Mario Mantovani “O movimento ambientalista precisa voltar às suas origens”
Nessa entrevista especial, Mantovani fala de suas novas funções na SOS Mata Atlântica e uma análise sobre o cenário para o meio ambiente no Brasil
15 de janeiro de 2021
Com a chegada do novo ano, algumas mudanças também aconteceram na Fundação SOS Mata Atlântica. Até porque precisamos de um bocado de esperança e de novas energias para seguir lutando. E, quando se fala em energia, não tem como não citar o Mario Mantovani. Se você já viu ele alguma vez, com certeza vai se lembrar do seu sorriso escancarado – e quem sabe teve a chance de receber aquele abraço.
Pois bem, após 30 anos, o Mario agora segue para uma nova fase dentro da SOS Mata Atlântica. Como ele diz, é uma volta às origens. “O movimento ambientalista precisa resgatar o que foi a sua base”, diz ele. E é isso que ele fará, incidência política em apoio às associações, frentes parlamentares e diversas outras instituições nos municípios da Mata Atlântica, principalmente visando à implementação dos Planos Municipais de Mata Atlântica (PMMA), principal instrumento para aplicação da Lei da Mata Atlântica, que contribui para o planejamento das cidades do bioma, para a proteção da floresta e a qualidade de vida da população.
Veja as mudanças na equipe da SOS Mata Atlântica
Natural de Assis, interior de São Paulo, ele já lutou contra usina nuclear na região da Jureia, no litoral Sul de São Paulo, berço da SOS Mata Atlântica, e contra a especulação imobiliária neste que é o bioma onde a maioria dos brasileiros vive (72% da população) e que oferece muitos cartões postais para o país. Hoje, vê a participação social ameaçada e por isso quer lutar pela manutenção do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama). Para ele, “a preocupação do governo é desmontar Brasília, mas se mantermos as bases locais conseguiremos salvar todo o processo”.
Não tem como falar em Mata Atlântica e não lembrar de Mario Mantovani. Nessa entrevista, ele conta um pouco dessa nova função. E, mais que falar sobre sua trajetória – pois história de mobilização e, como ele mesmo diz, de desobediência civil é o que mais tem – queremos também falar do presente e do futuro. Em um momento de muita reflexão e dúvidas, é sempre bom saber o que pensam as grandes lideranças, como Mantovani.
Veja a entrevista completa!
Ao lembrar de algumas músicas que marcaram sua vida, em uma entrevista dada à rádio Eldorado, anos atrás, Mantovani lembrava do clássico de Chico Buarque. Para ele, “Tristeza não muda nada”. Aos 10 anos ele já sabia o que queria e, aos 65, continua sabendo.
Mario, indo direto ao ponto: como está se sentindo neste novo momento na SOS Mata Atlântica? Poderia falar pra gente um pouco sobre como será esta sua nova atuação?
R.: Muito do que vou fazer é algo que já estava acontecendo. É mais uma experiência, mas vou continuar trabalhando em prol das políticas ambientais, mas cruzando com minha trajetória. Sempre fui de militância, ativista, não é uma área de conhecimento ou produção. É de quem está fazendo enfrentamento. E é isso que vou focar, trabalhar com associações, como a Associação Nacional dos Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma), que ajudei a criar, assim como a Frente Parlamentar Ambientalista. E, ao mesmo tempo, trazer oportunidades para a SOS Mata Atlântica. Tem muita coisa que a gente faz ao longo da trajetória em outros lugares, agora tem muita coisa vindo para a Fundação.
E quais são as batalhas que você espera nos próximos anos?
R.: O que pega agora é a questão do desmonte do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama). O movimento ambientalista precisa resgatar o que foi a base. O Sisnama deu tão certo que serviu como referência para a criação do SUS. Era um exemplo. Eu fui trabalhar nessa base, fazer com que os municípios tivessem uma estrutura de meio ambiente. Isso fortaleceu a atuação em Brasília. Mas, enquanto muitos amigos meus foram para Brasília montar o sistema, eu fiz o inverso e fui para a base. Agora, Brasília conseguiu desmontar toda uma estrutura que estava no governo. É claro que não foi tudo hoje, já vem de alguns anos, mas o que vimos agora é uma destruição total.
