Na boa, isso aqui virou uma esculhambação total. Que até teria um lado divertido se nós também não estivéssemos sendo grandes vítimas desse processo todo. Volto a pensar se não é alguma coisa que estão pondo na água, tão desmedida e pouco produtiva está essa já muito vergonhosa esculhambação geral que assola o Brasil, e que ultrapassa em muito o antigo Febeapá - o festival de besteiras.
Desde muito criança tinha na Dercy Gonçalves, a Rainha do Escracho com faixa e tudo, e a quem se associa imediatamente a palavra, uma ídola. Imaginava até na minha cacholinha que ela bem que podia ser minha parente. Adorava vê-la fazendo aquelas caras de esgares, a boca de caçapa, da qual vertiam impropérios e impropérios. Adorava, não. Adoro ainda, porque a cada dia que passa ela está mais atual, embora tenha morrido há exatos 7 anos, completados agora neste 19 de julho. Na época, assistia a ela onde aparecia, na tevê; enchi e bati pé para que me levassem ao teatro para vê-la e, já jornalista, sempre que podia tentava ouvi-la sobre algum acontecimento.
Imaginam o que ela diria se estivesse acompanhando o atual momento político nacional? Bippi, xxx, bi,bi,biiii, asteriscos - certamente tudo seria impublicável, tantos falsos moralistas estamos criando sobre este chão e que ela apontaria satisfeita. O engraçado é que sei que ela era até meio reacionária depois de tudo o que passou para se firmar na vida artística, mas imagino o que diria agora ouvindo os discursos da presidente, a falação (ah, aqui ela trocaria uma letra, certamente) das CPIs que a cada dia mais parecem espetáculos burlescos de um cabaré viciado, vendo os cabelos asas de graúna tentando se explicar se roubaram mas não sabiam. Depois de tanta luta pelo respeito à mulher artista, queria saber o que ela pensaria da glamorização absurda da prostituição. Dos pitacos religiosos de plantão. Da gargalhada que soltaria acompanhando os passos da oposição. Ou o topete do prefeito modernudo que se acha o coco da cocada (aqui, ela poria um acento, ah, poria sim).
Imagino-a falando a palavra impeachment de todas as formas, menos a normal, e terminando com um sonoro palavrão e gargalhada sempre. Achei um relato, achei sim, de um centro espírita, onde ela teria "baixado" e os médiuns a repreenderam por todos esses palavrões ditos durante toda a sua vida, e até sobre os oito abortos que sempre admitiu ter feito. Não acreditei que esse espírito era ela mesmo, não xingou ninguém nesta sessão! Acho que a gente quando morre leva pro espírito o que temos de melhor.
Pena que Dercy não tenha vivido esses 108 anos completos; só 101. Embora antes de morrer já tenha visto o país começar a virar uma curva esquisita, não imaginaria como tanta coisa se degringolaria e tornaria difícil até diferenciar o ético, o saudável, o progresso quase forçado dos costumes. ..(....)..
"Represento exatamente o escracho do Brasil", disse certa vez, completando: "Eu posso ser escrachada, mas não sou bandalha". Não era mesmo, Dercy. Bandalha é essa gente que está comandando cadeiras importantes de vários poderes.
E escracho é o que estão fazendo primeiro para perguntar depois - polícia escracha; imprensa escracha. A gente escracha, mostra o quão desmoralizados são, não usamos mais nem meias palavras para nos referir até às pessoas às quais deveríamos guardar certo pudor, certo respeito. Mas elas próprias também se escracham, e acabam desmascaradas em seus atos. Provocam nosso escrachamento.
Escracho aqui é tão escracho e tem tanto que perde até um de seus sentidos, o político, aquele de ser o protesto que se faz diante da casa de quem desrespeita os direitos humanos.
Afinal, é ou não é um escracho esse mundo estar dividido em partes? PT e os outros. O PT também estar em polvorosa, o PT puro e o sujo? As debandadas sem ideologia para viver. A oposição apoiar o Eduardo Cunha que é uma síntese do atraso? Cada um correndo para um lado? O país à deriva? O ordenamento jurídico sendo estilhaçado numa primeira instância; juiz endeusado e promovido a herói?
Em cima desse palco tem muita gente, e o assoalho não está firme. Tem ator querendo matar outro para pegar o papel. Nem tudo se pode falar. Nas coxias tem gente sabotando até a comida do camarim. E isso não é uma comédia. Está mais para ópera bufa.
Falta uma Dercy para falar umas poucas e boas - definitivas - ela sim, escracharia de verdade tudo isso, com seu palavrório picante.
Marli Gonçalves é jornalista - As pessoas que falavam as verdades na lata, com linguagem pro povo entender, sem rodeios, nos deixam e não estão sendo substituídas. Dá saudades. Da Dercy, de Adoniran, de Cazuza. Esses tantos que merecem ser lembrados, porque nos ajudariam agora pelo menos a escrachar mais bonito. E-mail: marli@brickmann.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário