Produção de energia eólica x proteção de espécies ameaçadas, uma difícil equação na Caatinga
*Por Suzana Camargo
O soldadinho-do-araripe (Antilophia bokermanni) tem um Plano de Ação Nacional de Conservação elaborado só para ele. Esta espécie endêmica da Chapada do Araripe, no Ceará, é realmente única. Desconhecido pela ciência até 1998, apesar das cores contrastantes belíssimas e do topete vermelho dos machos, ele é encontrado apenas em uma área muito restrita, de menos de 50 km2, nos municípios de Crato, Barbalha e Missão Velha. A ave faz ninhos próximo a riachos. Por isso mesmo, é chamada de “Guardiã das Nascentes” no semiárido da Caatinga.
Tão logo o soldadinho-do-araripe se tornou oficialmente uma nova espécie, já foi classificado como em perigo crítico de extinção, uma categoria abaixo do desaparecimento na natureza. Estima-se que sua população seja de aproximadamente 800 indivíduos.
É por essa razão que o pássaro com crista de fogo é um dos destaques no relatório apresentado em 2019 pela empresa Qair Brasil, subsidiária de uma multinacional francesa, para garantir que o licenciamento ambiental fosse aprovado para a construção do Complexo Eólico e Solar Serra do Mato, localizado entre os municípios de Porteiras, Brejo Santo e… Missão Velha. Ou seja, habitat do raro soldadinho-do-araripe.
De acordo com a legislação ambiental vigente no Brasil, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) exige o Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima), além de audiências públicas, para plantas eólicas que estejam situadas em “áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção e endemismo restrito”, como é o caso do soldadinho-do-araripe.
E vale ressaltar que não é só ele. O estudo elaborado pela consultoria contratada pela Qair cita ainda outra ave em risco de extinção em Missão Velha, o jaó-do-sul (Crypturellus noctivagus).
O perigo mais evidente da presença de turbinas eólicas próximas a áreas de ocorrência de aves ameaçadas é, sem dúvida alguma, a rotação de suas pás, que pode vir a provocar colisões. Estima-se que, nos Estados Unidos, mais de 500 mil pássaros morram por ano desta maneira.
Há ainda o óbito por eletrocussão causado pelo choque com linhas de transmissão, necessárias para levar a energia produzida nessas plantas para outras regiões.
Todavia, o impacto desses complexos não se restringe apenas a acidentes com aves. A construção envolve a supressão de vegetação, a abertura de estradas para a chegada das imensas turbinas e demais equipamentos, por exemplo.
O soldadinho-do-araripe e sua crista de fogo: logo que foi descoberto ele já foi considerado
em perigo crítico de extinção
(Foto: Araripe_Manakin_Hurbenm, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons)
Na Caatinga, os melhores ventos
A região Nordeste é a menina dos olhos do setor eólico brasileiro. Ela concentra 90% desses empreendimentos no país e 85% deles estão na Caatinga, a maior parte no Rio Grande do Norte e na Bahia. Por uma série de fatores, é nesse bioma que está o que se considera o vento ideal para geração de energia – aquele que é mais constante, com velocidade estável e que não muda de direção com frequência.
O segmento eólico é relativamente novo no Brasil – o primeiro leilão público aconteceu em 2009, o primeiro parque foi inaugurado em 2011 e uma legislação específica para o licenciamento foi aprovada em 2014.
“A legislação é federal e traz as diretrizes para que os governos estaduais façam a sua legislação”, explica Elbia Gannoum, presidente executiva da ABEEólica, associação que representa as empresas do setor. “Nós, investidores, fomos aprendendo a lidar com a legislação estadual e não a consideramos burocrática, nem limitadora”.
Mas alguns especialistas da área de conservação afirmam que, embora o investimento em fontes renováveis e energia limpa seja muito bem-vindo, é preciso um maior rigor na análise e monitoramento dos projetos.
“Em geral, as energias renováveis são muito colocadas como solução. E são. Mas entendemos que não da forma como tem sido feita no Nordeste, na Caatinga principalmente. Tem sido de uma forma predatória e muito pouco regulada e preocupada com o bioma e com as pessoas que vivem nele”, critica o biólogo Paulo Marinho, doutor em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista na conservação de mamíferos na Caatinga.
Quarto maior bioma do Brasil, com 860 mil km2, a Caatinga tem só pouco mais de 2% de seu território preservado por unidades de conservação de proteção integral, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente de 2020.<
“Comparativamente a outros biomas, a Caatinga é subestudada. Mas ela tem uma grande riqueza de endemismos, isso quer dizer que várias espécies que ocorrem ali não existem em nenhum outro lugar do mundo”, diz Sandino Silva, coordenador de Relações Institucionais da Associação Caatinga.
Brasil já tem 890 parques eólicos e quase 10 mil aerogeradores em operação
(Foto: ABEEólica/divulgação)
Pressão política e vista grossa nos licenciamentos ambientais
Justamente outra espécie endêmica da Caatinga, assim como o soldadinho-do-araripe, está no centro de uma polêmica envolvendo a construção de um complexo eólico, na Bahia, perto do único refúgio da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). Também em risco de extinção, o mais recente censo, de 2022, apontou que existem cerca de 2,2 mil delas em vida livre.
Foi nas imediações do Raso da Catarina, em Canudos, que a Voltalia decidiu erguer o complexo eólico, com duas usinas e custo estimado de R$ 500 milhões.
A obra já está praticamente pronta, mas descobriu-se que o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) aprovou o projeto da multinacional de origem francesa somente com a apresentação de um licenciamento simplificado, sem o EIA/Rima.
