Laudo da Polícia Federal aponta inúmeras irregularidades em manejo de girafas do Bioparque e alerta sobre bem-estar dos animais
No último dia 6 de julho, peritos do setor técnico-científico da Polícia Federal divulgaram um Laudo de
Perícia Criminal Federal após diversas visitas realizadas ao Portobello Resort & Safari, em Mangaratiba, no litoral do Rio de Janeiro, onde estão há mais de oito meses as 15 girafas importadas da África do Sul pelo Bioparque (originalmente eram 18, mas três delas morreram durante uma fuga logo após a chegada ao Brasil no final de 2021). Em todas as ocasiões, uma equipe de servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) também esteve presente.
No documento a que o Conexão Planeta teve acesso, em quase 300 páginas, os peritos fazem um relatório minucioso sobre todo o caso, sobretudo, como as girafas estão sendo cuidadas atualmente. Todavia, o processo de importação ou as possíveis irregularidades nele não foram analisadas.
O laudo responde a sete perguntas específicas e para respondê-las de maneira adequada os peritos fizeram uma extensa pesquisa bibliográfica sobre a criação em cativeiro de animais silvestres exóticas e em especial, as girafas, e também, à legislação brasileira sobre o tema, além de serem consultados diversos especialistas em veterinária, zoologia, zootecnia e manejo de fauna:
a. Qual espécie, quantidade, sexo e identificação das girafas guardadas no galpão?
b. Qual a situação em que os animais estão guardados?
c. As condições de guarda dos animais são adequadas?
d. Quais as características gerais e específicas do galpão de confinamento?
e. Quais as características da infra-estrutura vinculada ao galpão?
f. Os animais estão submetidos a situação de penúria trancados nas baias?
g. Os animais apresentam ferimentos ou cicatrizes?
Para começar, os peritos ressaltam que ficaram impossibilitados de realizar algumas análises ou elas não foram as mais adequadas “dada a impossibilidade de contenção e manipulação das 15 girafas no local”. Entre elas estariam o “exame da arcada dentária para a determinação da idade dos indivíduos e da ocorrência de afecções bucais; coleta de material biológico, como pelos e sangue, para a realização de exames forenses laboratoriais; exame físico geral dos espécimes para avaliar: posturas, locomoções, claudicações e condição dos cascos, formato abdominal, escore corporal, presença de ferimentos na pele, órgãos da face e da genitália externa, ocorrência de afecções dentárias, características respiratórias, nível de consciência etc”.
Todavia, mesmo diante dessas limitações, foram notados vários ferimentos e lesões nas girafas, conforme várias fotos anexadas.
Em vermelho, uma ferida com bordas enrugadas, de coloração cinza amarronzada. A seta amarela aponta para um segundo ferimento no mesmo animal. Lesões podem ser sinal de uma doença de pele, que se espalha pelo corpo do animal
“Maus-tratos, crueldades e abusos”
Sobre os recintos e o ambiente externo a que as girafas têm acesso no Portobello Resort & Safari, o relatório destaca que eles deveriam ter sido, previamente, planejados para receber as girafas “com o conforto e a dignidade que os animais fariam jus”. E não foi o que aconteceu. Após a morte dos três animais e a atenção que o caso ganhou nacionalmente, o Bioparque foi acionado pela justiça a adequar o espaço corretamente para os animais, conforme a legislação do Ibama determina.
Imagens aéreas apresentadas no documento mostram que há pouco menos de um mês da chegada das
girafas ao Brasil, em novembro do ano passado, as instalações externas do criatório não estavam preparadas ainda para recebê-las.
E até a última visita feita ao local, no início de maio, o laudo atesta que o ambiente de cativeiro era desfavorável à saúde e ao bem-estar dos espécimes.
Vários pontos foram levantados, como por exemplo, a falta de iluminação dentro das baias/recintos; dificuldade de visualização pelos animais do ambiente externo, existência de diversas saliências, especialmente de metal, nas estruturas de contenção que podem machucar as girafas em caso de choque contra as mesmas; a falta de limpeza adequada nos pisos, com o acúmulo de urina e fezes no chão, o que pode favorecer o desenvolvimento de bactérias;
Na imagem feita em 17/05/22, a linha pontilhada em vermelho destaca uma ponta proeminente do portão que pode ferir as girafas na baia. Em azul, é evidenciada a ponta de um
vergalhão, que representa mais uma fonte de perigo observada na cela em questão
De acordo com o Bioparque estão sendo construídos recintos externos aos quais as girafas terão acesso no futuro, Entretanto, o laudo questiona que, se um dia, “as obras efetivamente forem concluídas… Conforme se observa, dada a configuração das instalações, os animais terão acesso a uma área a céu aberto, contudo, continuarão privados de visualizar a paisagem natural”.
