O governo federal planeja escavar e dragar milhões de metros cúbicos de rochas e areia do leito de um dos mais importantes rios da Bacia Amazônica para ampliar a Hidrovia do Araguaia-Tocantins. O projeto aprofundará o Tocantins para permitir o transporte rápido de soja e minérios para a China e a Europa.
Além de ameaçar a subsistência de populações ribeirinhas, com implosão de áreas de pesca, a obra vai afetar praias fluviais onde tartarugas amazônicas depositam seus ovos. O boto-do-araguaia (Inia araguaiaensis), uma espécie ameaçada, também sofrerá o impacto da hidrovia, assim como espécies endêmicas de peixe.
A meta do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) é implodir e dragar um trecho total de 212 quilômetros do Rio Tocantins. A obra representará o derrocamento de 35 quilômetros de rochas de um trecho do Pedral do Lourenço, uma paisagem de importância histórica e biológica nessa região do Pará.
A bacia do Araguaia-Tocantins é a segunda maior do Brasil, com cerca de 3 mil quilômetros de “potencial navegável”, de acordo com o DNIT. Na estação seca, segundo o departamento, as rochas do Pedral do Lourenço são um “impedimento” ao tráfego de barcaças.
A empresa contratada para realizar a obra, a DTA Engenharia, de São Paulo (e sua parceira O’Martin Serviços e Locações Ltda.), diz que precisará remover 986.541 metros cúbicos de rocha ao longo de dois anos e meio – a previsão hoje é de início em 2021. Além disso, a DTA precisará dragar uma extensão de 177 quilômetros, escavando quase 6 milhões de metros cúbicos de areia e despejando o material nas praias onde as tartarugas desovam.
O Rio Araguaia nasce perto de Brasília, atravessa o Cerrado e segue para o norte em direção à Amazônia, onde deságua no Rio Tocantins pouco antes de Marabá, já no Pará. O rio então corre para o norte, passando pelo Pedral do Lourenço e pelas eclusas da barragem de Tucuruí até chegar ao porto industrial de Vila do Conde, perto de Belém, a 155 quilômetros do Oceano Atlântico. Para o DNIT, o porto da capital paraense tem uma “localização privilegiada”. Além de soja e milho, a hidrovia industrial transportaria para mercados estrangeiros petróleo, combustível, caminhões e produtos de mineração.
Tartarugas, botos e peixes sob ameaça
Em comunidades como Vila Belém, Praia Alta, Vila Redonda, Santo Antonino, Cajazeiras e Vila Tauiri, os ribeirinhos estão diante de um horizonte assustador. O Rio Tocantins é seu meio de transporte, sua fonte de renda e sua identidade. Mas as obras da hidrovia irão dinamitar, dragar, escavar o leito para construir portos industriais. Depois, o tráfego de barcaças limitará a pesca a uma faixa de 100 a 145 metros da largura do rio.Antes de dinamitar cada trecho, a DTA Engenharia pretende disparar um tiro de alerta, que, alega a empresa, fará os peixes nadarem para longe. Para os pescadores, porém, o ruído alto vai paralisar os peixes, que depois fugirão para águas mais profundas no Pedral do Lourenço – e não para longe – para ali encontrar o seu fim.
O biólogo Alberto Akama, do Museu Paraense Emilio Goeldi, diz que os pescadores estão certos: os peixes que habitam as corredeiras não evoluíram para fugir, como a DTA acredita. “Ao contrário, os peixes entrarão mais fundo nas cavidades da rocha. É assim que se protegem. Então [a empresa] dinamitará as rochas, e todos os peixes morrerão.”
Para reduzir os custos da obra, a DTA planeja ainda despejar 5,6 milhões de metros cúbicos de areia do leito do rio nas praias onde tartarugas amazônicas depositam dezenas de milhares de ovos – em vez de transportar a areia para outro lugar.
Essa operação poderá ser o fim de um bem-sucedido programa de manejo feito pelas comunidades. Desde julho de 2017, pescadores colaboram com pesquisadores para coletar ovos de tartaruga, criar os filhotes e depois soltá-los. A barragem de Tucuruí, rio acima, formou um reservatório que inundou e eliminou os locais de desova, transformando as praias do Pedral do Lourenço num habitat crucial para a tracajá (Podocnemis unifilis) e a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa).
