por Roberto Waack, diretor presidente da Fundação Renova –
“Encontrei hoje, separadamente, dois amigos meus que se haviam
zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que haviam
se zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas
razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda razão. Não era que um via
uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e o outro um
lado diferente. Não: cada um via as coisas com um critério idêntico ao
outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha
razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.” (Fernando Pessoa)
A reparação do Rio Doce, após o rompimento da barragem de Fundão, em
Mariana, é um dos eventos mais discutidos na agenda ambiental e social
do país. O desastre em si também. As formas de exposição são as mais
variadas possíveis. Em uma única semana, Comissão Parlamentar de
Inquérito de Brumadinho, em Belo Horizonte, e Congresso Brasileiro de
Jornalismo Ambiental, em São Paulo. Isso é muito positivo. Os dois
eventos com um objetivo comum: a busca do entendimento do problema e de
suas soluções. Sociedade atenta e protagonista. Um dos inquestionáveis
avanços oriundos desse triste acontecimento.
‘’Acontecimento? Como assim? Foi crime!”, brado comumente ouvido nos
diferentes fóruns. Argumentação que se adiciona a outras qualificações:
evento, acidente, desastre, tragédia, homicídio.
Aos poucos, o caso é aprofundado, apesar de a maior parte das
manifestações ainda ter enfoque no binômio “se não prendeu e pagou, nada
foi feito”. A pressão é válida e compreensível, mas não suficiente. As
duras e, na maior parte das vezes, honestas manifestações, demandam
maior celeridade e efetividade das realizações feitas na reparação.
Costumo repetir meu entendimento de que muito foi feito, mas ainda há
muito a fazer. Sem surpresas, o acolhimento desta posição é mínimo. Não
reclamo, aceito que a permanente pressão é necessária, mas não
suficiente.
É preciso aprofundar a discussão sobre os mecanismos e desafios da
reparação. Aos poucos, avançamos. Na CPI de Brumadinho, o representante
do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Thiago Alves, trouxe
contribuição sobre como abordar desastres dessa natureza. Não
conseguirei expressar aqui a contundência como o ativista apresenta seus
argumentos, mas me permiti tentar reproduzi-los porque acredito na sua
relevância: a) o direito à reposição dos danos causados, b) o direito à
mitigação dos danos, c) o direito à indenização, d) o direito ao
reconhecimento de danos morais, e) o direito à compensação, f) o direito
ao retorno da normalidade da vida dos atingidos e, se não for possível,
a alternativas justas, g) o direito à plena manifestação, pelos
atingidos, sobre satisfação com a reparação. A esses pontos somam dois
outros de natureza mais ampla: i) esses direitos não são mutuamente
excludentes, mas sim cumulativos e, j) a sociedade tem o direito à não
repetição de eventos semelhantes.
Esses elementos se referem ao conceito da reparação integral.
Inquestionável argumento que se adiciona ao difícil, mas frequentemente
construtivo e quase permanente embate com o Ministério Público. Assim
avança a reparação do Rio Doce, um esforço coletivo envolvendo mais de
70 organizações integrantes do Comitê Interfederativo e suas Câmaras
Técnicas, que orientam e monitoram a Fundação Renova no ambíguo, incerto
e volátil contexto dos diferentes desastres do Rio Doce: o histórico de
quase um século de desmatamento, ocupação desordenada, desassistência e
abandono pelo Estado. Situação terrivelmente agravada pelo segundo
desastre, o do rompimento da barragem de Fundão e suas consequências
agudas e as decorrentes dos próprios desafios da reparação.
No Congresso Brasileiro de Jornalismo Ambiental, discutiu-se o papel
da imprensa em situações como o rompimento das barragens, o desmatamento
e desastres naturais decorrentes de mudanças climáticas. Tratou-se da
pertinência de uma narrativa menos focada na desgraça: caloroso debate
sobre a necessidade de expor desastres como o da Barragem de Fundão.
Sim, absolutamente necessário expor externalidades (agudas e
consubstanciadas como a das barragens, ou mornas, crônicas e
subapreciadas como as do uso inadequado do solo e ativos hídricos).
Externalidades devem ser expostas amplamente, mas não é o suficiente…
A Coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura estuda como comunicar
essas situações. O Forest Stewardship Council – conhecido selo FSC,
depara-se com esse dilema há décadas. Como conscientizar e mobilizar a
sociedade para evitar, reparar ou mitigar essas situações. As matérias
jornalísticas e campanhas são, na sua maior parte, críticas.
Necessárias, mas não suficientes…
É preciso aprofundar o debate. Qual o melhor modelo para lidar com
transformações socioambientais? Não tenho a menor dúvida de que devem
ser participativos. Também não hesito em defender que contemplem todas
as partes afetadas, englobem as distintas instâncias dos poderes
Executivo e Legislativo nos âmbitos federal, estadual e municipal e
tangenciem de perto o campo judicial (evitando exclusiva dependência
dele).
Que incorporem a melhor ciência, o conhecimento e os distintos
matizes ideológicos trazidos por entidades da sociedade civil. Que se
assentem sobre sistemas de governança robustos e legítimos. Que entendam
a extensa participação e controle social como complexa e, muitas vezes
morosa, pois, assim como a democracia, é imperfeita e demanda contínuo
aprendizado e ajustes. Que consigam lidar com as diferentes “verdades”,
da forma como Pessoa ilumina. Por isso acredito na alternativa da
Fundação Renova como a que mais se aproxima da realidade que desafios
desta monta suscitam.
Inevitável a lembrança do conto “O Carvão Amarelo”, do escritor russo
Sigismund Krzyzanowski.
Em um mundo absolutamente degradado e exaurido,
a alternativa para manter a produção foi captar a energia oriunda da
tensão e do ódio entre as pessoas, em um ambiente insuportavelmente
populoso. A tecnologia – sistemas de captação de energia por contato com
placas instaladas em transportes públicos, cadeiras e outros pontos –
tem sucesso absoluto, restaurando a prosperidade. No entanto, a
capacidade de geração energética se exaure progressivamente, com a
sensação de um certo bem-estar, e consequente redução do ódio entre os
habitantes. O bem-estar oriundo da sensação de dever cumprido que a
expressão da raiva traz ( … o prazer do ódio – Lord Byron), no entanto,
não resulta na melhor convivência e busca pelo entendimento.
Desculpem o spoiler: a aposta no ódio gera torpor, imobilismo, proteção reativa e apatia. “(…)
já não era possível encontrar as inteligências raivosas, aquelas
inspirações iradas, as penas afiadas como ferrōes molhadas na bile. As
tintas aguadas, sem mistura de sangue e bile, sem qualquer fermentação,
só conseguiam produzir garatujas de ideias confusas, tolas, como
borrões. A cultura morria sem glória, sem estrépito. (…) e na entropia
crescente da raiva desaparecida não poderia nem mesmo surgir um escritor
capaz de narrar dignamente o fim de uma época ”. O autor do conto desapareceu na União Soviética, em meados do século passado.
Como ir além da (necessária, mas não suficiente) narrativa da
desgraça? Não vejo outra alternativa além de um diálogo com profundidade
sobre como lidar com a complexidade dessas situações, mobilizando toda a
sociedade, de uma forma construtiva. (Fundação Renova)
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