Do Jornal da Unicamp, nº 677
No Brasil, assim como no restante do
mundo, os bancos de germoplasma, unidades que armazenam recursos
genéticos de plantas, não constituem instrumentos de conservação da
agrobiodiversidade se não estiverem associados a outras ações de
preservação que levem em conta o papel das populações tradicionais e os
seus sistemas de cultivo.
A constatação faz parte da tese de doutorado
da antropóloga Laura Rodrigues Santonieri, defendida em 2015 no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a
orientação do professor Mauro William Barbosa de Almeida. De acordo com o
trabalho, a circulação do material genético contido nessas coleções
obedece principalmente à lógica comercial, que produz mais homogeneidade
que diversidade. A pesquisa foi contemplada recentemente com o Prêmio
Capes de Tese, na Área de Antropologia e Arqueologia.
A conquista do Prêmio Capes, conforme
Laura, foi um importante reconhecimento ao trabalho. “Fiquei muito feliz
com a premiação, visto que o desenvolvimento da pesquisa foi muito
desafiador”, relata. A antropóloga procurou identificar a interface
entre os sistemas agrícolas tradicionais, as instituições públicas de
pesquisa e as políticas científicas que operam sobre a diversidade
agrícola do país. Ela queria entender qual era o papel desempenhado por
esses atores no combate ao crescente processo de erosão genética
vegetal. “Um aspecto que pude constatar é que a relação entre esses
segmentos frequentemente é marcada pelo conflito”, revela.
A falta de entendimento ocorre, acredita a
antropóloga, pela própria tradição da ciência agrícola, que foi criada
sob os auspícios do conceito do desenvolvimentismo e do discurso do
combate à fome mundial. “Isso vem desde a criação da FAO [Organização
das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], em 1945. Os
pesquisadores que atuam na área têm compromisso com metas e resultados
que contribuam para o cumprimento de objetivos como o desenvolvimento de
cultivares melhoradas de alto rendimento capazes de aumentar a escala
de produção. Desse modo, poucos pesquisadores possuem interesse em
conhecer e investigar mais profundamente os sistemas agrícolas
tradicionais. Normalmente, eles se limitam a coletar material e só”,
explica.
Do lado dos agricultores familiares e
tradicionais e grupos de pesquisa parceiros, acrescenta Laura, também há
resistência em relação aos cientistas de instituições de pesquisa
agrícola como a Embrapa, que normalmente são classificados numa única
categoria: a de prepostos dos interesses do agronegócio. “Existe uma
clara falta de diálogo entre os atores envolvidos com o tema da
agrobiodiversidade. Penso que é preciso construir pontes que permitam
uma interlocução mais efetiva entre eles, tendo a conservação da
agrobiodiversidade como um objetivo comum e possível”, considera a
autora da tese.
Em seu trabalho, Laura desenvolveu uma
pesquisa etnográfica na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia,
instalada em Brasília. Lá, ela entrevistou pesquisadores e conheceu
alguns dos estudos desenvolvidos na unidade. Além disso, a antropóloga
também realizou uma ampla revisão bibliográfica sobre o tema “Aquela
unidade da Embrapa é muito fechada e muito permeável a questões
políticas porque dispõe da coleção de base do país e é responsável por
coordenar as atividades de todos os bancos de germoplasma do Sistema
Nacional de Pesquisa Agropecuária, que é bastante diversificado.
É a
partir dos bancos de germoplasma (só a Embrapa tem 46 unidades) que são
desenvolvidas novas variedades e cultivares lançadas no país. Ocorre que
as tecnologias geradas a partir das sementes armazenadas estão voltadas
principalmente às necessidades da indústria da agricultura. As
pesquisas são, em boa medida, orientadas por um interesse marcadamente
comercial”, aponta.
Esse interesse comercial se revela, com
frequência, na cooperação com empresas nacionais e estrangeiras que
investem recursos no desenvolvimento de sementes mais resistentes e
produtivas, mas que são inférteis [híbridas]. “Ou seja, as plantas
originárias dessas sementes não geram sementes que possam ser utilizadas
para a produção de outra safra. Isso obriga o agricultor a comprar mais
sementes para fazer um novo plantio. Por outro lado, ao favorecer a
monocultura em escala industrial, esse processo gera homogeneidade. É
por isso que um banco de germoplasma não pode ser considerado, por si
só, um recurso contra a erosão genética”, reforça.
Ao questionar os pesquisadores da Embrapa
sobre esse ponto, a autora da tese ouviu de boa parte deles que o
principal compromisso da estatal é garantir a segurança alimentar e
combater a fome no Brasil. “Não duvido que isso esteja sendo feito e nem
da importância desse posicionamento. Ocorre, porém, que esses objetivos
não estão sendo alcançados. Dados recentes revelam que 3/4 das pessoas
que passam fome no mundo vivem no campo, o que é uma imensa contradição,
visto que essas pessoas são agricultores”, destaca.
