Pesquisadores propõem simplificação da Lei da Mata
Atlântica para ampliar conservação
Por André Julião*
Um grupo de pesquisadores apoiado pela Fapesp observou que
critérios fundamentais para definir se uma área de Mata Atlântica pode
ou não ser suprimida por seus proprietários são pouco claros. Com isso, podem
dar margem para o desmatamento legal de áreas que prestam
importantes serviços ecossistêmicos.
O grupo propõe mudanças que podem simplificar o
processo de licenciamento para o proprietário, ao mesmo tempo em que
tornam a política de conservação mais efetiva.
O estudo How to enhance Atlantic Forest protection? Dealing with the
shortcomings of successional stages classification foi publicado
na revista Perspectives in Ecology and Conservation:
“A legislação, de modo geral, determina que florestas em
estágio inicial, com exceção das inclusas na área obrigatória de
conservação [Reserva Legal e Áreas de Preservação Permanente],
podem ser suprimidas em até 100%, a depender do caso”, explica Angélica
Resende, primeira autora do estudo, realizado como parte de seu
pós-doutorado, com bolsa da FAPESP, na Escola Superior de Agricultura
Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).
“No entanto, resoluções como a do Estado de São Paulo não
determinam um método para fazer uma classificação do estágio da floresta que
realmente meça os atributos mais importantes dessas áreas, o que dá margem a
distorções”, completa.
Além do levantamento do estágio de sucessão
florestal, como é chamado esse critério, outro requisito nos pedidos de
autorização para supressão de Mata Atlântica é o inventário
da flora da área a ser desmatada, a fim de verificar a diversidade
de espécies arbóreas e a ocorrência de espécies ameaçadas de
extinção.
No entanto, os autores argumentam que a tarefa exige um grau
de especialidade muito alto, uma vez que o bioma tem um número muito elevado de
espécies e os grupos vegetais variam bastante de uma região para outra ou até
numa mesma região. Isso torna virtualmente impossível seguir a determinação à
risca se não com um especialista muito bem treinado.
Por isso, o grupo propõe eliminar essa etapa numa primeira
parte do pedido de autorização e aplicá-la num segundo momento, apenas nos
autorizados na fase inicial. Os levantamentos seriam realizados por técnicos
certificados ou a serviço do governo.
O estudo integra o projeto Compreendendo
florestas restauradas para o benefício das pessoas e da natureza – NewFor,
apoiado pela FAPESP no âmbito do Programa BIOTA e coordenado por Pedro
Brancalion, professor da Esalq-USP.
“Existe uma necessidade de conservar e restaurar
mais, por conta dos compromissos firmados pelo Brasil e pelo Estado de São
Paulo em cumprir metas de emissão de gases de efeito estufa, sem
falar na prestação de outros serviços pelas florestas, como a polinização
das lavouras e a proteção de mananciais de água”, conta
Brancalion.
Como está hoje, acrescenta, a legislação é
facilmente burlada, o que pode levar à supressão de florestas em estágio
avançado. Por fim, a norma é de compreensão bastante complexa para
proprietários de terra e técnicos.
Remanescente em
floresta ombrófila na região da Cantareira. Florestas primárias prestam muitos serviços ambientais e são priorizadas para conservação
Legislação
Quando alguém pretende derrubar uma área de Mata Atlântica
de sua propriedade, seja para abrir uma nova área de produção
agropecuária ou de habitação, uma regra básica é que 20% do total da
propriedade tenha floresta. Essa é a chamada Reserva Legal, segundo
a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, mais conhecida como Código
Florestal e promulgada em 2012.
A Lei da Mata Atlântica, de 2006, determina os
estágios de sucessão florestal e os usos autorizados dessas florestas em todo o
Brasil. Na esfera estadual, é determinado o quanto pode ser suprimido de
floresta entre os casos que se encaixam na lei federal.
Em São Paulo, a regra é estabelecida pela Resolução
01/1994 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).
Embora o Conama seja um órgão federal, a regra foi estabelecida em conjunto com
o Estado, que serviu de inspiração para outras unidades federativas.
Se um proprietário já cumpre a regra dos 20% de Reserva
Legal, mais as Áreas de Proteção Permanentes (APPs), como topos de
morro, nascentes e margens de corpos d’água, e quer derrubar outra parte ou
toda a floresta “excedente”, pode pedir autorização para o
órgão ambiental estadual para realizar a supressão.
Para conseguir a licença, ele contrata um técnico, que
depois de um estudo da área emite um laudo para a secretaria de meio ambiente
do seu Estado. Um dos principais critérios para autorizar o
desmatamento legal é se a floresta for considerada nova, o que a
classifica como em “estágio inicial”.
