Em meio a desmatamento recorde, projetos tentam recuperar a Amazônia
22 Dec 2019
ANA LUCIA AZEVEDO* Enviada especial ala@oglobo.com.br CANARANA (MT) * A repórter viajou a convite da Conservação Internacional
Em meio a um dos piores anos da história recente da Amazônia, em que o desmatamento cresceu 29,5% —o maior percentual em duas décadas —, um angelim abraça um jatobá num rincão do Brasil onde o domínio da floresta só existe no mapa. Na terra, reina a soja.
Os dois brotaram juntos numa floresta nascida por obra humana, na Bacia do Xingu, Mato Grosso, uma das áreas mais desmatadas do país. O abraço das árvores mostra que é possível restaurar a Amazônia sem prejuízo para a produção. Além de possível, é necessário. Estudo publicado na semana passada na revista “Science Advances” mostrou que áreas da Amazônia, como a região do Xingu, já caminham para a savanização, com consequências para o clima local. E a forma de evitar o desastre é justamente restaurar a mata.
A restauração é resultado do trabalho pioneiro do Instituto SocioAmbiental (ISA) e da Rede de Sementes do Xingu, iniciado há 12 anos, e que já plantou cerca de 6 mil hectares de florestas. Eles agora estabeleceram parceria com a Conservação Internacional (CI) para restaurar 296 hectares ou 800 mil árvores no Xingu ao custo de R$ 3 milhões. O projeto contempla levar para outras áreas a bem-sucedida iniciativa, que combina ciência e conhecimento tradicional e coloca no mesmo barco produtores rurais, agricultores familiares e povos indígenas. Juntos, eles têm semeado florestas e colhido água.
A cadeia produtiva da restauração oferece renda para os coletores de sementes e possibilita aos produtores rurais se regularizarem de acordo com o Código Florestal, além de proteger e recuperar recursos hídricos, salienta Heber Queiroz Alves, coordenador de Restauração Florestal do ISA na Bacia Xingu-Araguaia. Em meio a uma das mais importantes regiões de produção de soja do Brasil — o Mato Grosso responde por 28% da safra 2018-19 —, o trabalho se insere num projeto mais amplo da CI, para restaurar 100 mil hectares em ações diretas e outro tanto em apoio a parcerias e fortalecimento do Código Florestal na Amazônia até 2025. Chamado de Amazônia+, é o mais ambicioso projeto de restauração do bioma. Ainda assim, pouco perto do que foi perdido.
Só neste ano, o Brasil desmatou cerca de um milhão de hectares. O tempo de derrubar se conta em dias; o de restaurar, em séculos. — Restaurar 100 mil hectares é um imenso desafio. Mas precisamos conectar a paisagem, ligar os fragmentos e recuperar serviços da mata, como água e controle de erosão e do clima —explica Bruno Coutinho, diretor de Gestão do Conhecimento da CI. —Para recompor a biodiversidade serão necessários, talvez, séculos. A estrutura da floresta não volta logo, mas os serviços, em alguns anos, sim.
UM BOM NEGÓCIO
Os pesquisadores calculam que cada hectare restaurado de floresta tenha até 7 mil plantas e custe R$ 10 mil, sendo R$ 2,4 mil em sementes na técnica do ISA/Rede. Um custo pequeno para os grandes produtores, mas inalcançável para os pequenos, diz Coutinho.
É aí que entra a Articulação para a Restauração da Amazônia, que reúne mais de 50 instituições, como CI e ISA, para conciliar interesses e captar recursos. — É um bom negócio para os produtores envolvidos e eles precisam ser reconhecidos. Não é correto que carreguem má fama e tenham prejuízos decorrentes das ações daqueles que agem com irresponsabilidade — observa Alves.
Ele acrescenta que, neste ano, o desmatamento voltou a crescer na região, onde é considerado consolidado, e, na verdade, sobrou pouca Amazônia para derrubar. Canarana (MT), um dos principais municípios, segundo o Prodes/Inpe, teve o maior desmatamento de Floresta Amazônica desde 2008. Eloir Bólico, gerente-geral da fazenda de soja Rancho 60, do grupo AFB, em Bom Jesus do Araguaia, lamenta que o produtor rural seja visto como inimigo. Na Rancho 60 é feita a restauração de Áreas de Preservação Permanente (APPs, que protegem matas ciliares, nascentes e cursos d’água) há 12 anos. Entre elas está a floresta do angelim e do jatobá que se abraçam.
— Não é justo. Produzimos alimentos e temos nos comprometido em recuperar nossas APPs. Vimos os benefícios da restauração, como água mais limpa, menos erosão, mais polinizadores. O clima do planeta está bagunçado, a seca tem avançado, a gente tenta se adaptar —diz Bólico.
IMPÉRIO DA SOJA
Visto do céu, o nordeste do Mato Grosso, onde o Cerrado se encontra com a Amazônia, é um oceano de soja pontilhado por ilhotas do que restou de floresta, mantida em APPs e reservas legais por obra e graça do Código Florestal.
A floresta do angelim e do jatobá é uma dessas ilhotas, cercadas por soja até além de onde a vista alcança. Ali, a Amazônia em quase nada lembra a selva majestosa mais ao Norte. A florestinha foi semeada para proteger um curso d’água, uma APP, num dos primeiros trabalhos do ISA e da Rede do Xingu na região.
O teto verde de copas frondosas, 30 a 40 metros acima do solo, que nem o sol consegue atravessar e é típico da Amazônia, nela ainda é um telhadinho, que não passa de 15 metros de altura. Mas, ainda assim, oferece trégua para o calor escorchante dos campos de soja, onde a única sombra é a nossa. Protege a água e atrai animais tão grandes quanto onças e antas, duas rainhas das selvas brasileiras. A cientista Joice Ferreira, da Embrapa Amazônia Oriental, em Santarém (PA), explica que as matas restauradas levarão séculos para recuperar a biodiversidade e os serviços ambientais das nativas. Ainda assim, são essenciais. O melhor e mais barato é não desmatar. Mas as matas restauradas são muito melhores do que nada, frisa. Se deixada em paz, a floresta restaurada vicejará. Um dia, daqui a muitas décadas, o angelim deixará o jatobá, seu irmão de criação, para trás e se tornará um dos gigantes amazônicos. Um exemplar de sua espécie detém o recorde de árvore mais alta da Amazônia, pois, neste ano, foi encontrado uma de 88 metros de altura, no Pará. Euclides da Cunha disse certa vez que a Amazônia era “a última página ainda a escrever-se do Gênesis”. Quem viver, literalmente, verá.
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