“As práticas instituídas na criação dos animais questionados e as instalações oferecidas aos espécimes estão em direção contrária ao conhecimento científico atualmente produzido e reunido acerca da manutenção de girafas em cativeiro… Em face do arrazoado, a signatária conclui que, as práticas de manejo instituídas na criação de girafas no Portobello Resort & Safári, bem como as instalações físicas
do local destinadas ao confinamento dos espécimes vêm impondo uma série de atos que ensejam maus-tratos, crueldades e abusos”, afirma o laudo na página 73.
Outro flagrante que comprova a falta de conhecimento para proteger as girafas de eventuais acidentes:
o recinto não apresenta um bebedouro capaz de fornecer água irrestrita e ilimitada para as girafas (indicado pela seta vermelha). Além disso troncos de madeira, usados para isolar a palmeira, e a corda do dispositivo pendurado em uma haste de madeira (indicado pela seta azul), podem causar riscos
Capacidade reprodutiva das girafas pode estar comprometida
O laudo alerta ainda que, apesar de o Bioparque alegar que os animais teriam sido importados para fazer parte de um programa de conservação ex-situ, uma vez que os espécimes foram retirados da natureza, conforme atesta o documento de importação, “a menos que haja conhecimento sobre a exata origem territorial dos espécimes e sobre a população da qual eles fariam parte, o emprego de tais girafas para projetos de conservação resta prejudicado, já que o desconhecimento quanto à procedência dos animais impõe riscos à conservação, principalmente por conta de sensibilidades ambientais, transmissão de doenças e composição genética de populações”.
Exemplo da falta de informações precisas é que um dos primeiros problemas apontados pelos peritos foi que os números dos microchips de quatro girafas que constavam na na Licença CITES de importação, segundo informado pelo Bioparque, apresentavam uma numeração completamente diferente. Ou seja, o laudo conclui que ” não há como afirmar que a importação dos mesmos foi feita de forma regular”.
Além disso, os especialistas dizem que devido à maneira inadequada como as girafas estão sendo criadas e manejadas no Portobello Resort & Safári, possivelmente, a capacidade reprodutiva dos animais poderá estar comprometida.
Outra questão, como já tínhamos revelado aqui anteriormente, assim como no relatório divulgado anteriormente pelo Ibama, especialistas afirmam que os indivíduos trazidos para o Brasil seriam da subespécie Giraffa camelopardalis giraffa, a segunda com o maior número populacional na natureza e apresentando tendência de aumento, ou seja, não seria a melhor opção para um programa de conservação.
Questionado sobre o laudo da Polícia Federal, o Bioparque divulgou a seguinte nota à imprensa:
“O BioParque do Rio informa que a manifestação da perícia criminal contraria os laudos técnicos periciais elaborados pelo perito judicial e pelo Inea e as conclusões das inúmeras diligências realizadas pelas autoridades no local, todas atestando o bem-estar das girafas. Os animais estão sob os cuidados de uma equipe técnica especializada, com ampla experiência, dedicadas ao grupo de girafas. A empresa, através de laudos de especialistas independentes, irá apontar as fragilidades dessa manifestação e tomar as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis”.
As 15 girafas passam a maior parte do dia em um ambiente escuro,
sem contato visual com a área externa
*Texto atualizado às 16h15 para a inclusão de mais informações contidas no laudo da Polícia Federal
Leia também:
União recorre contra decisão da justiça que devolveu cargo a servidor do Ibama que denunciou irregularidades na importação de girafas do Bioparque
ONGs repudiam uso de suas marcas em documento do Bioparque sobre “programa de conservação” das girafas trazidas da África
Necropsia aponta que as três girafas do Bioparque morreram por miopatia, causada por estresse extremo
Ministério Público Federal recomenda devolução imediata de girafas importadas pelo Bioparque à África do Sul e à vida livre
Documentos de importação revelam que girafas trazidas pelo Bioparque foram retiradas da vida selvagem e adquiridas de empresa na África que comercializa animais
Fotos: reprodução Laudo de Perícia Criminal Federal
Um comentário:
Por falar nesse assunto gostaria de saber como vai a chimpanzé Cecilia que foi importada pelo Brasil porque estava sendo muito maltratada na Argentina...Nunca mais ouvimos falar dela nem daquele alegado santuário para chimpanzés que a recebeu.
Postar um comentário