|
Antigamente,
falar em morador de rua era falar de uma situação de extrema miséria, própria
a suscitar compaixão. De uns tempos para cá, porém, o conceito mudou.
Morar na rua tornou-se não uma necessidade, mas uma opção.
Uma opção
que tem seus problemas, é verdade, mas também suas vantagens para os
que a escolhem: refeições grátis oferecidas por ONGs e igrejas,
privilégios concedidos pelo Poder Público, não pagam impostos nem arcam
com os inconvenientes da manutenção de uma casa, inviolabilidade de sua
situação garantida por lei, não se dedicam a nenhum trabalho fixo
(exceção feita, talvez, dos que puxam carrocinhas com material
reciclável).
Não ignoro,
é claro, que continuam existindo os que são atirados a essa triste
situação por necessidades prementes e involuntárias. Merecem eles toda
a nossa comiseração e o nosso auxílio para que possam sair dela. Mas é
preciso reconhecer que estes vão se tornando minoria dentre os
moradores de rua.
Vários
fatores morais contam-se entre as causas dessa “moderna” opção.
Entre
eles o vício avassalador do uso de drogas, que não se quer deixar por
preço algum; a embriaguez inveterada, que leva a ficar abraçado à
garrafa como parte integrante do próprio ser; o hábito de pequenos (ou
grandes) furtos; a preguiça persistente, pela qual o indivíduo (de
ambos os sexos) prefere ficar estendido nas calçadas a fazer qualquer
esforço de maior monta; e assim outros.
Espalhados
por toda parte, ao menos nas grandes cidades, “habitam” entretanto
certos pontos de preferência a outros. É o caso, por exemplo, do centro
velho de São Paulo, onde é deprimente a paisagem humana que ali se
escancara. Corpos estendidos nas ruas, nas praças, dormindo com ou sem
coberturas improvisadas, em meio à imundície mais repugnante, à rudeza
mais soez, ao esquecimento mais brutal de que possuem uma alma humana
que os coloca, ou deveria colocá-los, em situação superior à dos
animais.
Até na
Avenida Paulista, cartão postal da cidade, já há um morador de rua
estabelecido e que não quer ser incomodado (cfr. “O Estado de S.
Paulo”, 3-12-14).
Por essa
mesma avenida transito habitualmente, e posso constatar a existência de
indivíduos que, se não são diretamente moradores de rua, poder-se-ia
talvez qualificá-los de quase tais. Homens e mulheres aparentando ser hippies,
afincadamente dedicados, ao que parece, a economizar a água do banho,
com roupas esmolambadas, sentados no chão, eles com a barba desgrenhada
como os cabelos delas, tendo diante de si um pano estendido, pouco
limpo, sobre o qual esparramam colares estranhos, miçangas e amuletos
vários, à espera que algum passante pare e compre algo.
E são numerosos,
sendo que alguns deles, sem cerimônia, estendem-se na calçada e dormem
a sono solto, sem cuidar de que alguém possa furtar alguma de suas
quinquilharias, muito pouco atraentes, as quais eles próprios parecem
não ter muito interesse em vender.
*
* *
Esse
fenômeno dos moradores de rua — ou quase —, por mais que seja
aviltante, note o leitor, não é isolado. Ele é o rés-do-chão, a parte
talvez mais aparentemente repulsiva de uma decadência geral do padrão
humano no mundo de hoje.
Se
permanecer como morador de rua pode chegar a ser, para uma camada da
população, uma opção, é porque existe outra camada, um pouco superior,
que não se propõe a morar nas ruas, mas vive no desleixo de si mesma,
nas maneiras cada vez mais vulgares, no vestir-se do modo mais relaxado
e tendente ao nudismo, com um vocabulário cada vez mais grosseiro, na
imoralidade mais abjeta, e nada disso por pobreza.
E assim
sucessivamente, subindo de camada em camada, até as mais altas,
poderíamos constatar um rebaixamento geral do padrão civilizatório e
cultural. Com as devidas e honrosas exceções, é claro.
Vejam-se,
por exemplo, as fotos e gravuras do século XIX ou anteriores, ou mesmo
as do início do século XX; a comparação com os modelos humanos atuais
se torna gritante.