Quando tudo começou, a questão ambiental chegou aos municípios, com a Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), que também acompanhei a criação. O subnacional – estados e municípios – ganharam grande evidência, mas agora precisamos fortalecer essa base. Tudo isso é feito com a manutenção dos Conselhos de Meio Ambiente para aplicar a lei. Se mantermos essa base, conseguimos manter todo o resto do processo.
Mesmo com todo o desmonte do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama)?
R.: Essa é a oportunidade. O governo achou que ao desmontar o Conama ia acontecer um efeito cascata. Para esse governo não existe município. Ele não reconhece isso e deixou pra lá. A preocupação deles era desmontar Brasília. Eu quero voltar às origens dos anos 1980 e trabalhar com isso. Não vamos olhar só para o campo da mitigação das mudanças climáticas, mas na adaptação dos municípios, principalmente nas soluções baseadas na natureza.
E você acha que essa necessidade de voltar às origens é um prejuízo que veio do governo?
R.: O governo não tem ideia do tamanho do mal que fez. Esse desmonte é um processo que interessa a muitos grupos, alguns dentro da Confederação Nacional da Indústria (CNI), da Confederação Nacional de Agricultura (CNA), que não querem controle social. Quando falam que o licenciamento ambiental atrapalha, não é porque estão preocupados em melhorar de atuação, não querem controle social. O próprio ministro do Meio Ambiente chegou a pedir para associações, como a Abema, assinarem um documento para não reconhecer a Lei da Mata Atlântica. Essa retomada da mobilização política é a oportunidade. Tudo que já foi construído até hoje veio de mobilização. Temos muita gente na base atuando. Não precisamos gastar energia só em Brasília. Tem muita organização acordando para isso. É o que falo desde que comecei atuar com isso. Precisamos pensar globalmente e agir localmente.
Aproveitando, qual a diferença do Mantovani hoje para aquele jovem dos anos 1980, quando a ONG iniciou seu trabalho?
R.: Nunca estive tão animado como hoje. Naquele momento era idealismo puro. Mesmo viajando de forma não oficial no escotismo, eu participava. Quando me chamaram para entrar oficialmente, eu já conhecia tudo. Mas aquilo que era intuitivo passou a ser compromisso. A principal vitória que temos não é um hectare restaurado, mas o número de pessoas que a gente formou, como o Rodrigo Agostinho (deputado federal), André Lima e Raul Valle (advogados ambientalistas), entre outros que já passaram por aqui. Até dentistas e pessoas que não estão na área de meio ambiente, mas foram voluntários. Muita coisa que fazemos tem validade, mas o que fica são as pessoas que a gente marca. Essa é a nossa essência, estar na ação local, no cidadão ativo num conselho, associação de meio ambiente local, sindicato etc. O que marca é o abraço que a gente dá, o acolhimento na relação com as pessoas, aqueles que participam de nossas mobilizações mais antigas e sempre lembram a gente disso. Esse é o Mario que poderia estar nos escoteiros, na SOS Mata Atlântica, nos conselhos das ONGs que colaboro e participo, em qualquer lugar, vou fazer isso. Não que estou voltando, nunca deixei de ser assim.
Este ano a SOS Mata Atlântica completa 35 anos. Qual é a análise que você faz do trabalho da ONG neste período, especialmente no aspecto de Políticas Públicas?
R.: Muita gratidão, pois sempre foi uma organização forte, onde você pode colocar o que acha. Esse sempre foi o sentimento mais profundo. Muita gente teve a SOS Mata Atlântica como escola, eu também. Algumas coisas que pareciam maluquices minhas deram certo. Como fui para os Estados Unidos e vi como funcionava o trabalho de monitoramento da qualidade da água e voltei com a ideia de fazer um projeto com voluntários para fazer isso. Se o Capô (João Paulo Capobianco, um dos fundadores e ex-superintendente da SOS Mata Atlântica) não me ouvisse, isso não aconteceria.
