segunda-feira, 28 de Setembro de 2015
Nurit Bensusan
Em
artigo de opinião, a assessora do ISA e especialista em Biodiversidade,
Nurit Bensusan, critica a nova lei que regula o acesso e exploração aos
recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados
Há cerca de uns dois meses, no lançamento dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, a presidente Dilma Rousseff saudou a mandioca como uma das relevantes conquistas do Brasil.
Foi alvo de inúmeras piadas.
Toda essa gozação foi extremamente reveladora: revelou a ignorância, a prepotência e o espírito colonizado de seus autores.
Por que ignorância? A mandioca é, de fato, uma importante conquista desse território. Conquista que data de cerca de sete mil anos atrás, quando a planta foi domesticada. De lá para cá, centenas de variedades foram desenvolvidas pelos povos indígenas amazônicos, em um trabalho de seleção e melhoramento, com resultados equivalentes ao que é feito por cientistas e empresas agrícolas.
Por que prepotência? Como a mandioca foi domesticada pelos índios e é cultivada por esses povos e por comunidades tradicionais, tende a ser vista como um alimento de segunda categoria, não tão importante como o trigo ou o arroz. Esses, sim, seriam exemplos dignos das conquistas da nossa espécie. Ou seja, aqueles que fizeram piada com a declaração da presidente valorizam o que a “ciência” e a “tecnologia” fazem, mas não estão dispostos a reconhecer o valor do conhecimento tradicional dos povos indígenas.
E por que espírito colonizado? Porque o que vem daqui, o que é desenvolvido por nós ou por povos indígenas que vivem ou viveram nesse território não merece reconhecimento. Nem a mandioca, nem a cultura e a língua dos índios, nem a nossa biodiversidade, nem nada. Quantos por aqui sabem que nesse país se falam quase 200 línguas? Quantos dão valor a essas culturas? Mas quantos acham interessantíssimo que na Espanha se fala basco e catalão, além do espanhol?
Apesar desses elementos estarem presentes no nosso cotidiano com muita frequência, talvez o melhor lugar para apreciá-los seja a discussão da nova lei de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional a ele associado, a chamada lei da biodiversidade (nº 13.123/2015). Depois da desastrosa tramitação e aprovação, acontecem agora os debates sobre sua regulamentação – e eles têm sido reveladores.
A facilidade com que o setor empresarial, principal usuário do patrimônio genético, concorda em criar dispositivos para proteger, rastrear e remunerar os conhecimentos tradicionais que serão, teoricamente, acessados pode surpreender os desavisados. A verdade é que isso acontece porque a maior conquista, o que realmente faz diferença para eles, já está na lei e não pode mais ser modificado: trata-se da separação total entre patrimônio genético e conhecimento tradicional.
A nova lei separou completamente o conhecimento tradicional do patrimônio genético, estabelecendo dois sistemas diferentes de acesso e de repartição de benefícios. Assim, o acesso ao patrimônio genético, independente de onde é feito, não precisa de consentimento prévio informado de ninguém e a repartição de benefícios é sempre feita com a União. O acesso ao conhecimento tradicional segue outros trâmites, que incluem a obrigação de consentimento prévio informado e de um acordo de repartição de benefícios (saiba mais no box abaixo).
Soma-se a isso um dispositivo da lei que diz que só haverá repartição de benefícios, derivada de acesso ao conhecimento tradicional, quando esse conhecimento for um dos principais elementos de “agregação de valor” do produto que vai ser colocado no mercado.
Tradução: os conhecimentos que estão amalgamados ao patrimônio genético – como aquele vasto conhecimento que está mesclado à mandioca, incluindo as técnicas de cultivo e manejo e os processos de seleção e melhoramento de variedades – não serão reconhecidos como conhecimento tradicional quando a planta ou o animal servir de base para outro uso qualquer.
Por exemplo, se alguém resolvesse fazer um creme facial com o amido da mandioca, segundo a lei, não haveria acesso ao conhecimento tradicional. O problema é que a mandioca de onde seria obtido o amido é resultado de milhares de anos de seleção e melhoramento promovidos pelos povos indígenas... Então?
Se estivéssemos falando de variedades melhoradas por empresas ou por pesquisadores, certamente não haveria dificuldade em reconhecer direitos de propriedade intelectual e todos achariam perfeitamente normal o pagamento pelo uso dessas variedades.
A nova lei, assim, mostra uma visão prepotente e ao mesmo tempo um espírito colonizado: dá valor ao que será feito a partir do nosso patrimônio genético em empresas e universidades, com a chancela da ciência, mas despreza o conhecimento ancestral, umbilicalmente ligado ao patrimônio genético, agindo como ele sequer existisse.
Nada de novo...
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos.
Tanto o patrimônio genético quanto esses conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene. Por isso, podem valer milhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, por isso é alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
O que é a “repartição de benefícios” prevista na nova lei?
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
Especialistas e representantes de movimentos sociais e organizações da sociedade civil afirmam que, da maneira como ficou o texto final da nova lei brasileira sobre o assunto, o direito à repartição de benefícios de comunidades indígenas e tradicionais foi prejudicado.
