BLOG do SOMBRA
A crise de representação escancarada em junho de 2013 não é tema da eleição legislativa. Até quando o eleitor vai esperar por mudanças?
Manifestantes tomam o prédio do Congresso em junho de 2013. A pauta dos protestos não está na eleição.
Toda crise tem sua própria história e suas próprias consequências. Em comum, a interação dialética entre relações sociais e econômicas de que, a um tempo,
são produto e fonte, tanto quanto são produto e fonte de inovações
tecnológicas, que, no mesmo fluxo, atendem e indicam alterações
comportamentais, determinantes de mudanças e rupturas insuspeitadas,
pois quase sempre construídas em silêncio, no subterrâneo onde são
gestadas as rupturas sociais, que não se anunciam...
Os exemplos são clássicos e não são poucos, e certamente o mais
relevante é a implosão da União Soviética, imprevista pelos mais argutos
comentaristas. Antes, guardadas as devidas proporções (e as distâncias
são elásticas), viveu o mundo a irrupção estudantil francesa de 1968
que, tendo como gatilho aparente uma modesta crise estudantil em
Nanterre, no interior do país,
incendiou Paris para, em seguida, como rastilho de pólvora, espalhar-se
por todo o mundo. Atravessando civilizações e realidades históricas
distintas, chegou ao Brasil encontrando-nos na resistência popular
(leia-se movimentos de rua liderados por estudantes e intelectuais) a
uma ditadura militar que se consolidava. Mais recentemente viveu o mundo
a 'primavera árabe' - anúncio de uma interrompida democratização à lá
Ocidente -, inesperadamente instalando-se na Europa, especialmente na
Espanha ('indigna-te') e nos EUA, com o surpreendente 'ocupe Wall
Street'.
Ressaltadas suas limitações de fundo e contundência em face dos
fenômenos precedentes, tivemos o nosso junho de 2013, também
caracterizado por um ativismo desconhecido, quando na superfície
contemplávamos a retração das massas. Nossa ‘irrupção’ também era
marcada pela presença majoritária de jovens de classe-média (aqueles que
abjuram ou abjurariam a política), reunidos em SP aparentemente contra
um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, e pela quase
inexistência de projetos e pleitos – lembrando, neste ponto, o inane "é proibido proibir"
parisiense. Assim, nosso junho de 2013 seria, mais do que tudo, o
manifesto da exaustão popular, em face da infuncionalidade da máquina
pública. ‘Descobriu-se’ que os serviços não funcionavam, que a
classe-média estava presa no trânsito, que o povo não dispunha de
transporte público de massa, que o ensino era deficiente, e que a assistência médica de qualidade era um privilégio de quem podia pagar seguro de saúde.
De ‘descoberta’ em ‘descoberta’, descobriu-se finalmente que o rei (ao
contrário do que nos diziam as aparências construídas pelo marketing
oficial), ‘estava nu’: a sociedade ‘desenvolvida’ era mesmo
‘subdesenvolvida’ e classista. O 'Brasil de todos' só funcionava, de
fato, para os ricos, malgrado as muitas melhorias experimentadas pelos
mais pobres nos últimos anos. Os ricos estavam incomodados com a
ascensão dos ‘de baixo’ e a classe-média – emergente ou
beneficiária—revelava-se descontente.
Movimento de massa, nosso junho – outra heterodoxia – não indicava
atrás de si qualquer organização partidária ou sindical. Ao contrário, a
inorganicidade perseguia as raízes do anarquismo (e uma não bem
formulada busca de uma moderna experiência de democracia direta),
apostando no voluntarismo. O amálgama era a aversão à política, aos
partidos e aos sindicatos, cujos líderes e símbolos chegaram a ser
rechaçados.
Ao analista, porém, não pode passar desapercebida uma das bandeiras
mais desfraldadas pelos 'insurretos', vocalizando um sentimento que
parece nacional e crescente: "Vocês não me representam".
Vocês, quem?
Neste 'vocês' vejo, antes de tudo, as instituições no seu sentido o mais
genérico possível, como os partidos e os sindicatos, e tudo o que
possa ser identificado como o establishment: o ‘governo’, os governos
propriamente ditos, o Congresso, o Judiciário. A política, enfim.
Na tentativa de uma síntese, penso ser possível dizer que ouvíamos, com ouvidos moucos, a denúncia da exaustação da democracia representativa,
qual a exercemos presentemente, pois sua característica nodal é também
sua tragédia, aquela que a levará a uma morte anunciada: a distonia
entre o representante e o representado, entre o eleitor e o eleito,
entre a vontade do eleitor e o exercício do mandato pelo eleito,
evidenciando, por fim, a fraude da representação.
Caminhamos, assim,
forçosamente, para arguição mais profunda, qual seja, a legitimidade da
representação parlamentar, aquela que, hoje, mais assinala o divórcio
entre eleitor e eleito. Tema crucial que pede a reflexão que não pode
ser ensejada por um artigo de imprensa.
Estamos, hoje, em meio a um processo eleitoral que renovará, além da
presidência da República e de todos os governos estaduais, quase todo o
legislativo brasileiro: toda a Câmara Federal, todas as Assembleias
Legislativas estaduais e a distrital, e ainda um terço do Senado
Federal. Não obstante sua relevância, a crise revela-se ausente do
debate político, e os que a ele ainda se referem sabem que a Reforma do
Estado, a reforma verdadeira (na qual está embutida a reforma política,
mãe da reforma eleitoral, mero paliativo) dificilmente será levada a
cabo por deputados e senadores que só têm a perder, com ela. Será que,
após a irrupção de junho de 2013, a sociedade brasileira aguardará,
pacientemente, que as instituições resolvam atender às suas exigências?
Fonte: Por ROBERTO AMARAL, CartaCapital - 23/09/2014 - - 07:34:14
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