Com o temor do possível impacto das pás das 80 turbinas eólicas sobre a arara-azul-de-lear – que possui o hábito de realizar longos voos diariamente, de até 80 km, saindo de seu dormitório ao amanhecer e voltando no final do dia –, organizações e comunidades locais entraram com uma ação na justiça pedindo a revisão do licenciamento.
Depois do Ministério Público Federal ter se posicionado pela anulação do licenciamento em março deste ano, no mês seguinte a 3ª Vara Federal Cível e Criminal de Feira de Santana (BA) determinou a suspensão de todas as licenças concedidas à Voltalia (leia mais aqui).
A Justiça Federal determinou que “seja apresentado e aprovado o competente EIA/Rima, inclusive com realização de audiência pública, na forma da legislação ambiental pertinente”.
Em nota, a Voltalia afirma que realizou “uma avaliação de risco baseada na observação do comportamento da arara-azul-de-lear em campo por tempo superior ao recomendado pelas melhores práticas internacionais, que concluiu que o risco dos parques eólicos para preservação e conservação da espécie não existe”.
A companhia afirma ainda que é indevida a suspensão das licenças concedidas e está investindo numa série de projetos de preservação para proteger a espécie, além de ações para evitar possíveis colisões, como a pintura das pás de preto.
“Existe uma pressão em todos os níveis do governo para acelerar o início dessas obras [eólicas]. E ela aumenta a cada nível que desce na escala política para receber esses empreendimentos”, destaca Marinho. “Essa pressão recai sobre órgãos ambientais que muitas vezes precisam produzir parecer no tempo da empresa e não da área técnica”.
Grupo de araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari) na Estação Biológica de Canudos, na Bahia
(Foto: Brendan Ryan, CC BY-NC-SA 2.0)
Mudanças nas legislações estaduais
O alerta sobre esse tipo de situação não é de hoje. Em 2019, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco divulgou um artigo no periódico Perspectives in Ecology and Conservation intitulado “Verde x Verde: Alerta sobre potenciais conflitos entre geração de energia eólica e conservação da biodiversidade no Brasil”.
Na época, o Brasil era o 8o colocado no ranking global de capacidade eólica instalada e possuía pouco mais de 6.300 turbinas em funcionamento. Atualmente o país já ocupa o 6o lugar e são quase 10 mil aerogeradores em operação.
Fonte: ABEEólica
O biólogo Felipe Melo, principal autor do artigo, cita o que aconteceu em Pernambuco em 2015. Mudou-se a legislação estadual para alterar a altitude delimitada para a classificação das Áreas de Preservação Permanente (APP). O limite mínimo de altitude para que a vegetação fosse protegida passou de 750 metros para 1.100 metros. A medida tinha como objetivo favorecer a indústria eólica.
“O fato é que Pernambuco alterou uma proteção para beneficiar empreendimentos eólicos. Foi goela abaixo. E toda vez que se retira uma proteção ambiental é porque há interesses obscuros por trás. Houve lobby, influência de um setor que não teve pudor de derrubar uma legislação”, denuncia Melo.
Para ele, qualquer mudança na regulamentação necessita ser debatida com todos os envolvidos. Contudo, Melo acredita que os licenciamentos ambientais no Brasil são vistos por algumas empresas como uma barreira, um empecilho, quando na verdade deveriam ser uma etapa fundamental em qualquer processo.
“Precisamos de uma classe política e empresarial que respeite a proteção ambiental como uma estratégia de desenvolvimento para as futuras gerações. O Brasil tem no capital natural uma das grandes armas da negociação internacional”, afirma o biólogo pernambucano.
Infelizmente, não parece que é o vem acontecendo. Um estudo publicado em 2021 aponta que 62% da área de parques eólicos construídos nos estados da Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul, era coberta por vegetação nativa e areias costeiras.
Especialistas pedem mais transparência e monitoramento
Melhores ventos não poderiam soprar sobre essa indústria. Os números são todos positivos. Segundo a ABEEólica, no acumulado de 2016 a 2024, o setor terá evitado, no Brasil, emissões de gases do efeito estufa valoradas entre R$ 60 e 70 bilhões. E cada R$ 1,00 investido em eólicas tem impacto de R$ 2,9 no PIB. A projeção é que a capacidade instalada no país quase dobre até 2028.
“A eólica é hoje a fonte de energia mais barata do Brasil”, garante Elbia. “E nos próximos 10, 20 anos, a oferta vai crescer fortemente, liderada pelas energias eólica e solar”.
Para aqueles que trabalham com conservação, o dinheiro proveniente de uma fonte renovável de energia limpa é visto com bons olhos, contudo, deve beneficiar a todos, especialmente as comunidades locais e a fauna e a flora da área em questão.
“É importante que a concepção do projeto de uma usina eólica privilegie a preservação desde o começo. Ainda mais um empreendimento que ganha o nome de energia limpa precisa de fato mitigar ou reduzir totalmente os impactos ambientais e sociais”, destaca Sandino Silva, da Associação Caatinga. “Quando se fala em energia barata demais, talvez alguém esteja pagando por esse preço: ou a biodiversidade ou as pessoas que estão naquela região”, alerta.
O consenso é que os processos de licenciamentos dos empreendimentos sejam mais rigorosos, totalmente transparentes e que haja um monitoramento e fiscalização constantes nos possíveis impactos e nos projetos de compensação ambiental conduzidos pelas empresas após a conclusão das obras.
“Há 26 milhões de pessoas que vivem num ecossistema relativamente bem preservado. A Caatinga é um grande laboratório vivo de convivência entre natureza e homem”, acredita Felipe Melo. “Mas como é um bioma pouco conhecido e defendido, diferente da Amazônia, fica mais fácil para as empresas avançarem sobre ele.”
*Texto publicado originalmente em 20/07/23 no site do Mongabay Brasil
Foto de abertura: Rick elis.simpson, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons
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