Um pouco da projeção que a ONG ganhou veio por conta dos cuidados que se teve com cumplicidade, financiamento e institucionalidade, principalmente, nas pessoas que não usaram instituição para galgar coisas pessoais. Sempre foi pelo coletivo. Estar na Fundação é ver essas pessoas, ver como a ONG é um canal.
E a sua trajetória? Como avalia? O que foi mais marcante para você em todos esses anos na Fundação e as maiores vitórias?
R.: Eu olho pouco pra trás, eu gosto mais de pisar no acelerador. Gosto de olhar pra frente. Não para apagar a história, pois temos que aprender, mas para evoluir. O que deixamos de ver porque não estudamos? Eu gosto mesmo de ver as pessoas que estão com a gente.
Você é considerado um dos maiores ambientalistas do Brasil. A que acha que se deve essa fama?
R.: Eu não me acho isso. Eu me profissionalizei. É minha obrigação. Trabalho com isso. Durante muitos anos eu não gostava de receber prêmios, pois acho que os voluntários são os maiores ambientalistas do Brasil. Eles que devem ganhar prêmios. Eu me realizei profissionalmente. Tudo que imaginei em trabalhar do meu hobby aconteceu. Passei a ganhar pra isso. Mesmo trabalhando em banco, dando aula, quando trabalhei no Estado de São Paulo, tudo isso era o que eu sempre gostei de fazer. Tem gente que não tem dinheiro pra comer e é ambientalista. Por isso, falo tanto da base, são essas pessoas que devemos valorizar. Não me considero o maior ambientalista. Gostaria de ser enquadrado como um dos principais profissionais da área. Ambientalista é outra categoria.
E o movimento ambientalista, como você o enxerga ao longo do tempo? Muitos outros movimentos surgiram nas últimas décadas para lutar por mudanças sociais. Você acredita que o ambientalista evoluiu com a sociedade?
R.: O movimento esqueceu da base, não viu que tinha gente jogando lixo num terreno baldio, enquanto olhava muito para Brasília. De novo eu falando sobre a história de voltar às origens. Há algumas décadas, na ditadura, todo mundo era perseguido. Não interessava se tinha mais ou menos ideal, se estudava ou não e havia muita luta. Hoje tem muito mais gente falando de meio ambiente na área da saúde, no movimento negro. Não tem como dissociar dessas questões. Muito movimento de jovem falando de meio ambiente. Os ambientalistas vão ter mais possibilidades se estiverem na base.
E a sociedade, entende hoje a função do movimento?
R.: Acho que não precisamos mais de Mario Mantovani, de ter carteirinha de ambientalista. Qualquer um tem que entrar. Um artista, um grafiteiro. A beleza, a força, está em cada atitude. Vou ver um dia que não vai ter mais esse nome ambientalista, cada um vai ser da sua forma, vai fazer parte de todos. Cantando, dançando etc. Já levantamos a bandeira porque precisávamos chamar a atenção, pois pouco se sabia. Hoje, o mundo é muito mais plural. É melhor ter um grande movimento como esse surgindo, do que as pessoas em suas organizações.
Apesar de ser da Mata Atlântica, você é um cara de várias causas. Existe alguma que mexe mais com você? Qual a sua paixão dentro da Mata Atlântica?
R.: Quando a questão ambiental despertou em mim sempre fui louco pela água. O que me levou para a Amazônia, Pantanal etc. foi a questão da água. O que me entusiasma é ver um rio limpo. Isso que me fez vir para a SOS Mata Atlântica. Minha formação em geografia e a especialização em manejo de Bacias Hidrográficas é por conta da água. E desde aquela época (anos 1980) já falava do que hoje são as soluções baseadas na natureza. Minha defesa era sempre ver o rio em sua condição natural, ter a água como um benefício para todos, universal. E não como alguns especialistas que só pensam onde jogar o lixo humano. Talvez sou de muitas causas, pois sou como a água, não tenho forma.
E as belezas do bioma. Qual o local especial dentro do bioma para você?
