domingo, 15 de maio de 2016

Costura de retalhos

06/04/2016 


Imagem: Flávia Sakai
Imagem: Flávia Sakai
A visão que separa a natureza da agricultura apresentou sua conta. Para não retroceder, a produção convencional aos poucos se aproxima de técnicas mais amigáveis ao ambiente
Por Janice Kiss, da Página 22 –


Desde que o homem interveio na natureza e inventou a agricultura, essa atividade somou importantes conquistas em sua trajetória milenar, com plantas mais produtivas, colheitas fartas e sofisticadas tecnologias. Mas qual o preço do sucesso?


No Brasil, esse custo ficou mais claro em 2006, segundo o sociólogo Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE, na sigla em inglês). “Foi quando a sociedade se deu conta do avanço das lavouras de soja na Amazônia”, comenta.


O professor se refere à moratória da soja, acordo entre o setor produtivo e ambientalistas para barrar os embarques internacionais da oleaginosa cultivada na região. Dois anos antes do pacto, a Amazônia havia atingido seu recorde de desmatamento em razão da expansão desses plantios.


A partir daí, os agricultores passaram a lidar com o surgimento de várias “pontes” criadas para aproximar e compatibilizar agricultura e conservação ambiental. “Até porque não existe atividade humana mais inserida no meio ambiente que a agricultura”, lembra José Eli da Veiga, professor sênior do IEE-USP.


A mais recente delas é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instituído no âmbito do novo Código Florestal e que prevê o mapeamento georreferenciado de todas as propriedades rurais brasileiras, independentemente do tamanho. O prazo para a inscrição dos imóveis termina em maio. A ferramenta é considerada um avanço na gestão territorial do País, porque associa o cadastro à regularização ambiental da propriedade.


“É uma segurança para o produtor, que tem sua área reconhecida e chances de se programar em casos de passivo ambiental, o que não pode ser feito do dia para a noite”, comenta Gustavo Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB).


Até o momento, cerca de 2,25 milhões de imóveis rurais do País (65% das propriedades) inscreveram-se no CAR, que conta com menor adesão das propriedades do Sul e do Nordeste. “Avalio esse dado mais como dificuldade de preenchimento do que resistência ao cadastramento”, afirma Junqueira.


Novos tempos, novas cobranças
O presidente da SRB faz parte da nova geração de produtores rurais que soube entender as influências de temas socioambientais no campo e procurou conciliar-se com eles. “A velha narrativa de ocupação de território não cabe mais nesse modelo”, afirma.


Outra dessas “pontes” aconteceu há seis anos, com a criação do Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), do governo federal. O plano permite que o produtor tenha acesso a tecnologias agrícolas que interferem de forma benéfica no clima – a atividade é considerada uma das principais emissoras de gases de efeito estufa –, como a recuperação de pastagens degradadas, integração entre lavoura, pecuária e floresta em oposição às monoculturas, tratamento de dejetos animais etc.


Mesmo com percalços, como as taxas de juro que subiram de 5% para 8%, e as dificuldades em extensão rural para uma melhor orientação do produtor sobre essas tecnologias, o programa atingiu R$ 3,65 bilhões (8 mil contratos) no ciclo 2014/2015: 35,67% maior em relação à safra 2013/2014. “O ABC é de longe o mais bem-sucedido modelo de agricultura tropical do mundo, mas falta avançar”, reconhece Roberto Rodrigues. O ex-ministro da Agricultura está à frente do Centro de Estudos do Agronegócio da Fundação Getulio Vargas (GVAgro), que coordena o Observatório ABC.


Ainda não foi possível averiguar o impacto dos recursos contratados na redução das emissões de gases-estufa por falta de monitoramento. Porém, o Observatório estima que, de 2012 até 2023, o potencial de mitigação da agropecuária brasileira pode chegar a 1,8 bilhão de toneladas de CO2 equivalente. O número é dez vezes maior do que a meta de redução de emissões estipulada pelo Plano ABC e inclui apenas a adoção de três tecnologias de todo o plano – recuperação de pastagens; integração lavoura-pecuária; e lavoura-pecuária-floresta.


Do seu escritório em Cingapura, Marcos Jank, especialista global em agronegócio, avalia essas evoluções como um caminho natural da atividade. “Uma agricultura de alta tecnologia, sem deixar de lado a conservação, é a saída para produzir alimentos para um mundo cada vez mais populoso”, diz.


Ele cita como exemplo a fazenda da família, produtora de leite tipo A, em Descalvado (SP). Na propriedade, o esterco do gado é tratado de forma adequada para adubar áreas de pastagens e grãos. Os cultivos de milho, soja e laranja são irrigados apenas quando os termômetros acusam a necessidade de água. “Usamos a tecnologia para o melhor uso da terra”, comenta.


Na sua opinião, há tempos o agronegócio tem dado sinais de que se utiliza de “pontes” com o meio ambiente para conseguir resolver a equação de escala de produção sem ampliação de área. “O país investiu muito em melhoramento genético de grãos e animais para alcançar eficiência”, diz Jank.