Segundo a lei, uma floresta nesse estágio, com árvores de
até 8 metros de altura e troncos com diâmetros de até 10 centímetros, não
prestaria tantos serviços ecossistêmicos como uma floresta primária.
As florestas primárias, ou em estágios mais avançados, são
conhecidas por abrigar grande número de espécies. Podem tornar o clima
mais ameno, gerar água, estocar carbono e prover polinizadores, entre
outros serviços ecossistêmicos. Por isso, são tidas como prioritárias
para a conservação.
Problemas
Como a legislação não especifica os critérios fundamentais
para medir o estágio da floresta, alguém que esteja cumprindo a
regra pode, no limite, classificar erroneamente uma floresta como em estágio
inicial.
Isso porque um dos critérios para determinar o estágio de
sucessão florestal é a média de diâmetro dos troncos em uma determinada área,
sem que a legislação defina nem mesmo o tamanho mínimo dessa área a ser
inventariada. A legislação nem sequer estabelece o diâmetro mínimo na
altura do peito, parâmetro usado em trabalhos científicos, por empresas
florestais e mesmo em leis de outros Estados.
“Com isso, quem está fazendo o inventário florestal pode
escolher o diâmetro mais baixo, mesmo que esteja cercado de árvores
centenárias, baixando a média e alcançando o patamar para que o desmatamento
legal seja autorizado”, aponta Resende.
Num exemplo apresentado no estudo, outro grupo de
pesquisadores avaliou remanescentes conservados e matas secundárias
na Serra do Mar, uma das maiores áreas contínuas de Mata Atlântica do
Brasil.
Foram encontradas árvores com uma média de 12,7 centímetros
de diâmetro e 9,1 metros de altura, considerando todos os indivíduos acima de
4,8 centímetros de diâmetro.
“Se fossem seguidos os parâmetros do Conama, essa floresta
rica em biomassa poderia ser classificada como em estágio inicial ou
intermediária”, exemplifica.
Propostas
Para superar deficiências como esta, os pesquisadores
propõem alterações na resolução do Conama seguida no Estado de
São Paulo. Uma delas é separar os tipos de floresta (fitofisionomias),
reconhecendo as diferenças naturais entre essas formações. A partir daí,
estabelecer um diâmetro mínimo para as árvores a serem inventariadas.
Outra proposta é definir uma área mínima de amostragem para
determinar o estágio da floresta, como toda a área em locais com menos de meio
hectare ou 1% da área em terrenos acima de 5 hectares, por exemplo.
Hoje, uma área desse tamanho pode ser avaliada com apenas
uma parcela de 10 metros quadrados, por exemplo.
Para uma revisão, um dos possíveis caminhos a seguir seria a
proposta apresentada na última parte do artigo, que sugere que a avaliação seja
feita em duas etapas.
A primeira etapa, pelo próprio dono da
terra, sem necessariamente precisar de um técnico.
O órgão ambiental estadual então verificaria o histórico
de uso e cobertura do solo dos últimos 40 anos daquela área por meio
de ferramentas disponíveis gratuitamente – como MapBiomas e Google Earth –
além de fotos feitas pelo requerente.
O órgão ambiental então aprovaria ou não o pedido em
primeira instância, encaminhando os aprovados para uma segunda avaliação.
Na segunda etapa, técnicos indicados
pelo governo fariam a avaliação florística, a fim de verificar o grau
de biodiversidade e a presença de espécies ameaçadas.
Dessa forma, pouparia o proprietário de pagar por um serviço que poucas pessoas
têm condição de realizar com excelência.
Por fim, seriam avaliados aspectos sociais e
de paisagem, adotando um ou mais serviços ambientais como indicadores. O
foco seria não apenas na sociedade de modo geral, mas na população local, mais
afetada pela remoção da floresta, com a perda de serviços
ecossistêmicos como água, bem-estar e regulagem do clima.
“A Lei da Mata Atlântica foi uma grande vitória
para a sociedade brasileira. No entanto, um novo escopo técnico é
necessário para reforçá-la quase duas décadas após sua promulgação e mais de
três décadas depois da resolução estadual. O conhecimento sobre a Mata
Atlântica aumentou dramaticamente nos últimos anos e está disponível para
desenvolver regras mais efetivas e baseadas na ciência”, encerram
os autores.
O estudo contou, ainda, com apoio da Fapesp por meio
do Núcleo
de Análise e Síntese de Soluções Baseadas na Natureza (BIOTA Síntese),
do Centro
de Ciência para o Desenvolvimento Estratégia Mata Atlântica (CCD-EMA),
além de bolsas de pós-doutorado (22/14605-0, 20/06734-0, 22/07712-5 e 23/00412-9).
* Este texto foi publicado originalmente no site da Agência
Fapesp em 20/5/2024
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