Jornal da USP
Você sabia que a água que você consome em sua casa pode não estar
totalmente livre de impurezas? Esse risco existe quando produtos que
utilizamos no dia a dia, como remédios, protetores solares e itens de
higiene pessoal são encontrados em rios que abastecem municípios. As
estações de tratamento de água não conseguem remover completamente esses
compostos, já que não possuem equipamentos apropriados para a tarefa.
Batizados de contaminantes emergentes,
essas substâncias desafiam há anos centenas de cientistas brasileiros a
buscarem soluções eficientes e a entenderem os impactos que elas podem
causar ao meio ambiente e aos seres vivos
Segundo o professor Eduardo Bessa Azevedo, do Instituto de Química de
São Carlos (IQSC) da USP, o Brasil ainda não possui uma legislação que
determine quantidades seguras desses contaminantes na água.
São substâncias encontradas em pequenas concentrações, mas que, se consumidas por anos, podem trazer algum risco”, alerta.
Estudos indicam que o lançamento não controlado de fármacos nos
corpos d’água pode, por exemplo, gerar o desenvolvimento de
microrganismos resistentes a antibióticos. Caso haja a ingestão dessa
água contaminada, seres humanos e animais estão sujeitos a problemas
como disfunções no sistema endócrino e reprodutivo, além de distúrbios
metabólicos. Diversos compostos químicos são capazes de interferir no
metabolismo, entre eles, destacam-se os que estão presentes em
hormônios, anti-inflamatórios, antidepressivos, hidrocarbonetos
poliaromáticos e pesticidas.
A falta de efetividade no combate aos contaminantes emergentes
preocupa os cientistas e acende o sinal de alerta na sociedade. “As
estações de tratamento d’água (ETAs), basicamente, trabalham para
retirar sua turbidez e torná-la potável. Elas têm uma capacidade
limitada de remoção desses contaminantes, pois foram projetadas numa
época em que não existia essa demanda”, explica o docente. De acordo com
o Instituto Trata Brasil, quase 35 milhões de brasileiros não têm
acesso ao abastecimento de água tratada. Em 2016, uma em cada sete
mulheres do País não tinha acesso à água, enquanto 7,5% das crianças e
dos adolescentes não possuíam água filtrada ou vinda de fonte segura.
A ciência entra em cena
Há algumas décadas, pesquisas têm chamado a atenção sobre os
possíveis danos que os contaminantes emergentes podem causar aos
recursos hídricos, fato que impulsionou o interesse da comunidade
científica em busca de soluções para identificação, monitoramento e
remoção dessas substâncias.
No IQSC, o Laboratório de Desenvolvimento de
Tecnologias Ambientais (LDTAmb) está envolvido nesse desafio, criando
alternativas promissoras. “Diferentemente das tecnologias tradicionais,
as quais amenizam o problema da poluição, mas não o resolvem, as
pesquisas desenvolvidas em nosso laboratório se preocupam em realmente
destruir os contaminantes. Não basta reduzirmos a concentração de
determinada substância se ela ainda continua com sua função biológica
ativa, podendo trazer algum perigo”, afirma o professor Eduardo, que
coordena o LDTAmb.
Uma das pesquisas desenvolvidas no Laboratório da USP é a de Maykel
Marchetti, doutorando do IQSC. Após realizar um levantamento, o
pesquisador descobriu quais eram os fármacos mais prescritos e
consumidos no Brasil e, a partir dessa relação, determinou as quatro
substâncias químicas mais prováveis de serem encontradas na água. São
elas: paracetamol (analgésico), cetoprofeno (anti-inflamatório),
diclofenaco (anti-inflamatório) e o ácido salicílico (utilizado no
tratamento da acne). Com essas informações em mãos, Maykel desenvolveu
um método analítico capaz de detectar e quantificar, simultaneamente,
todos esses quatro fármacos em água e aplicou uma técnica para
degradá-los, que funciona através de uma reação química envolvendo
peróxido de hidrogênio (água oxigenada), oxalato de ferro e luz (LED).
“Essa técnica nos permitiu fazer o tratamento da água em condições
semelhantes às adotadas nas ETAs”, explica.
No laboratório, o pesquisador testou o procedimento de degradação
proposto. Após dissolver os quatro contaminantes em água, adicionou à
solução o oxalato de ferro e o peróxido de hidrogênio. Em seguida, a
água foi colocada dentro de um reator com LEDs, onde ficou por
aproximadamente 25 minutos reagindo. “Nós utilizamos uma concentração de
contaminantes até um milhão de vezes maior do que a encontrada nas
águas e, mesmo assim, atingimos uma porcentagem de 95% de degradação. No
entanto, vale ressaltar que isso não significa que eles foram
totalmente removidos, mas sim transformados em outras substâncias que
precisam ter sua toxicidade analisada”, afirma o doutorando, que
apresentou seu trabalho no 47º Congresso Mundial de Química da União Internacional de Química Pura e Aplicada (IUPAC), que aconteceu em Paris (França) entre os dias 5 e 12 de julho.
