Com cataratas irreconhecíveis, rio Iguaçu está ‘doente’ e vê mata nativa minguar
O Iguaçu (rio grande, na língua tupi) mais parecia um “imirim” (rio pequeno, no mesmo idioma) para quem visitou suas famosas cataratas nos últimos dias.
Segundo a Companhia Paranaense de Energia (Copel), a vazão da água perto das quedas foi de 308 mil litros por segundo, ou um quinto do fluxo normal, nos dias 9 e 10 de junho. Foi o menor índice de 2021.
Leia também:
É o segundo ano seguido em que a atração, reconhecida como patrimônio natural da humanidade pela Unesco, fica irreconhecível. Em abril de 2020, a vazão nas quedas foi ainda menor que a atual, chegando a 259 mil litros por segundo.
Meteorologistas atribuem o baixo fluxo principalmente à falta de chuvas no Paraná, Estado onde ficam as nascentes do Iguaçu e que é atravessado por ele até sua foz, em Foz do Iguaçu, onde ele deságua no rio Paraná.
Segundo o Sistema de Tecnologia e Monitoramento Ambiental do Paraná (Simepar), desde fevereiro, quase todo o Estado tem tido chuvas abaixo da média histórica.
Como as precipitações só tendem a voltar em outubro, reservatórios de hidrelétricas na bacia têm retido água para garantir alguma reserva para os próximos meses, o que também vem reduzindo a vazão do rio a jusante. Há seis hidrelétricas de grande porte no Iguaçu.
Mas especialistas afirmam que, embora a chuva não esteja ajudando, o Iguaçu é hoje um rio “doente” e nunca esteve tão vulnerável à variação pluviométrica.
Segundo o MapBiomas, plataforma que monitora o uso do solo no Brasil, entre 1985 e 2019, a região da bacia do Iguaçu perdeu 21,3% de sua vegetação nativa, formada principalmente pela Mata Atlântica.
E na sub-bacia que abarca as cabeceiras do rio, nos arredores de Curitiba, resta hoje apenas 7,2% da vegetação original, segundo Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da ONG SOS Mata Atlântica.
“O Iguaçu é um rio doente e que, para se recuperar, precisa de mata ciliar”, ela afirma à BBC News Brasil.
Ribeiro explica que a Mata Atlântica, quando preservada, atenua o impacto de secas e temporais sobre os rios. A floresta retém no solo a umidade acumulada no período chuvoso, garantindo que as nascentes continuem a jorrar mesmo na estiagem.
Porém, quando as árvores são removidas e substituídas por lavouras ou pastagens, o solo deixa de segurar a umidade. Isso faz com que, na estiagem, as nascentes próximas gerem menos água ou até sequem.
Já na época úmida, as chuvas não conseguem infiltrar no solo desmatado e tendem a escorrer direto para os rios, causando erosão e enchentes.
Em 2018, Ribeiro participou de uma expedição que percorreu todo o curso do Iguaçu para analisar a qualidade da água e o impacto do desmatamento e da construção de hidrelétricas na bacia.
Ela diz que o rio está poluído em praticamente toda sua extensão, principalmente por causa de agrotóxicos, e que a qualidade da água é ruim até mesmo no Parque Nacional do Iguaçu, a maior área protegida da bacia.
Líderes de desmatamento
Imagens do satélite Landsat/Copernicus mostram a intensa destruição da floresta na bacia do Iguaçu nas últimas décadas. Em nenhum lugar a transformação foi tão avassaladora quanto em Rio Bonito do Iguaçu, no centro do Paraná.
Em 1984, uma densa e extensa floresta protegia a margem direita do Iguaçu no município. De lá para cá, só sobraram fragmentos de mata em topos de morros e em faixas estreitas que acompanham cursos d’água.
Rio Bonito do Iguaçu foi o município brasileiro que mais desmatou a Mata Atlântica entre 1985 e 2015, segundo a SOS Mata Atlântica. Só ali foram destruídos 24,9 mil hectares de floresta, o que equivale a quase o município de Fortaleza inteiro.