Ainda em relação ao banco de germoplasma,
Laura lembra que as coleções nele contidas estão disponíveis somente às
instituições pesquisa e empresas. “As comunidades e populações
tradicionais dificilmente conseguem ter acesso às sementes. Esse acesso
seria importante e ajudaria a conservar a agrobiodiversidade, uma vez
que essas comunidades fazem as variedades circular. Em algumas
comunidades do Rio Negro, por exemplo, quando a mulher se casa e muda de
localidade, ela ‘ganha uma roça de mandioca da sogra’. Só depois de um
tempo ela busca a ‘sua roça’. As dinâmicas locais são importantes porque
a circulação ajuda a gerar diversidade e assim garantir a sobrevivência
de muitas espécies”.
Ademais, as variedades melhoradas a partir
das plantas e sementes coletadas em determinadas regiões há dez ou
quinze anos nem sempre apresentam bom desempenho em relação às condições
locais quando são reinseridas, como alerta Laura. De acordo com ela,
assim que uma planta é coletada, ela cessa sua evolução. “Essa planta
deixa de dar seguimento, por exemplo, ao processo de adaptação às
mudanças climáticas, ao contrário do que ocorre quando ela está sob
cultivo. É esse processo evolutivo que assegura a sua adaptabilidade e
resistência. Nada garante que uma semente melhorada a partir de uma
planta que não passou por esse processo terá condições de sobreviver na
região da coleta daqui a dez anos”, compara.
A lógica desenvolvimentista que
influenciou ciência agronômica, contínua a autora da tese, tende a
encarar o mundo como se ele fosse uma máquina. “O que a comunidade
científica afirma é que sem a tecnologia agrícola não seria possível
garantir a segurança alimentar e o combate à fome. Entretanto, caminhos
alternativos jamais foram testados em larga escala. O discurso que
defende unicamente essa visão, no meu entender, deixa de fazer uma
reflexão crítica sobre os processos que estão sendo gerados por esse
modelo de pesquisa. Uma coisa é usar a ciência para fazer o melhoramento
genético de uma variedade de milho, de modo que ela se adapte às
características de uma colhedeira. Outra é usar a ciência para fazer o
melhoramento do milho com o objetivo de aumentar o seu valor nutritivo
com vistas ao incremento da alimentação humana, sem inferir na sua
fertilidade”, pondera.
Apesar de criticar na tese a visão
utilitarista da ciência, Laura volta a ressalvar que nem todos os
pesquisadores da Embrapa defendem uma mesma posição. “Muitos deles estão
de fato preocupados com a conservação da agrobiodiversidade e
reconhecem a importância do papel dos sistemas agrícolas tradicionais.
Da mesma forma, temos muitas ONGs, como o ISA [Instituto Socioambiental]
e o CAA/NM [Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas], que
atuam igualmente nessa frente. O grande obstáculo ao avanço dessa visão,
vale reafirmar, está na combinação da forte tradição da ciência
agrícola, da qual é muito difícil se desvencilhar, com a falta de
conexões que permitam um diálogo profícuo entre os setores envolvidos
com a conservação da agrobiodiversidade”, diz.
Ainda no que toca à questão mercadológica
da ciência agronômica, Laura cita que no interior das próprias
instituições de pesquisa agrícola há diferentes valorações relativas ao
tipo de investigação realizada. “Quem trabalha com biotecnologia e
melhoramento costuma ter mais prestígio do que quem faz pesquisa básica.
O cientista que faz pesquisa básica não tem, por exemplo, contato
direto com fontes de financiamento privado.
Ele está na outra ponta,
coletando semente, fazendo caracterização, acompanhando o ciclo de
desenvolvimento da planta. Institucionalmente, ele não tem tanto
reconhecimento. Isso também é paradoxal, dado que não é possível ter
pesquisa aplicada sem antes ter a pesquisa básica”, observa a
antropóloga, que contou com bolsa de estudo concedida pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e com apoio financeiro
da Fondation pour la Recherche sur la Biodiversité, da França.
Atualmente, a antropóloga integra o grupo de pesquisa Populações Locais,
Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais Associados, registrado
no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Publicação
Tese: “Agrobiodiversidade e conservação ex situ: reflexões sobre conceitos e práticas a partir do caso da Embrapa/Brasil”
Autora: Laura Rodrigues Santonieri
Orientador: Mauro William Barbosa de Almeida
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Fapesp e Fondation pour la Recherche sur la Biodiversité (França)
Jornal da Unicamp
Texto: Manuel Alves Filho
Fotos: Antonio Scarpinetti
Edição de imagem: André Vieira
in EcoDebate, 24/01/2017
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