Outra espécie emblemática da região e vulnerável ao projeto é o boto-do-araguaia. Em 2014, Mariana Paschoalini Frias, pesquisadora do Instituto Aquilie, ajudou a Fundação Omacha e o Instituto Mamirauá em uma pesquisa populacional no trecho de 500 quilômetros da futura hidrovia entre Marabá e Belém. O estudo, publicado em abril, revelou que restam ali apenas 1.083 botos-do-araguaia.
A população reduzida provavelmente se deve às sete grandes hidrelétricas da bacia. E a hidrovia poderá diminuir ainda mais o número de botos. Para Mariana, a intervenção provocará uma alteração enorme nos sedimentos do rio. “Haverá muito barulho e movimento intenso de navios. A diversidade e a abundância de peixes será afetada. Como resultado, os botos perderão seu habitat e a disponibilidade de alimentos”, explica a bióloga.
Peixes também estão ameaçados. Com as obras de dragagem, alerta Cristiane Cunha, bióloga da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará que conduziu anos de estudos com os pescadores de Tauiry, os peixes cascudos da família Loricariidae, que se alimentam de algas e detritos no fundo do rio, serão especialmente afetados.
“Os engenheiros alegam que vão dragar apenas uma vez e depois essa fase terminará”, diz Alberto Akama, “mas não é assim que esses rios funcionam”. Como os rios assoreiam com o tempo, explica o biólogo, a DTA “terá que dragar continuamente”, e isso certamente exterminará muitos dos peixes do rio.
Além disso, a empresa planeja depositar o material dinamitado na parte mais funda do rio – mais um problema, aponta o biólogo. “Há peixes que vivem em águas profundas. Se você joga rochas lá, tornando-o mais raso, isso acaba com o habitat dessas espécies.”
Akama e sua equipe concluíram a primeira pesquisa já realizada sobre os peixes do Pedral do Lourenço e das corredeiras de Marabá, nas proximidades. Mergulhando a até 30 metros de profundidade, eles avistaram o Baryancistrus longipinnis, que não é encontrado em nenhum outro lugar do mundo, e o Lamontichthys parakana, que habita apenas o Pedral do Lourenço e as corredeiras rio abaixo. No total, os cientistas coletaram e identificaram 12 espécies ameaçadas, incluindo quatro consideradas em perigo de extinção: Crenicichla jegui, Potamobatrachus trispinosus, Sartor tucuruiense e Teleocichla cinderella. Sabe-se que outras sete espécies ameaçadas vivem na parte baixa do Rio Tocantins.
Para Alberto Akama, o projeto da hidrovia “provavelmente exterminará todos esses peixes”.
Estudos de impacto ambiental: erros e omissões
Em setembro de 2019, ao divulgar um relatório de análise das milhares de páginas dos estudos de impacto ambiental enviados pela DTA Engenharia, o Ibama foi taxativo: o trabalho da equipe de analistas da empresa não está baseado em metodologia científica corrente.A DTA realizou coletas de animais para avaliar os possíveis impactos da obra. Mas o Ibama concluiu que o estudo da empresa foi superficial e usou métodos incompletos que não refletem as práticas atuais de coleta científica nem são adequados aos peixes que habitam o Tocantins.
Houve erro na identificação de mais de uma dúzia de espécies. Vários peixes em perigo foram rotulados com o nome de não ameaçados. Quatorze espécies ameaçadas que sabidamente vivem na região não foram mencionadas nos estudos de coleta da DTA. Em vez disso, a empresa identificou dezenas de peixes que nem sequer vivem na bacia.
Além de tudo, nem o DNIT nem a DTA estudaram os impactos da hidrovia depois que ela entrar em operação – entre eles, a construção de portos de carga e os impactos diários do tráfego de barcaças.
