O Brasil precisa aprender a viver no Antropoceno
Se vamos ter que navegar pelo Antropoceno, como espécie e
como nação, vamos ter que rever nossa organização interna para conter a
degradação
27 de julho de 2021
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de
Proteção Ambiental (Proam) →
O Antropoceno, definido por cientistas como a etapa mais
recente do planeta, com base nas evidências atuais mostra uma mudança global
decorrente da transposição de uma fronteira das ações humanas em escala,
magnitude e significância, cruzada ao longo dos últimos dois séculos, quando se
acentuou a revolução industrial. Os reflexos nas mudanças no clima, solo,
oceanos e biosfera da Terra são evidentes e rápidos. O temor global sobre o
futuro baseia-se em prognósticos científicos e os efeitos do aquecimento global
já se fazem sentir, em progressão maior que a esperada.
O problema e as soluções são globais, da Amazônia ao Congo e
de Madagascar ao rio Mekong, na Ásia. A revista National Geografic estudou 40
anos de devastação para mapear as vulnerabilidades das florestais globais,
importantes para o sequestro de carbono. Nos últimos 30 anos 20% das florestas
tropicais foram eliminadas e outros 10% encontram-se danificadas. Das florestas
globais, a mais vulnerável é a amazônica, que apresenta fortes sinais de
colapso.
No Brasil as vulnerabilidades da realidade físico-bioquímica
e de nossas populações são proporcionais à sua riqueza. Instaladas do norte do
Equador ao sul do Trópico de Capricórnio, contam com clima e água que provê
vida em abundância e sob todas as formas, abrigando natureza tão pujante que
ainda não foi devidamente catalogada.
Os desafios para a proteção são seculares. Há mais de
duzentos anos, o patriarca da independência brasileira, José Bonifácio de
Andrada e Silva, já discorria sobre as matrizes da degradação. Antevia que os
abusos e as soluções implicariam a construção de um governo central lúcido e
proativo, “sábio, zeloso e com energia”, capaz de compreender e agir para
proteger os ecossistemas essenciais.
Andrada e Silva escreveu em 1815: “A falta de polícia
própria para coutar [proteger] e guardar as matas, castigando pronta e
irremissivelmente os que as roubam, incendeiam; e lhes metam gados daninhos
fora de tempo e de lugar. Tem sido incrível a impune devassidão e desmazelo,
com que os arvoredos e maninhos públicos foram abandonados ao machado
estragador do rústico, ao dente roedor dos animais e às queimadas dos pastores.
Mas quem vedaria estes males; e quem executaria nossas leis, se nunca houve uma
inspeção única e central, composta de homens sábios e zelosos, que vigiasse com
energia sobre tudo o que diz respeito à administração e polícia das matas,
estradas, rios e minas? Ramos que pela sua mútua correlação e dependência
requerem um sistema único e ligado de meios e de fins”.
Na realidade atual, um sistema único ligado de meios e fins
aponta para a criação de infraestruturas e um modelo de governança voltado aos
desafios gerenciais que o Antropoceno representa. Há um evidente rearranjo das
nações ao qual o Brasil não deveria estar alheio. O atual alinhamento dos
Estados Unidos com a União Europeia demonstra tendências inevitáveis e que terá
reflexos fortes sobre a realidade brasileira.
A lógica é simples, como afirma Ursula von der Leyen,
presidente da Comissão Europeia: “A emissão de CO2 deve ter um preço, um preço
que incentive consumidores, produtores e inovadores a escolher as tecnologias
limpas, a ir em direção a produtos limpos e sustentáveis”. Em outras palavras,
produtos que representem emissão de carbono serão penalizados. A maior valia
será representada em produtos que representem a descarbonização.
O Brasil está perdendo condições de protagonismo neste novo
contrato econômico global. Com a economia baseada em um agronegócio que expande
suas fronteiras sobre o cerrado e a floresta amazônica, tenderá a perder
competitividade no mercado internacional.
A Amazônia não representa apenas o apelo global para a
descarbonização de produtos. Trata-se hoje de desafio maior: a falência gradual
de um ecossistema gigantesco, que perde a capacidade de produzir água com sua
transposição de umidade para todo o continente sul-americano. Recentemente um
estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) demonstrou que o
lado ocidental da floresta está em franca falência e climatologistas afirmam
que esta região poderá virar uma espécie de savana.
A realidade brasileira será uma forte condicionante dentro
do que os europeus chamam de “mecanismo de ajuste de fronteira”, que taxará
commodities e empresas do agronegócio, do petróleo, de produtos como aço, alumínio,
concreto e outros. Ou seja, a emissão de carbono vai se tornar uma taxa aos
produtos globais em desconformidade com a sustentabilidade. Deverá entrar em
vigor daqui a dois anos, em 2024.
Às portas da COP 26, que ocorrerá em novembro em Glasgow, no
Reino Unido, ganham maior relevância a urgência planetária e os mecanismos de
descarbonização. Atualmente cientistas estão reunidos para atualizar os dados
climáticos a serem apresentados na COP 26, incluindo os eventos extremos
recentes, como as altas temperaturas registradas no Canadá e nos Estados
Unidos, além das inundações que devastaram regiões da Alemanha.
As regras do jogo estão mudando rapidamente e o Brasil não
está construindo sua defesa para enfrentar as vulnerabilidades e comprovar
integridade. Se vamos ter que navegar pelo Antropoceno, como espécie e como
nação, vamos ter que rever nossa organização interna para conter a degradação,
estimular práticas e adotar novas tecnologias para sobreviver economicamente
dentro do novo rearranjo civilizatório.
Há questões estruturais a serem sanadas no campo político e
de governança. O sociólogo italiano Domenico di Masi observa que a perda de
protagonismo do Brasil decorre do rebaixamento médio da inteligência coletiva,
que nas mãos do atual governo de Jair Bolsonaro perde um tempo precioso
dialogando sobre questões superadas há séculos. O caráter negacionista sobre
questões basilares implica a perda de proatividade intelectual, em um
rebaixamento no nível cognitivo da população, o que traz para a realidade, fora
de seu tempo, as consequências que José Bonifácio denominava “incrível a impune
devassidão e desmazelo” e apontava a falta de “homens sábios e zelosos, que
vigiassem com energia sobre tudo o que diz respeito à administração e polícia
das matas”.
O Brasil precisa transformar-se para sobreviver ao
Antropoceno. Essa é uma emergência que exigirá visão de médio e longo prazos,
passando pela inteligência estratégica de sua governança, que exigirá
transparência democrática para sua consecução e a superação de fortes
interesses imediatistas geradores da devassidão e do desmazelo.
Aprendendo a viver no Antropoceno demandará a tomada de
consciência pública de que a próxima fronteira civilizatória é a sobrevivência,
que dependerá da construção de uma infraestrutura de governança com políticas
públicas voltadas à sustentabilidade, fins e meios que José Bonifácio
reconhecia como fruto da administração de personagens sábios e zelosos.
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