A Mata Atlântica se estende por 17 Estados brasileiros. Cinco dos dez municípios que mais destruíram o bioma entre 1985 e 2015 ficam no Paraná.
E a destruição não parou. Em partes do Estado, como na própria Rio Bonito do Iguaçu, o noticiário lembra o de partes da Amazônia, com registros frequentes de prisões de madeireiros e de apreensão de toras extraídas ilegalmente.
Em todo o Brasil, a Mata Atlântica já perdeu 87,6% de sua cobertura original.
Conservação como empecilho
Para Clóvis Borges, diretor executivo da ONG SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), sediada em Curitiba, prevalece entre boa parte da elite política e econômica do Paraná a visão de que “a conservação é um empecilho ao desenvolvimento”.
A destruição das florestas paranaenses teve um grande impulso a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), quando o Brasil enfrentava dificuldades para importar madeira.
Várias famílias de imigrantes europeus passaram a se dedicar à extração de araucárias, também conhecidas como “pinheiros-do-paraná” por abundarem na região. Muitas cidades no Paraná e em Santa Catarina nasceram e cresceram graças à atividade madeireira.
Em 2001, porém, segundo um estudo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), só restava no Estado 0,8% da área original ocupada pelas matas de araucárias.
Ironicamente, o Paraná quase levou à extinção o pinheiro-do-paraná.
“Salvo o Parque Nacional do Iguaçu e a região costeira, o Paraná é um Estado devastado”, diz Clóvis Borges.
Nos últimos dias, cresceram temores de que mesmo a proteção do parque nacional esteja sob risco.
Em 9 de junho, deputados federais do Paraná conseguiram fazer com que um Projeto de Lei que permitiria a reabertura de uma estrada dentro da unidade tramite em regime de urgência, modalidade que acelera a análise da proposta.
A estrada foi fechada em 1986 por uma decisão judicial e, desde então, foi recoberta pelas matas.
Autor da proposta, o deputado Vermelho (PSD-PR) diz que a estrada existia antes da criação do parque e que a obra seguirá boas práticas ambientais. Apoiadores da proposta dizem que moradores que viajam entre Serranópolis e Capanema economizarão 180 quilômetros se a estrada for reaberta.
Já Clóvis Borges afirma que a tentativa de reabrir a estrada reflete uma “impertinência cultural”.
Segundo ele, há 30 anos políticos paranaenses agem para desmontar órgãos ambientais estaduais em benefício de um “ruralismo canhestro”.
Ele lembra que congressistas paranaenses estiveram entre os principais defensores das mudanças no Código Florestal aprovadas em 2012 – mudanças que, entre outros pontos, afrouxaram as exigências de preservação ao longo de cursos d’água.
Antes da mudança, a legislação exigia a restauração e conservação de margens de rios, riachos e nascentes. Com o novo código, muitos proprietários rurais ficaram dispensados da exigência.
Para Clóvis Borges, a bacia do Iguaçu só será recuperada quando proprietários rurais forem remunerados por conservar o ambiente.
Ele diz que já há formas de calcular o valor que uma área protegida gera ao evitar emissões de carbono e proteger as águas, por exemplo. “Agora falta conversar com as partes beneficiadas e cobrar delas para que paguem ao proprietário, porque ele só vai proteger se for pago”, ele diz.
Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, também propõe soluções. “É importante estabelecer áreas públicas e privadas prioritárias para a restauração e ampliá-las, compensando os donos”.
Ela diz ainda que o Brasil deve investir em outras fontes de energia para não depender tanto de hidrelétricas e termelétricas.
“É importante investir em energias limpas e renováveis, como eólica e solar, para que quando tivermos problemas climáticos não haja um conflito entre o setor elétrico e a preservação.”
“As cataratas são um patrimônio da humanidade, não dá para ficar compartimentando ainda mais o rio”, defende.
Fonte: BBC
Nenhum comentário:
Postar um comentário