Moradores de bairros nobres vivem clima de terror após morte de ciclista a facadas
Pedro Cifuentes
Rio de Janeiro
12 JUN 2015 - 16:57 BRT
No bairro nobre de Botafogo, no Rio de Janeiro, irremediavelmente engarrafado durante a hora do rush da tarde, o motorista de táxi sai da letargia e se levanta como um cão de caça. “Olhe, esses garotos são perigosos...
Eles estão olhando, procurando. Tenha cuidado”. Ele se referia a dois adolescentes que perambulavam com muita calma pelo meio-fio, observando as mesas colocadas numa calçada nas proximidades. Vários clientes colocam os telefones celulares no bolso. Ultimamente, não há um dia que não se comentem roubos com vítimas esfaqueadas no Rio e as pessoas não estão para brincadeiras.
Em janeiro, a epidemia foi de balas perdidas, mas neste outono abundam facadas, muitas vezes de surpresa e sem dizer uma palavra, talvez para não perder a calma ou para acelerar o assalto. Pode ser uma bolsa, um celular ou uma bicicleta, como aconteceu com o cardiologista Jaime Gold, de 57 anos, vítima mortal de dois garotos que lhe deram três facadas no abdômen e uma na mão quando pedalava tranquilamente em um dos lugares de lazer mais representativos do Rio, a Lagoa Rodrigo de Freitas, futuro palco olímpico e espaço privilegiado para milhares de cariocas que começam e terminam o dia praticando esportes.
A tragédia de Gold e o ataque a uma turista chilena, que recebeu um corte de faca no pescoço enquanto tomava sol na praça da Glória, perto do centro, voltaram a colocar o Rio à beira da psicose coletiva.
“Antes, eles usavam a faca só para intimidar”, diz indignado o porteiro de um edifício imponente na Praia do Flamengo, “mas agora furam primeiro e falam depois”. Nos quatro primeiros meses do ano, 167 vítimas de armas brancas foram atendidas em quatro grandes prontos-socorros da cidade, de acordo com dados coletados pelo jornal O Globo.
A cifra, comparada com outras grandes cidades do mundo, é alta. E, no entanto, segundo as estatísticas, não há mais ataques de faca no Rio de Janeiro do que no ano passado, nem mais do que no resto do país.
“O que acontece”, diz o professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em violência Ignacio Cano, “é que alguns ataques surpreendentes e infelizes aconteceram na zona sul, a região mais abastada da cidade”. O sociólogo admite que exista medo, especialmente entre as classes médias, mas culpa os meios de comunicação por “fazerem um acompanhamento exagerado de uns poucos casos que acabam se reproduzindo como notícia”.
O presidente da atuante ONG carioca Rio de Paz, Antonio Carlos Costa, diz que a psicose é evidente e generalizada. “Não é uma criação da imprensa. São meninos muito novos que descem os morros com dois objetivos: roubar bicicletas ou roupas como símbolo de status e ganhar visibilidade na comunidade com suas proezas, como fonte de poder”.
Segundo ele, o Rio tem uma “química explosiva: desigualdade enorme e muito próxima entre si, tráfico de drogas, uma sociedade de consumo e um estado frágil [...] Mas as autoridades têm o hábito de agir sobre as consequências e não sobre as causas do problema.”Sylvie é um estudante francesa que veio ao Rio atraída pelas praias e pela natureza dessa “linda cidade”.
Desfruta da atmosfera boêmia do bairro de Santa Teresa, mas ela não se sente tão “livre” como se sentia quando chegou, há um ano. “Há algum tempo temos medo à noite e mudamos alguns comportamentos”. Ela e suas amigas sempre usam táxis à noite. Taxistas como Ricardo M., que detesta trabalhar à noite, começou a fazê-lo durante os fins de semana para compensar a queda da receita experimentada neste ano por causa da estagnação econômica. “Desde o início da onda de ataques é muito perceptível que as pessoas estão tendo cuidado: querem ir até a porta de casa, estão com mais medo”, diz.
Um dos grandes paradoxos do Rio é a relação da população com a polícia, a mais violenta do país. Só em 2013 ela matou 413 pessoas. Embora os crimes policiais tenham diminuído nos últimos cinco anos, o suposto equilíbrio de várias favelas pacificadas é extremamente frágil e praticamente não há semana sem alguma vítima da violência policial e de suas balas perdidas, às vezes crianças.
A repulsa dos intelectuais e dos ativistas à polícia continua sendo praticamente unânime, apesar dos esforços das autoridades. “A passagem de um Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE), com seus rifles colocados nas janelas, perturba os habitantes das comunidades tanto como o trânsito de uma patrulha de traficantes de drogas”, explica seriamente Angelica, uma assistente social “cansada de histórias que não correspondem à vida diária das pessoas”.
