Surto de construção de usinas planejadas na Amazônia vai eliminar
habitats de espécies que não existem em nenhum outro lugar do planeta,
alertam pesquisadores de EUA, Brasil e Reino Unido.
Por Claudio Angelo, do OC –
O cascudo-zebra (Hypancistrus zebra) não é empreiteiro nem político, não
está denunciado na Lava Jato e não levou um centavo de propina pela
usina de Belo Monte. No entanto, recebeu a pena mais dura de todas pela
construção da superfaturada hidrelétrica no Pará: a morte. Quando o
reservatório encher, secando a Volta Grande do Xingu, os pedrais onde
esse pequeno peixe ornamental vive ficarão rasos e quentes demais para
ele. Como só ocorre naquela região, o cascudo-zebra poderá ser extinto
na natureza.
O mesmo destino aguarda diversas outras espécies que habitam ambientes
únicos de rios amazônicos que cederão lugar a hidrelétricas. É o que
sugere um estudo publicado no periódico Conservation Biology por um
grupo de pesquisadores dos EUA, do Brasil e do Reino Unido.
Segundo o trabalho, que fez uma síntese da literatura científica
disponível sobre hidrelétricas e extinções na Amazônia, as 437 usinas
construídas, em implantação ou em projeto nos nove países amazônicos
(90% delas no Brasil) acabarão com habitats raros dos rios da região,
como corredeiras e pedrais. Nesses locais existe alta taxa de endemismo,
ou seja, de espécies que não existem em nenhum outro lugar do planeta.
Como corredeiras e pedrais também são os lugares que marcam desníveis dos rios amazônicos, é nessas áreas que os planejadores do setor hidrelétrico escolhem fazer barragens, que na maior parte dos casos afogam esses habitats (Belo Monte é uma exceção, pois provocará o efeito oposto).
Como corredeiras e pedrais também são os lugares que marcam desníveis dos rios amazônicos, é nessas áreas que os planejadores do setor hidrelétrico escolhem fazer barragens, que na maior parte dos casos afogam esses habitats (Belo Monte é uma exceção, pois provocará o efeito oposto).
Isso causa a extinção de peixes e plantas aquáticas que dependem do
pulso sazonal dos rios. E leva junto toda a fauna terrestre associada,
como morcegos, aves, roedores e anfíbios.
“Estamos, enquanto brasileiros, decretando o óbito de 3% a 5% da biota
amazônica”, disse ao OC o ecólogo paraense Carlos Peres, professor da
Universidade de East Anglia, no Reino Unido. Ele é coautor do estudo,
liderado por seu ex-aluno Alex Lees, hoje na Universidade Cornell, nos
EUA. Peres diz que o setor elétrico já mapeou todos os rios com
potencial hidrelétrico na Amazônia – que é onde está quase todo o
potencial hidrelétrico remanescente no Brasil. “Todos eles são
suscetíveis à expansão das usinas”, afirma.
Segundo os pesquisadores, as ameaças das hidrelétricas à biodiversidade
não se dão apenas pelo desmatamento induzido, mas também – e
principalmente – por mudanças nos ambientes aquáticos. As barragens
causam problemas aos peixes migratórios ao desconectar trechos de rios, e
a espécies adaptadas ao ambiente de corredeira, como os cascudos, ao
reduzir a velocidade da água, criando o que os cientistas chamam de
ambientes “lênticos”, ou de remanso.
Nesses ambientes, a oxigenação da água é mais baixa, o que prejudica algumas espécies muito especializadas para viver ali e favorece espécies mais generalistas, como as invasoras.
Nesses ambientes, a oxigenação da água é mais baixa, o que prejudica algumas espécies muito especializadas para viver ali e favorece espécies mais generalistas, como as invasoras.
As soluções de mitigação de impactos fornecidas pelos empreendedores não
conseguem evitar a formação desses ambientes lênticos e frequentemente
falham ao atacar a questão da desconexão. Na usina de Santo Antônio, no
rio Madeira, por exemplo, ficou famosa a “crise do bagre” – a antecipada
redução dos estoques comerciais de grandes peixes, que não conseguiriam
transpor a barragem para se reproduzir rio acima.
Os empreendedores gastaram milhões de reais construindo um canal lateral em forma de escada que simulava o ambiente pedregoso do fundo do rio, só para descobrir que os peixes não a utilizavam – seu instinto era seguir o curso principal do Madeira.
Os empreendedores gastaram milhões de reais construindo um canal lateral em forma de escada que simulava o ambiente pedregoso do fundo do rio, só para descobrir que os peixes não a utilizavam – seu instinto era seguir o curso principal do Madeira.