R.: Ainda é a Jureia (Estação Ecológica de Juréia-Itatins). Além da beleza que é indiscutível, é um local que representou muito na minha vida. Quero que joguem minhas cinzas lá. Foi onde minha vida deu um salto de ser escoteiro para ser um profissional. Além de ver um rio maravilhoso, lá aprendi a forma de fazer política e de combater retrocessos.
Você também é muito relacionado à campanha e grande mobilização pela despoluição do Rio Tietê, a partir do Núcleo Pró-Tietê. Você acha que o rio Tietê um dia será limpo?
R.: Não vai existir milagre, gente nadando no rio. O grande sucesso será não transmitir doenças e pessoas vivendo às margens do rio. É uma questão de exclusão. O rio é o espelho da nossa sociedade. O rio Tietê vai ser aquilo que a sociedade for. Se ela evoluir, o rio melhora, se for atrasada, vai ter lixo, esgoto e uma população doente.
O que fez o Tietê começar a ser limpo foi a mobilização da sociedade. Com aquele jacaré Teimoso que apareceu. Nós mostramos que ali existia um rio, formado por outros menores. Não vai ter outra luta por um rio como essa que teve pelo tietê na década de 1990. Foi uma comoção.
Neste momento de muitos embates, você teme algo contra si? Durante sua trajetória já sofreu algum tipo de ameaça?
R.: Na campanha do Tietê. O governador na época (Fleury) era da polícia. Eu cheguei a denunciar o governo de São Paulo em Washington DC. Quando fazia denúncias ligavam na minha casa, ameaçando minha família. Mas aí que está a importância de estar em uma grande organização. Infelizmente, se não estivesse nessa ONG seria diferente. E hoje temos o ódio forte também contra o meio ambiente. Por isso, precisamos sim ter cuidado.
Uma vez você falou que não adianta uma pessoa querer mudar o mundo, se ela não consegue nem acompanhar a reunião de seu condomínio ou o dia a dia de sua comunidade. Você ainda tem sua opinião? O que diria para as pessoas em tom de mobilização para a causa?
R.: A essência é isso, a mobilização, o engajamento, a militância. Isso vem de uma geração como a minha, do Beloyanis Monteiro, que combateu a ditadura. O grande lance é a mobilização social. Essa coisa do coletivo é o que muda a sociedade.
E no caso das empresas. Como avalia o papel delas neste momento de extrema pressão sobre o meio
ambiente?
R.: Hoje ainda não há amor à causa. É mais uma coisa com conhecimento, mas isso faz parte do processo. Não dá pra uma empresa ter o mesmo engajamento que a gente. Tirando alguns empresários negacionistas, tem muitas pequenas, médias e grandes empresas que estão fazendo aproximações. Quem dá sinal não é a gente, é o contexto social e econômico. O que cabe à empresa é mudar. Tudo que a gente conhecia antes está se transformando e as empresas precisam estar conosco nesse projeto.
Não estamos falando mais de ser paz e amor. Todos os segmentos estão envolvidos. Davos (Fórum Econômico Mundial,) por exemplo, vem chamando a atenção para a urgência climática nos dois últimos anos, de forma seguida. Este é o assunto que as pessoas vão acompanhar daqui pra frente.
Você é um mobilizador nato. Não tem como uma pessoa conversar com você e não sair com vontade de mudar o mundo. De onde tira essa energia para engajar as pessoas?
R.: É o acolhimento. A gente acolhe, mas também gosto de ser acolhido. É essa troca de energia. Todo mundo que conheço acrescenta algo na minha vida. É o que me leva pra frente. Não tem um segundo que não estou falando com alguém, ouvindo a história de alguém. E atualmente, até por conta das novas tecnologias de comunicação, por exemplo, nunca impactamos tanta gente. Nessa semana participei de eventos com milhares de pessoas acompanhando. Quem veio dos anos 1970 e vê isso, parece coisa de filme e aquelas coisas como Os Jetsons. Nunca falamos com tanta gente. Acho que hoje tem mais gente que vê nossas fotos e memórias das mobilizações do que quem estava lá. É claro que tem a marca, quem participou desse tipo de coisa nunca esquece. Pra isso que estou aqui até hoje.
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