Para validar seu método de detecção e quantificação dos fármacos,
Marchetti estudou as águas superficiais de São Carlos, responsáveis pela
metade do abastecimento do município, por meio do Córrego Espraiado e
do Ribeirão Feijão. Durante um ano, o pesquisador coletou amostras
mensais de água dos pontos de entrada e saída da estação de tratamento
da cidade e, felizmente, não foi identificado nenhum dos quatro fármacos
pesquisados. Contudo, um estudo realizado
pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2014 revelou, após
três anos de análises, a presença de cafeína, paracetamol, atenolol e
dos hormônios estrona e 17-β-estradiol no Rio Monjolinho. Embora ele não
seja utilizado para abastecimento público, os pesquisadores se
preocupam com a conservação dos recursos hídricos e a proteção da vida
aquática.
Planeta afetado
Os contaminantes emergentes já se tornaram um problema global, tendo
sido encontrados em dezenas de países, inclusive no Brasil. Em Campinas
(SP), amostras de ácido salicílico, paracetamol e cafeína já foram
identificadas no Córrego Anhumas. Além de atuar como um indicador de
contaminação por fármacos, a cafeína pode causar, em altas
concentrações, problemas aos peixes, como a diminuição da capacidade de
locomoção e a morte de embriões. Outra substância encontrada em águas
brasileiras foi o diclofenaco, confirmada no Rio Pinheiros, na capital
paulista, e no Rio Paraíba, que banha o Estado paraibano. Em âmbito
internacional, rios de países como Estados Unidos, Espanha, Suíça e
Costa Rica já sofrem com a presença desses contaminantes.
O descuido quanto ao descarte irregular de remédios é uma das
principais causas do aparecimento desse tipo de contaminante na água.
Despejar produtos vencidos na pia ou em vasos sanitários, por exemplo,
faz com que as substâncias cheguem até rios e mananciais. Embora a
mudança de alguns hábitos seja essencial para não acentuar ainda mais o
problema, causas naturais também contribuem para essa contaminação.
Afinal, parte do remédio que tomamos não é metabolizada pelo nosso
organismo, sendo eliminada via urina, fezes ou suor. Situação semelhante
ocorre quando tomamos banho após a utilização de protetor solar,
ocasião em que o produto é eliminado pelo ralo, podendo chegar tanto a
águas superficiais como subterrâneas. Por sua vez, fármacos utilizados
na agropecuária também são capazes de contaminar os recursos hídricos.
Segundo a última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, realiza pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 71,8% dos
municípios brasileiros não apresentavam políticas de saneamento e, em
48,7% deles, não havia órgão fiscalizador da qualidade da água. Já de
acordo com o Atlas Esgotos: Despoluição de Bacias Hidrográficas, divulgado
em 2017 pela Agência Nacional das Águas (ANA), menos da metade dos
esgotos do País é coletado e tratado e apenas 39% da carga orgânica
gerada diariamente no Brasil é removida pelas estações de tratamento de
esgoto antes dos efluentes serem lançados em rios.
Fazendo o dever de casa
Ações para melhorar a qualidade da água não podem se restringir
apenas aos cientistas. Segundo o Instituto Trata Brasil, mais de 3,5
milhões de brasileiros, nas 100 maiores cidades do país, despejam esgoto
irregularmente, mesmo tendo acesso a redes coletoras. Pequenas
atitudes, se feitas em grande escala, podem ajudar a evitar uma
contaminação ainda maior.
Segundo o professor Eduardo Bessa Azevedo, comportamentos que
contribuam para a manutenção dos recursos naturais devem começar dentro
de nossas casas. Afinal, não existe o “jogar fora”, pois, na verdade,
tudo o que descartamos sempre irá para algum lugar, podendo gerar
grandes prejuízos se feito de maneira impensada. Por isso, o docente faz
um pedido: “Não descarte produtos em locais incorretos e evite usar
água para o que não for necessário, como lavar a calçada. Se puder fazer
limpeza a seco, priorize-a. As pessoas pensam que atitudes isoladas não
trarão nenhuma melhora, mas imagine se todos resolvessem ajudar.”
Preocupados com o futuro de nossa água, os cientistas da USP
continuarão em busca de novas alternativas para combater os
contaminantes emergentes e, sem dúvida, motivações não irão faltar. “É
uma questão de saúde pública, e trabalhar no desenvolvimento de soluções
para o problema nos dá a certeza de que estamos fazendo o nosso papel”,
finaliza Marchetti.
Com informações de Henrique Fontes – Assessoria de comunicação do IQSC/USP
Do Jornal da USP, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 25/07/2019
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