No caso de Belo Monte, as principais vítimas são os peixes que evoluíram
em micro-habitats, que são achados em alguns pedrais e não em outros
dentro da mesma Volta Grande. “Você tem graus incríveis de
microendemismo”, diz Lees. O cascudo-zebra, por exemplo, só foi
descoberto em 1991 e já está criticamente ameaçado de extinção.
Um dos coautores do novo estudo, Jansen Zuanon, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) está neste momento descrevendo uma nova espécie de cascudo ornamental que aparentemente só habita as zonas mais profundas da Volta Grande. As duas espécies podem ser muito impactadas ou extintas com a redução da vazão do rio naquela área.
Um dos coautores do novo estudo, Jansen Zuanon, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) está neste momento descrevendo uma nova espécie de cascudo ornamental que aparentemente só habita as zonas mais profundas da Volta Grande. As duas espécies podem ser muito impactadas ou extintas com a redução da vazão do rio naquela área.
Em alguns casos, capítulos inteiros da história da vida na Terra podem
estar em risco. É o caso das alfaces d’água (Podostemaceae), plantas que
dependem dos ciclos de cheia e seca dos rios encachoeirados da
Amazônia. Essas plantas formam uma “radiação adaptativa”, ou seja,
várias espécies surgiram muito rapidamente a partir de um mesmo
ancestral. Todas as espécies endêmicas de Podostemaceae estão ameaçadas
nos sítios de hidrelétricas.
Os próprios estudos de impacto das usinas têm revelado espécies novas,
como um sapo que acena em vez de cantar – porque ninguém conseguiria
ouvir o canto em meio ao som das corredeiras. Os cientistas temem que
algumas plantas e animais sejam perdidas antes de serem descritas.
“O que nós vemos no noticiário são preocupações com espécies
carismáticas de fauna de grande porte e com seres humanos. Mas as
grandes perdas são de peixes e grandes invertebrados”, afirma Lees, um
britânico que trabalhou durante seis anos no Museu Paraense Emílio
Goeldi, em Belém, antes de se mudar para os EUA. “Me incomoda que não
haja muitos estudos focando em extinções.”
Lees, Peres e colegas apontam o paradoxo de que várias das espécies
ameaçadas pelas usinas são protegidas por lei contra caça e
comercialização, por estarem na lista vermelha do Ibama – mas há
mecanismos legais para permitir sua extirpação completa por projetos de
hidrelétricas, sob os rótulos de “interesse social” e “utilidade
pública”.
“Nos EUA, a Lei de Espécies Ameaçadas veda qualquer projeto, por mais estratégico que seja, se há uma espécie ameaçada no caminho”, diz Carlos Peres. “No Brasil nós estamos presidindo o processo de extinção de várias espécies.”
“Energia limpa”
As hidrelétricas geram a maior parte da eletricidade do país hoje, e sua
expansão é defendida pelo governo como única opção para gerar energia
“limpa” e “firme” – embora dúvidas venham sendo levantadas sobre as
premissas que baseiam a expansão das barragens. A INDC, o plano
climático do Brasil para 2025 e 2030, prevê que 66% da matriz seja
hidrelétrica, o que incluiria a construção das polêmicas usinas do
complexo Tapajós, no Pará.
Peres e colegas defendem um freio de arrumação a essa expansão, sob pena de os cenários aventados pelo estudo se concretizarem. Segundo eles, todo o processo de licenciamento de usinas deveria ser revisto, incorporando a avaliação ambiental estratégica de toda a bacia – algo que o governo promete desde 2006, mas que nunca aconteceu de verdade no licenciamento de usinas, que começa depois que a decisão de construir já foi tomada. “O licenciamento é um processo sem dentes, para inglês ver”, diz Peres.
Relatórios de impacto ambiental precisam ser melhorados, e “em muitos casos, esses projetos precisam ser cancelados”, afirma o pesquisador paraense. Para ele, a ameaça de extinção a uma espécie endêmica deveria ser razão para cancelar uma hidrelétrica. A demanda adicional de energia poderia ser suprida com novas renováveis e, para a Amazônia, com pequenas centrais hidrelétricas. “Como maior país tropical do mundo e liderança em biodiversidade, o Brasil deveria se comportar de outra forma.”
Procuradas pelo OC, a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que planeja a
expansão hidrelétrica, e a Norte Energia, proprietária da usina de Belo
Monte, não se manifestaram até o fechamento deste texto.
Fonte: Envolverde
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