O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração.
Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido.
Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.
Há cerca de uns dois meses, no lançamento dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, a presidente Dilma Rousseff saudou a mandioca como uma das relevantes conquistas do Brasil.
Foi alvo de inúmeras piadas.
Toda essa gozação foi extremamente reveladora: revelou a ignorância, a prepotência e o espírito colonizado de seus autores.
Por que ignorância? A mandioca é, de fato, uma importante conquista desse território. Conquista que data de cerca de sete mil anos atrás, quando a planta foi domesticada. De lá para cá, centenas de variedades foram desenvolvidas pelos povos indígenas amazônicos, em um trabalho de seleção e melhoramento, com resultados equivalentes ao que é feito por cientistas e empresas agrícolas.
Por que prepotência? Como a mandioca foi domesticada pelos índios e é cultivada por esses povos e por comunidades tradicionais, tende a ser vista como um alimento de segunda categoria, não tão importante como o trigo ou o arroz. Esses, sim, seriam exemplos dignos das conquistas da nossa espécie. Ou seja, aqueles que fizeram piada com a declaração da presidente valorizam o que a “ciência” e a “tecnologia” fazem, mas não estão dispostos a reconhecer o valor do conhecimento tradicional dos povos indígenas.
E por que espírito colonizado? Porque o que vem daqui, o que é desenvolvido por nós ou por povos indígenas que vivem ou viveram nesse território não merece reconhecimento. Nem a mandioca, nem a cultura e a língua dos índios, nem a nossa biodiversidade, nem nada. Quantos por aqui sabem que nesse país se falam quase 200 línguas? Quantos dão valor a essas culturas? Mas quantos acham interessantíssimo que na Espanha se fala basco e catalão, além do espanhol?
Apesar desses elementos estarem presentes no nosso cotidiano com muita frequência, talvez o melhor lugar para apreciá-los seja a discussão da nova lei de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional a ele associado, a chamada lei da biodiversidade (nº 13.123/2015). Depois da desastrosa tramitação e aprovação, acontecem agora os debates sobre sua regulamentação – e eles têm sido reveladores.
A facilidade com que o setor empresarial, principal usuário do patrimônio genético, concorda em criar dispositivos para proteger, rastrear e remunerar os conhecimentos tradicionais que serão, teoricamente, acessados pode surpreender os desavisados. A verdade é que isso acontece porque a maior conquista, o que realmente faz diferença para eles, já está na lei e não pode mais ser modificado: trata-se da separação total entre patrimônio genético e conhecimento tradicional.
A nova lei separou completamente o conhecimento tradicional do patrimônio genético, estabelecendo dois sistemas diferentes de acesso e de repartição de benefícios. Assim, o acesso ao patrimônio genético, independente de onde é feito, não precisa de consentimento prévio informado de ninguém e a repartição de benefícios é sempre feita com a União. O acesso ao conhecimento tradicional segue outros trâmites, que incluem a obrigação de consentimento prévio informado e de um acordo de repartição de benefícios (saiba mais no box abaixo).
Soma-se a isso um dispositivo da lei que diz que só haverá repartição de benefícios, derivada de acesso ao conhecimento tradicional, quando esse conhecimento for um dos principais elementos de “agregação de valor” do produto que vai ser colocado no mercado.
Tradução: os conhecimentos que estão amalgamados ao patrimônio genético – como aquele vasto conhecimento que está mesclado à mandioca, incluindo as técnicas de cultivo e manejo e os processos de seleção e melhoramento de variedades – não serão reconhecidos como conhecimento tradicional quando a planta ou o animal servir de base para outro uso qualquer.
Por exemplo, se alguém resolvesse fazer um creme facial com o amido da mandioca, segundo a lei, não haveria acesso ao conhecimento tradicional. O problema é que a mandioca de onde seria obtido o amido é resultado de milhares de anos de seleção e melhoramento promovidos pelos povos indígenas... Então?
Se estivéssemos falando de variedades melhoradas por empresas ou por pesquisadores, certamente não haveria dificuldade em reconhecer direitos de propriedade intelectual e todos achariam perfeitamente normal o pagamento pelo uso dessas variedades.
A nova lei, assim, mostra uma visão prepotente e ao mesmo tempo um espírito colonizado: dá valor ao que será feito a partir do nosso patrimônio genético em empresas e universidades, com a chancela da ciência, mas despreza o conhecimento ancestral, umbilicalmente ligado ao patrimônio genético, agindo como ele sequer existisse.
Nada de novo...
Entenda a Lei de Acesso ao Patrimônio Genético
O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos.
Tanto o patrimônio genético quanto esses conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene. Por isso, podem valer milhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, por isso é alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
O que é a “repartição de benefícios” prevista na nova lei?
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
Especialistas e representantes de movimentos sociais e organizações da sociedade civil afirmam que, da maneira como ficou o texto final da nova lei brasileira sobre o assunto, o direito à repartição de benefícios de comunidades indígenas e tradicionais foi prejudicado.
O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração.
Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido.
Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.
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