domingo, março 01, 2015
O ESTADO DE S.PAULO - 01/03
No
tempo curto de dois meses, um abismo separa o que foi o primeiro
governo Dilma deste que tarda em começar, ainda prisioneiro de práticas e
concepções das quais não será fácil desembaraçar-se. Na política, como
nos transatlânticos, mudanças inesperadas de rota são de operação
complexa e demandam convicções firmes dos seus timoneiros. Eles devem,
se desejarem evitar movimentos de amotinados, ser capazes de apresentar
suas razões e demonstrar autenticidade e determinação na opção pela
mudança de rumos.
Pois é de tal grave natureza uma das ameaças
que rondam o mandato presidencial, qual seja o de perder o apoio do seu
partido, do sindicalismo da CUT, de movimentos sociais, inclusive dos
difusos como os que somente se fazem visíveis nas redes da internet,
adversos à política que adotou em favor do ajuste fiscal, contrariando o
que alardeou em alto e bom som no curso da campanha presidencial. A
categoria dos intelectuais, a esta altura, parece irrecuperável, apesar
das cambalhotas dialéticas com que alguns se eximem da crítica e da
autocrítica.
Decerto que tais riscos têm sua origem em escolhas
feitas pela presidente, ao insistir, em sua campanha eleitoral, em
caminhos já exauridos pela macroeconomia de sua lavra e do seu ministro
da Fazenda. Verdade que um eventual reconhecimento prévio de um
diagnóstico desse tipo, que não era estranho ao círculo do poder (Lula
incluído) - evidente na opção, feita nas primeiras horas após a vitória
eleitoral, pela descontinuidade da sua política econômica com a
indicação de um nome antípoda à sua tribo doutrinária para a pasta da
Fazenda -, ter-lhe-ia custado a reeleição.
Assim, se no terreno
da economia foi a mudança de cenário o que importou para a guinada de
rumos em favor do ajuste fiscal, brusca mudança de rota a marcar a
passagem do primeiro mandato presidencial para o segundo, no caso da
política esse marcador tem origem nas ações da própria presidente.
De
um lado, por ter recusado manter-se alinhada às práticas tradicionais
em seu partido, que tanto serviram a ela e ao seu antecessor,
suportadas, no fundamental, pelo eixo PT-PMDB, ao apresentar uma
candidatura de um quadro do seu partido, na disputa pela presidência da
Câmara dos Deputados, contra o peemedebista Eduardo Cunha, um franco
favorito, segundo avaliação então corrente. Como se sabe, sua derrota
eleitoral destravou uma inédita rebelião parlamentar contra a
interferência do Executivo no Poder Legislativo.
De outro, ao
compor seu governo com quadros vinculados a alas minoritárias do seu
próprio partido, a presidente contrariou suas lideranças mais
influentes, e a solidão política que se estabeleceu em torno dela tem
trazido de volta o velho espantalho do impeachment, sempre a rondar
presidentes sem apoio congressual e em orfandade partidária. Em breves
dois meses, seu mandato assemelha-se ao de presidentes malsucedidos que
aguardam, com amargura, a hora da passagem do bastão de comando a seu
sucessor.
Agora, passado o carnaval, diante desse horizonte
aziago que está aberto diante de nós, a rota inevitável é a de enfrentar
mar alto em águas turbulentas, em que o timoneiro precisa estar atento a
todos os sinais, e não apenas aos que lhe vêm dos seus impulsos e
convicções íntimas. Boa será a reforma política que vier do Parlamento e
que venha a ser referendada, onde couber, pela cidadania. Esse pode ser
um começo para uma navegação menos arriscada.
Se há previsões
fundamentadas de mau tempo, em particular com os desdobramentos dos
escândalos da Petrobrás, ainda em fase de apuração por parte do
Ministério Público e do Poder Judiciário, de desenlace imprevisível
quando os malfeitos e os responsáveis por eles vierem a público com a
formalização de um processo criminal, não se podem ignorar os bons
augúrios que nos vêm tanto da afirmação da autonomia do Legislativo, que
nos faltava - fato de importância capital nas Repúblicas democráticas
-, como a do Judiciário, a esta altura solidamente escorada pela intensa
vida corporativa das inúmeras associações de magistrados.
Não há
motivos, pois, para surtos paranoicos quanto ao destino da nossa
democracia política, embora seja certo que os próximos quatro anos nos
reservem turbulências e nova disposição nas peças sobre o tabuleiro
político.
Os primeiros movimentos nessa direção já se iniciaram com a
elevação do ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um estranho no ninho do
PT, às funções de primeiro-ministro, a quem se encarregou de liderar as
negociações com lideranças parlamentares a fim de aprovar o ajuste
fiscal no Legislativo, operação já iniciada com as bênçãos do PMDB.
Na
sequência, devem ceder as resistências do Executivo a Eduardo Cunha,
presidente da Câmara dos Deputados, que já deu fortes demonstrações de
expertise no jogo da política parlamentar e parece imune a ações de
cooptação pelo governo.
Outro elemento de imprevisibilidade que
nos ronda são as ruas, aqui uma protagonista nos idos de 2013 e, por
toda parte, uma nova e incontornável presença na vida política e social
neste início de século. No Brasil, até no carnaval paulistano.
Elas
deverão retornar, mas com outra demografia e outros temas, diversos dos
daqueles estudantes e da agenda tópica de políticas públicas de dois
anos atrás. Já estão nelas os sem-teto e o sindicalismo operário, como
na ocupação da Ponte Rio-Niterói por parte dos petroleiros, entre tantas
manifestações recentes de metalúrgicos paulistas, e, agora,
perigosamente, os caminhoneiros.
A agenda desses recém-chegados às ruas,
com uma economia retraída, não recomenda ao boxeador ficar agarrado às
cordas. Ele precisa se reinventar, abandonando o tipo de jogo que o está
levando à derrota, e reiniciar a luta, mesmo que com um estilo com o
qual não esteja habituado. Se quiser evitar o risco de beijar a lona.
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