O Pedral do Lourenço, que no total tem 43 quilômetros de labirintos pedregosos, constitui um ecossistema especializado no qual se reproduzem peixes, andorinhas e lagartos, entre outros animais. Contudo, o Ibama observa que não houve uma coleta específica de amostras ou um estudo sobre o local – uma omissão por parte da companhia contratada para demolir as rochas.
As tartarugas poderão sofrer os maiores impactos da hidrovia, mas a DTA estudou apenas a pequena área adjacente à futura sede do projeto, deixando de pesquisar o habitat dos quelônios ao longo dos 212 quilômetros onde a dinamitação e a dragagem vão ocorrer.
O Ibama ordenou que a DTA refaça as coletas de peixes e conduza um novo estudo no Pedral do Lourenço. “Foi uma vitória, porque postergamos o projeto”, conclui Ronaldo Barros Macena, presidente da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiri. Mesmo assim, os pescadores do Pedral do Lourenço temem que o governo ainda assim destrua o viveiro rochoso de peixes com o qual suas histórias de vida estão entrelaçadas.
Projetos anteriores de infraestrutura na Amazônia explicam o trauma. “Há o risco de [a área] se tornar outra Belo Monte”, diz Cristiano Silva de Bento, doutorando e pesquisador em Antropologia e Sociologia na Universidade Federal do Pará, com possível colapso das populações de peixes e impactos devastadores sobre as comunidades tradicionais.
Os pescadores lembram com aflição de outra hidrelétrica da região. Em 1984, a usina de Tucuruí desabrigou ribeirinhos que não foram nem sequer indenizados. Peixes, tartarugas e castanheiras desapareceram. Os moradores alegam que os pagamentos que a operadora do projeto, a Eletronorte, faz em reparação por Tucuruí vão para as prefeituras e não chegam às comunidades, que continuam sem coleta de lixo, saneamento básico, ônibus, estradas pavimentadas, postos de saúde ou poços adequados.
No caso da nova hidrovia, havia uma demanda dos pescadores para serem consultados sobre o projeto, como é exigido pela Convenção C169 da Organização Internacional do Trabalho. Mas o Ibama negou, alegando que, diferentemente de quilombolas e indígenas, não há um protocolo no caso para os pescadores tradicionais.
O Ministério Público Estadual do Pará interveio e exigiu que Ibama, DNIT e DTA realizem a consulta formal aos ribeirinhos, observando a importância deles para a conservação dos ecossistemas onde residem. Apesar da nova determinação, o líder comunitário Ronaldo Barros Macena reclama do governo: “Eles nunca nos consultaram. Passaram por nós como um rolo compressor”.
DTA é criticada por falta de conhecimento técnico
Em 2016, o DNIT contratou a DTA Engenharia para desenvolver a hidrovia sem nenhuma avaliação ambiental preliminar – o que, de acordo com Brent Millikan, da ONG International Rivers, não é uma exigência para a construção de hidrovias, apesar do seu potencial de afetar comunidades humanas, a flora e a fauna. A DTA conseguiu o contrato porque apresentou o orçamento mais baixo entre as cinco concorrentes, um valor inferior até mesmo às projeções de custo do DNIT.A Constran, que ficou em segundo lugar no processo de licitação, questionou a capacidade da DTA de realizar um projeto tão grande e complexo. E registrou que a empresa parceira da DTA, a O’Martin, acumulava uma dívida de R$ 4,2 milhões até 2014.
Contatada pela Mongabay, a DTA diz estar contratualmente proibida de dar entrevistas. Por isso, todas as informações desta reportagem vieram do DNIT.
Em email de janeiro, o DNIT diz que não vai descontratar a DTA neste ou em futuros projetos, já que cada processo de licitação é individualizado. Regis Fontana Pinto, do Ibama, acredita que um veto à hidrovia é improvável, já que o governo federal considera o projeto prioritário e “necessário”.
Enquanto isso, os ribeirinhos da região do Pedral do Lourenço aguardam os novos estudos e o desdobramento do caso – e esperam que, dessa vez, possam ser atores em sua própria história.
*Texto publicado originalmente em 10/08/20 no site do Mongabay Brasil
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Fotos: Wallace Lopes/Ibama (abertura). Crédito do vídeo: Leandro Sousa.
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