Mais presença policial
“Desespero e aceitação resignada da violência da polícia brasileira” era a manchete semanas atrás do The New York Times. O professor Ignacio Cano afirma que “ninguém confia na polícia do Rio, mas a classe média pede mais presença”. O paradoxo, enfatiza, é que o número de crimes em áreas desfavorecidas da Baixada Fluminense é absurdamente maior do que na zona sul.“É natural que as classes médias peçam mais presença da polícia na zona sul”, diz Antonio Costa por sua vez, “porque nos bairros nobres do Rio o trabalho policial é exercido como os cidadãos gostam. Não cometem os crimes que cometem nas favelas”.
A morte de Gold voltou a expor as fraturas da sociedade carioca. Um grupo de ciclistas que se dirigiu à sede do governo para protestar contra o assassinato encontrou, ao chegar, cerca de quinze pessoas vindas do Morro do Dendê (na zona norte) protestando contra a morte de Gilson da Silva dos Santos (de 13 anos) e Wanderson Jesus Martins (de 23) em uma operação policial e o posterior esquecimento do caso. Não houve união entre os dois grupos.
“O caso do ciclista foi resolvido antes do nosso. Só porque ele tinha estudos têm mais direitos do que nós, que somos da comunidade?”, questionou Emerson Mello, 21, irmão de Wanderson, em declarações à imprensa. Entre 2007 e maio de 2014 morreram de forma violenta 50.181 pessoas no Estado do Rio. Quinze por dia.
As propostas recorrentes de redução da maioridade penal (de 18 para 16 anos) recrudesceram o debate ideológico exatamente durante a onda de esfaqueamentos e a prisão de alguns adolescentes, como um suposto assassino de Gold (três jovens estão presos) que aos 16 anos já foi preso e libertado 15 vezes, todas elas por furtos e roubos com violência nos bairros mais abastados na zona sul.
Aqueles que protestaram furiosamente contra os esfaqueamentos foram criticados por não darem a mesma importância às constantes mortes violentas que ocorrem em bairros pobres (também nas mãos da polícia). Aqueles que enfatizam as duras condições de vida das crianças da favela que descem os morros armados para roubar nos bairros ricos são às vezes acusados de justificar a violência e de relativismo moral.
O Governo considera que a redução da idade de responsabilidade criminal “não resolve nada”, de acordo com várias organizações sociais, e é resolutamente contra a medida.
A morte do ciclista aconteceu no mesmo dia em que autoridades cariocas e fluminenses realizavam com os membros do Comitê Olímpico Internacional (COI) e o Comitê Rio 2016 uma das suas reuniões periódicas de acompanhamento. Os executivos reiteraram sua mensagem de apoio à cidade e mostraram confiança cega que a presença policial reforçada garantirá a tranquilidade durante as Olimpíadas.
A polícia já aumentou o número de patrulhas nas regiões turísticas, mesmo antes dos protestos. Neste mês foi permitido bloquear telefones celulares apenas com a notificação de roubo emitida pela Polícia Civil, para dissuadir os ladrões. Em poucos dias, a Assembleia Legislativa do Rio aprovou o projeto de lei que inclui o roubo de bicicleta nos registros como um crime específico.
O governador do Rio, Luiz Fernando Pezão (PMDB), pediu enfaticamente a criminalização do porte de arma branca.
No início de junho, a violência parece ter se deslocado novamente para o norte da cidade. Uma das mais recentes vítimas de ferimentos de faca, a designer de moda Nathália Labanca, foi atacada por três menores na Tijuca. Ela diz que um deles tinha cerca de oito anos. Outras fontes insistem que os traficantes de drogas deram a ordem de interromper essas ações em algumas favelas porque atraíam a atenção da polícia para os territórios que eles dominam.
No Leblon, um dos bairros mais caros do continente, um cartaz anuncia cursos de defesa contra ataques de faca e seu proprietário explica que a ideia surgiu a partir de pedidos de clientes: “A filosofia da agressão mudou no Rio: hoje ferem você primeiro e depois levam seus pertences, mesmo que você não tenha nenhuma reação”. Memes irônicos circulam nas redes sociais com sofridos ciclistas vestidos com roupas de metal para evitar riscos.
No local exato onde morreu Gold, duas meninas contam que pararam de usar a bicicleta para ir ao trabalho para não terem de voltar para casa no escuro à noite, embora nestes dias a presença policial na área seja abundante. O secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, disse em entrevista a este jornal, em janeiro, referindo-se à crise das balas perdidas, algo que pode ser aplicado muito bem a essa onda de facadas:
“Aumentaram de um mês para o outro, mas não na série histórica. É um pico. A segurança no Rio é um paciente em um estado de febre permanente”.
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