protocolos e critérios técnicos para pareamento, e da mesma forma, animais foram enviados da Alemanha para o Brasil. Em ambos casos as trocas foram feitas atendendo as recomendações dos consultores de manejo.
Infelizmente os criadouros no Brasil até o momento não tiveram sucesso em reproduzir a espécie em números significativos. Desde o início do Plano de Ação Nacional para Conservação da Ararinha-azul, em 2012, apenas dois nascimentos foram registrados no Brasil em 2014, ao passo que os criadouros da Alemanha e Catar obtiveram taxas reprodutivas que permitiram o aumento da população de 79 para 158 indivíduos”.
Em maio de 2019, dois filhotes de Cyanopsitta spixii nasceram em Fazenda Cachoeira, em Minas Gerais, um criadouro certificado pelo governo.
O número exato de ararinhas-azuis existentes no Brasil e em poder da ACTP não é claro. Em outubro do ano passado, o ICMBio declarou que eram 177 Cyanopsitta spixii no mundo – 22 em solo brasileiro e as demais na Alemanha.
É preciso lembrar que, em 2014, o Sheikh Saud bin Mohammed al-Thani, que estava a frente da Al Wabra Wildlife Preservation, no Catar, uma das parcerias do programa brasileiro de reintrodução da espécie, morreu.
O bilionário, apaixonado por aves, possuia nada menos do que 120 ararinhas-azuis. Após seu falecimento, todas elas foram “emprestadas” para Guth. Durante esse tempo, até a volta das 52 aves ao Brasil, o alemão esteve em posse de quase todas as ararinhas-azuis existentes no mundo.
Até o retorno das aves ao Brasil, a
Association for the Conservation of Threatened Parrots tinha em seu
poder 90% das ararinhas-azuis
existentes no mundo
existentes no mundo
Falta de transparência
Para Reillo, um dos principais problemas do criador alemão e da associação fundada por ele são suas credenciais. Ou melhor, a falta delas. “Onde está a ciência? Onde estão as publicações feitas pela ACTP? Quais ONGs internacionais e cientistas, organizações e agências credenciadas endossaram o projeto de reintrodução? Quais grupos científicos foram convidados a consultar sobre o projeto? Como eles estão envolvidos?”, questiona.A opinião é a mesma de outro biólogo, brasileiro, que participou diretamente do programa do governo federal, mas preferiu deixar o projeto depois que percebeu que todas as decisões privilegiavam o envio das ararinhas-azuis ao criador alemão. “É uma temeridade ter esse alemão no Brasil. Ele só tem bichos raríssimos na Alemanha, que custam uma fortuna no mercado negro. Ninguém quer falar sobre o Guth porque todo mundo tem medo dele”.
Em janeiro de 2019, Cromwell Purchase, que será o responsável pela administração do centro de reintrodução das aves na Bahia, disse que o principal motivo para a onda de acusações sobre Martin Guth e a ACTP seria a inveja. “Há muitas pessoas invejosas no Brasil, todo mundo quer um pedaço do programa da ararinha-azul, agora que nós, parceiros do projeto, conseguimos chegar a esse ponto com tanto sucesso. Muitos parceiros foram removidos ao longo do caminho devido à política e à interrupção do programa, e tenho certeza de que muitos estão envolvidos nas acusações”, justificou.
“Você pergunta por que as organizações estrangeiras estão avançando com sucesso no programa da ararinha-azul. Porque nenhum criador brasileiro estava disposto a investir dinheiro para salvar essa espécie… Você preferiria que simplesmente deixássemos a espécie extinta?”
Reillo contra-argumenta: “É claro que todos queremos as ararinhas-azuis de volta à natureza, mas precisamos de respostas”.
Além da falta de transparência nas atividades da ACTP, o Ministério do Meio Ambiente tem se mantido calado diante de toda a polêmica e não fornece dados e informações sobre ações futuras ou quais são exatamente os termos da parceria entre Brasil e ACTP – as outras ararinhas-azuis existentes que ficaram na Alemanha também serão trazidas posteriormente para a Bahia?
No dia 26 de fevereiro, foi enviado um e-mail para a assessoria de imprensa do ICMBio com uma série de questionamentos, como a posição do governo brasileiro perante às denúncias feitas a Martin Guth, os custos do projeto, o número atual de ararinhas-azuis e onde estão localizadas, mas até o fechamento desta reportagem a resposta não foi enviada.
Duas perguntas, que têm sido feitas repetidamente, surgem novamente ao final da história que levará à reintrodução da Cyanopsitta spixii na natureza: pelo bem de uma espécie, deve-se fechar os olhos para como e com que dinheiro ocorreu o seu processo de reprodução? E a segunda: programas de reprodução em cativeiro de espécies ameaçadas de extinção devem ser realizados em países distantes do habitat original das mesmas?
De acordo com o ICMBio, a previsão
é de que as 52 ararinhas-azuis que vieram da Europa sejam
reintroduzidas na natureza até 2021, em duas unidades de conservação na
Caatinga baiana
*Texto publicado originalmente em 04/03/20 no site do Mongabay BrasilLeia também:
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Fotos: reprodução Facebook ACTP
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