O bonito agora
é, por exemplo, assistir a uma aula na rua, como a proporcionada por
Guilherme Boulos, guindado pela imprensa a coordenador nacional do
Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Em 11 de dezembro último ele
“lecionou” na praça Roosevelt, centro de São Paulo, defendendo a
palavra de ordem do momento: o “direito à cidade” contra “o
discurso hipócrita” do direito de propriedade.
Essa “aula
pública”, à qual compareceram estudantes de arquitetura, grupos de
sem-teto e artistas, foi organizada pelo “Coletivo Arrua” (o nome diz
tudo), que também convida para festas na rua (cfr. “Portal Ponte”,
mantido por conhecidos jornalistas, 11-12-14). O título da reportagem é
sintomático da mistura (feita no andar de baixo) que se tem em vista: “Líder
dos sem-teto reúne ricos e pobres em ‘aula pública’ no centro de SP”.
*
* *
Essa
situação tão anormal faz pensar. O que levou a esse deslizamento do
padrão humano? Procurar uma resposta para tal indagação interessa a
mim, interessa ao leitor e interessa a todos, pois, como dizia o
filósofo romano Terêncio (+159 a.C.), “eu sou homem, e nada do que é
humano me é estranho”.
Como foi
possível que nossa civilização, que se jacta de tão adiantada e
alcançado grande avanço científico, venha a produzir como um de seus
frutos característicos esse rebaixamento generalizado da condição
humana? E isso ao contrário de outras épocas, cuja índole foi de
procurar elevar a humanidade, quer do ponto de vista espiritual, quer
moral ou material.
Apenas para
exemplificar, falemos do campo da cultura. Tenha-se em mente a chamada
arte moderna com seus rabiscos incompreensíveis; as atuais grafitagens
que poluem os muros e paredes de nossas cidades; a “música” constituída
de berros e gritos; as danças do pula-pula insano e pornográfico.
No campo da
política, onde estão os Churchills, os De Gaulles, os Adenauers?
Onde
as visões e os planos de grandes estadistas? Política virou quase
sinônimo de corrupção, de mediocridade, de possibilidade de galgar
cargos e posições.
Na religião,
dói-nos dizê-lo, onde estão os Mindszentys, capazes de enfrentar de
peito aberto, por amor de Deus, os carrascos comunistas, em lugar de se
dobrar covardemente diante deles a pretexto de diálogo? Onde os grandes
apóstolos como Santo Inácio de Loyola, os grandes teólogos como Santo
Tomás de Aquino? Em lugar deles um irenismo malsão vai dissolvendo num
magma nauseabundo todas as doutrinas, todas as convicções, e mesmo
todas as religiões.
Outro dia,
um amigo me dizia que se sentiu constrangido a sair de uma igreja onde
fora rezar, devido ao ambiente de promiscuidade religiosa e moral que
lá encontrou. Preferiu ir rezar na rua!
Tudo decaiu,
tudo baixou de nível. O ímã da condição humana não atrai mais para o
alto, para o sublime, para Deus; ele puxa para baixo, para a
degradação, para a sujeira e o desleixo, dos quais o morador de rua é
símbolo e meta.
Diz um
ditado popular que o demônio nunca dá o que promete. Ele prometeu aos
homens que, se abandonassem a civilização cristã e aderissem à
liberdade total e sem freios, a um igualitarismo absoluto e sem
hierarquia, a um laicismo sem Deus nem religião, teriam então o
progresso humano e a perfeita fraternidade. O que vemos?
Um progresso
científico real, mas que o homem não sabe mais utilizar para evitar a
degradação. Uma fraternidade que não mais se realiza na pujança das
individualidades ricas e complementares, mas na ausência de
personalidades autênticas, afundadas cada vez mais no pântano de uma
espécie de não-ser coletivo.
Por fim, uma
observação prudencial se impõe. Falando do vasto panorama desvendado na
terceira parte de seu livro “Revolução e Contra-Revolução”, diz
Plinio Corrêa de Oliveira: “Bem sabemos quanto são passíveis de
objeções, em muitos de seus aspectos, os quadros panorâmicos, por sua
natureza vastos e sumários como este. Necessariamente abreviado pelas
delimitações de espaço, este quadro oferece seu despretensioso
contributo para as elucubrações dos espíritos dotados daquela ousada e
peculiar finura de observação e de análise que, em todas as épocas,
proporciona a alguns homens prever o dia de amanhã”. Fazemos nossa
essa ponderação.
(*) Gregorio
Vivanco Lopes é advogado e colaborador da ABIM
|
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário