Só um terço dos rios permanece como “rio de curso livre”
Por Jorge Eduardo Dantas
- Apenas 37% dos rios do mundo não têm prejuízos causados por poluição, hidrelétricas ou estradas;
- Nos últimos cinquenta anos, populações de vertebrados que dependem de bacias de água doce foram reduzidas em até 83%;
- Existem hoje cerca de 60 mil hidrelétricas no mundo inteiro, com mais 3,7 mil planejadas ou em construção para os próximos anos.
Apenas um terço - cerca de 37% - dos 246 grandes rios do mundo
ainda pode ser considerado um “rio de curso livre”, que é o status de
conservação em que mais oferece benefícios ambientais e serviços
ecossistêmicos, mostra um estudo publicado nesta quinta-feira, dia 9, na
revista cientifica Nature.
Esse estudo, feito por um grupo de 34 cientistas do WWF, da McGill
University, do Canadá, e de outras instituições, é resultado de um
trabalho de compilação e organização de dados e informações que vem
sendo feito desde 2015.
Foram analisados aproximadamente 12 milhões de quilômetros de rios
de todo o mundo, construindo o primeiro mapeamento a respeito do local e
extensão dos grandes rios de curso livre existentes no planeta.
Entre outros achados, os pesquisadores detectaram: apenas 21 dos 91
grandes rios do mundo –com mais de 1 mil quilômetros de extensão- que
correm para o oceano mantém uma conexão direta de sua nascente até o
mar.
Além disso, a maior parte dos rios de curso livre remanescentes
estão localizados em regiões específicas, como o Ártico, a Bacia
Amazônica e a Bacia do Congo.
Importância dos rios
Um “rio de curso livre” é um rio no qual as funções e serviços
ecossistêmicos não foram afetados por mudanças em sua conectividade
(como com a construção de hidrelétricas ou com a exploração mineral) e
preservam suas características naturais de vazão, biodiversidade e
qualidade de água. Via de regra, eles são considerados rios “íntegros” e
“saudáveis”.
Rios íntegros fornecem estoques pesqueiros que promovem a segurança
alimentar de milhões de pessoas, transportam sedimentos que mantém os
deltas dos rios acima do nível do mar, mitigam os impactos de secas e
alagações extremas, evitam a erosão e possibilitam a existência de flora
e fauna saudáveis.
Interromper a conectividade dos rios diminui, ou por vezes até
elimina, esses serviços ecossistêmicos. Proteger os rios de curso livre
remanescentes é crucial também para manter a biodiversidades dos rios de
água doce.
O Relatório Planeta Vivo 2018, mostrou que, das 16.704 espécies
analisadas em todo o planeta, os vertebrados que vivem nas bacias de
rios de água doce sofreram o mais vertiginoso declínio dos últimos 50
anos, com redução de até 83% de suas populações desde 1970.
Descobertas
Atualmente, as hidrelétricas e seus reservatórios são algumas das
piores ameaças aos grandes rios, reduzindo drasticamente os diversos
benefícios que eles fornecem para as pessoas e a natureza ao redor do
globo.
O estudo mostra que existem cerca de 60 mil hidrelétricas no mundo e
mais 3,7 mil delas estão planejadas ou em construção. Normalmente, elas
são planejadas e construídas uma a uma, o que dificulta a avaliação dos
impactos acumulados que elas trazem a uma bacia hidrográfica.
Contribuição brasileira
Uma das autoras do estudo é a especialista de conservação do
WWF-Brasil e Doutora em Ecologia Paula Hanna Valdujo. De acordo com ela,
o WWF-Brasil apoiou o refinamento dos conceitos do estudo apresentado
hoje a partir de sua experiência em bacias na Amazônia e no Pantanal.
“Nós auxiliamos no desenvolvimento de um protocolo para identificar
o que seria um rio de curso de livre. Analisamos as cargas de sedimento
e poluição para saber se eram excessivas ou não, a existência de
hidrelétricas e barramentos e a existência de estradas que interferissem
ou não no fluxo dos rios. Nosso conhecimento ajudou a elaborar o modelo
que está sendo apresentado”, explicou.
Alto Paraguai e Amazônia
A cientista afirmou ainda que, de maneira geral, foram
identificados poucos rios íntegros e saudáveis também no Brasil. “A
maior parte dos nossos rios estão fragmentados ou têm sua vazão regulada
por reservatórios de hidrelétricas. Muitos sofrem o impacto do
desmatamento e da ocupação de suas margens com pastagens, mineração e
plantações, que aumentam a quantidade de poluentes e sedimentos e afetam
a qualidade da água e a saúde do ecossistema”, afirmou Paula.
Atualmente, o WWF-Brasil se dedica a aplicar o modelo deste estudo
para fazer uma análise mais profunda da bacia Amazônica e da bacia do
Alto Paraguai. “Este primeiro estudo é global, então você não consegue
entrar muito nos detalhes de cada bacia hidrográfica. O que estamos
fazendo agora é um estudo mais focado e que nos permite ver com mais
detalhes uma região específica”, explicou Paula.
Ameaça ao turismo
Ambas as regiões estão altamente ameaçadas por iniciativas que
comprometem a vazão natural dos rios. Na bacia do Tapajós, na Amazônia,
existem mais de 100 projetos hidrelétricos de pequeno ou grande porte,
que ameaçam a integridade dos rios.
Tais projetos podem trazer graves consequências para as espécies de
peixes que se reproduzem nas lagoas que se formam nas margens dos rios e
para os peixes que vivem nas corredeiras. Além disso, eles também
impedem a migração de espécies importantes para a pesca, que sustenta as
comunidades ribeirinhas.
A regulação da vazão dos rios que formam o Tapajós ameaça ainda a
existência de um dos mais importantes pontos turísticos da Amazônia, que
são as praias de Alter do Chão.
Ausência de avaliações
No Alto Paraguai, o problema é a instalação de pequenas centrais
hidrelétricas – que ameaçam tanto os rios barrados, em função do
isolamento, quanto o regime de inundações do Pantanal, que depende dos
pulsos naturais de seca e cheias dos rios. Além de perda de
conectividade, a interrupção dos fluxos naturais dos rios ameaça todo o
ecossistema que existe abaixo, na Planície Pantaneira.
A ausência de avaliações ambientais estratégicas, que levem em
consideração o impacto cumulativo de múltiplos empreendimentos nas
bacias, assim como a transferência da responsabilidade do licenciamento
dos órgãos federais para os estaduais, dificulta ainda mais o
planejamento adequado para a manutenção dos poucos trechos remanescentes
de rios livres no país.
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