Reflexões de fim de ano: preservar a natureza num país
pobre vai contra a justiça social?
Por Amelia Gonzalez
31/12/2018 10h39 Atualizado há uma semana
Por que salvar patos raros num país que figura entre os
menos desenvolvidos e mais pobres do mundo?
Começo assim, caros leitores, com uma pergunta, meu texto
que vai encerrar este ano e, talvez, acompanhá-los em uma divertida, leve,
gostosa parada no afã diário para as comemorações de praxe.
Gosto da ideia de
lançar uma dúvida, perspectiva de reflexões sobre um tema que tem sido o mote
deste espaço. Haverá conflito entre preservar a natureza e o desenvolvimento
humano?
Os patos em questão são de um marrom discreto e enriquecem a
biodiversidade de Madagascar, conhecido pela riqueza de seu patrimônio natural,
o que o faz ser um destino disputado para o ecoturismo. Cerca de 90% das
espécies encontradas no país, que tem uma distância razoável dos continentes
vizinhos, são endêmicas.
Ao mesmo tempo, o país que também é a quarta maior ilha do
mundo e tem uma população estimada em 22 milhões de pessoas, tem uma pobreza
que parece ser intrínseca. Cerca de 69% de sua população vivem com menos de um
dólar por dia. O PIB per capta é um dos mais baixos do mundo, embora a economia
tenha sentido um ligeiro avanço desde 2011. A economia do país está alicerçada
no turismo, na agricultura, nos têxteis e na mineração.
Crianças em Madagascar, na África, sofrem com a falta de
alimentos — Foto: Wagner Moura
Mas foi a piscicultura que fez mal aos patos, que hoje, 12
anos depois de terem desaparecidos, estão sendo reintroduzidos no bioma pelo
Wildfowl & Wetlands Trust (WWT), pelo Durrell Wildlife
Conservation Trust, pelo Peregrine Fund e pelo governo de Madagascar.
A
reportagem que conta esta história foi publicada no site do jornal britânico “The Guardian” e escolhi
justamente por ser uma mensagem de esperança numa época tão pouco auspiciosa
que estamos vivendo. Aconteceu assim: o diretor do Peregrine Fund, Lily-Arison
René de Roland estava trabalhando na conservação de outra espécie rara, a
tartaruga de Madagascar, quando viu os patos, que até então já se considerava
extintos, num lugar remoto nas montanhas.
Os pesquisadores passaram a acompanhar a rotina dos patos e
perceberam que eles não conseguiam sobreviver mais do que um mês porque
espécies de peixes não nativos introduzidos no lago agitavam as águas e
impediam que eles conseguissem alimento. A partir desta constatação, jaulas
escocesas de criação de salmão foram importadas do Reino Unido e serviram como
gaiolas para os patos, que em cativeiro conseguiram se reproduzir e hoje já
estão de volta a um habitat que lhes convém, o Lago Sofia.
A comunidade local foi convocada pelos pesquisadores para se
juntarem na tarefa de evitar que o lago tenha interferências exógenas.
Espera-se também que o aviário flutuante e as estações de alimentação encorajem
os patos a permanecerem ali e se reproduzirem. Conservacionistas têm trabalhado
para garantir que o habitat seja mais adequado do que outros lagos degradados
pela piscicultura.
Busquei ajuda para esta reflexão em “O Ecologismo dos
Pobres”, de Joan Martinez Alier (Ed. Contexto), escrito em 2007. Um livro que
vale a pena ser lido por quem se interessa pelos conflitos ambientais , sobre
como eles surgiram e como estão se configurando nesta nova era. Martinez é
espanhol, estudou economia agrícola nos Estados Unidos e está, atualmente, num
projeto subsidiado pelo governo espanhol, um banco de dados sobre Justiça Ambiental. O autor
afirma que o “culto ao silvestre” não ataca o crescimento econômico.
“Mesmo que inexistissem razões científicas, existem sem
dúvida alguma motivos estéticos e até utilitários (espécies comestíveis e
medicinais para o futuro) , que justificariam a preservação da natureza. Uma
outra motivação poderia ser o suposto instinto da biofilia humana. De resto,
alguns argumentam que as demais espécies possuem direito à vida e nessa acepção
não teríamos qualquer direito em eliminá-las... mais razoável seria, nas
Américas do Norte e do Sul, procurar respaldo numa realidade bem mais próximia:
a do valor sagrado da natureza nas crenças indígenas que sobreviveram à
conquista europeia”.
Para além do que chama de “fundamentalismo ecológico”, no
entanto, Martinez aponta o ecologismo dos pobres como uma corrente que cresce
e, esta sim, assinala que o crescimento econômico implica maiores impactos ao
meio ambiente, “chamando atenção para o deslocamento geográfico das fontes de
recursos e das áreas de descarte dos resíduos”.
“Os Estados Unidos importam metade do petróleo que consomem.
A União Europeia importa uma quantidade de materiais (inclusive energéticos)
quase quatro vezes maior do que a que exporta. Ao mesmo tempo, a América Latina
exporta uma quantidade seis vezes maior de materiais (inclusive energéticos) do
que aquela que é importada. O continente que constitui o principal sócio
comercial da Espanha, não em dinheiro, mas em quantidade importada, é a
África... Isso gera impactos que não são solucionados pelas políticas
econômicas ou por inovações tecnológicas e, portanto, atingem
desproporcionalmente alguns grupos sociais que muitas vezes protestam e resistem,
ainda que tais grupos não sejam denominados de ecologistas”.
Para além disso, lembra ele, enquanto as empresas químicas e
de sementes exigem remuneração por suas sementes melhoradas e por seus
praguicidas, solicitando que sejam respeitados seus direitos de propriedade
intelectual por intermédio de acordos comerciais, o conhecimento tradicional
sobre sementes, praguicidas e ervas medicinais tem sido explorado gratuitamente
sem reconhecimento.
Nem é um luxo, nem pode emergir somente como consideração a
valores sagrados. A consciência ambiental não pode desvincular o crescimento
econômico da expansão dos fluxos energéticos e de materiais, já que a pressão
ambiental da economia é especificada pelo consumo.
Assim como Martinez, que se especializou neste tema a ponto
de criar um mapa virtual com dados sobre os conflitos ambientais em todo o
mundo, outros pensadores empregam seu tempo analisando o desafio de nossa era.
Não é fácil. A reflexão começa com a aparente incompatibilidade entre se
preservar a vida de minúsculos patos enquanto vidas humanas estão abandonadas
num mesmo território.
A justiça social se faria sem isso?
Bom ano de 2019 para todos nós!!! Com muito trabalho, muitas
reflexões, muita saúde. E um pouco mais de dinheiro no bolso, que nunca é
demais.
Um comentário:
Na minha opinião as belezas naturais, assim como a fauna e a flora endémicas deveriam ser exploradas para fomentar um turismo ecológico e trazer renda para os locais.O conhecimento tradicional sobre sementes, praguicidas e ervas medicinais deveria igualmente ser protegido e servir de fonte de renda.Acho que os coitados dos patos não tem nada a ver com a crise económica do país que, sem eles, seria ainda mais grave. Os minúsculos patos não são um problema em si mas podem ser o primeiro passo para a solução pois podem ser um atractivo para o turismo ecológico. Caso não sejam protegidos serão comidos pela população e uma vez extintos não serviriam para mais nada. A protecção portanto é necessária pois pode vir a ser lucrativa.
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