O diretor do GVAgro Roberto Rodrigues corrobora o argumento do executivo ao exemplificar que, nos últimos 25 anos, a área de grãos no País cresceu 53% e a produção 250%. O mesmo aconteceu com a produção de carnes – a bovina, por exemplo, aumentou em 100%, enquanto a área de pastagem diminuiu 20%.


Embora esses índices sejam caros ao agronegócio, o professor José Eli da Veiga atenta que o alcance da maior produtividade tem alicerces em uma agricultura baseada no uso excessivo de agrotóxicos (o Brasil é o maior consumidor global desses produtos) e de fertilizantes nitrogenados (principal nutriente das plantas) nas lavouras. “A presença excessiva de nitrogênio no solo já se tornou um problema ambiental em muitos países, inclusive com a poluição de lençóis freáticos”, informa.


A pecuária também é um assunto delicado para o setor, pois é apontada como uma das principais razões para a intensificação do desmatamento ilegal. A atividade ocupa hoje 200 milhões de hectares do território nacional, e destes 70 milhões de hectares estão localizadas na Região Amazônica. Na avaliação de Abramovay, do IEE, “são traços de um velho Brasil que nem de longe despareceu”, afirma.


Esse país arcaico, que restringe a ligação entre produzir e conservar, mostrou-se presente no novo Código Florestal, segundo o engenheiro agrônomo José Carlos Pedreira de Freitas, diretor da Hecta Desenvolvimento Empresarial nos Agronegócios. “O Código Florestal, ao diferenciar áreas de exploração de áreas de conservação, aprofundou a atual cisão que erroneamente existe entre produzir e conservar. Deveria ter construído pontes entre as duas e não individualizar os dois territórios”, diz.


O clima no meio do caminho
Enquanto o Plano ABC procura alcançar mais espaço no campo, o programa recebe reforços de outras frentes. Criada há quase um ano e meio, a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura tem por objetivo tornar a agropecuária de baixo carbono majoritária em todo o País. “Vivemos o momento da segunda onda da agricultura, voltada para a sustentabilidade e a integração das atividades”, diz Luiz Cornacchioni, diretor-executivo da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e membro da Coalizão.


Na avaliação de Juliana Cibim, professora de MBA de Meio Ambiente e Agronegócio na Fundação Getulio Vargas (FGV), os produtores rurais de hoje enfrentam muito mais cobranças e situações complexas que as gerações anteriores. “Eles fazem uma agricultura inserida em um cenário de mudança climática”, diz ela, que também é coordenadora-executiva do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).


Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa, trata desse tema desde 2008, quando coordenou o primeiro relatório da empresa sobre os efeitos do clima na agricultura. Ele contribuiu também com o documento que avaliou os reveses das mudanças nas temperaturas: Brasil 2040 – Alternativas de Adaptação às Mudanças Climáticas, feito em parceria por diversos grupos de pesquisa e encomendado pela Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência da República (SAE).


A meta do trabalho é entender como o clima pode afetar o Brasil no futuro e servir como ferramenta para embasar políticas públicas de adaptação nas áreas da saúde, recursos hídricos, energia, agricultura e infraestrutura.


Publicado no fim de 2015, o estudo revela que importantes cultivos como soja, milho, arroz e feijão tendem a sofrer mais que outras plantações por causa do aquecimento do clima daqui a 25 anos, quando as altas temperaturas podem não poupar as fases de floração e enchimento dos grãos, primordiais para boas colheitas. “Os impactos recairão sobre produtores e consumidores”, comenta Assad, um dos principais especialistas em mudança climática no País e também envolvido com o Plano ABC.


Mas não é apenas isso. As terras no Mapitoba correm o risco de desvalorização em decorrência da possibilidade de os cultivos migrarem de altas temperaturas, já típicas da região, para lugares mais frios. As perdas nacionais no campo decorrentes da reviravolta no clima já foram calculadas em US$ 4 bilhões em 2050, conforme outro levantamento, Impactos das Mudanças Climáticas na Produção Agrícola Brasileira, coordenado por Assad.


O setor de soja arcará com cerca de 50% delas. Por sinal, a oleaginosa apresenta sinais de não aguentar tanta secura. O Mato Grosso – principal produtor do grão – perdeu 1 milhão de toneladas na safra 2015/16 por causa da estiagem. “O levantamento se baseia no cenário atuatual, caso nada seja feito para alterá-lo”, diz Assad.


Tudo junto e misturado
O diretor da Hecta entende que os temas que dominam a agricultura têm mudado não apenas porque os tempos são outros. “Há uma pressão do consumidor sobre a origem dos produtos”, afirma Pedreira. O consultor cita como exemplo o turismo rural, como os da Fazenda da Toca, em Corumbataí (SP), e da Fazenda Santa Adelaide, em Morungaba (SP), que abrem suas porteiras para mostrar a rotina no campo para quem vive distante dele.


Segundo Pedreira, a evolução da agricultura orgânica, vista com certo descrédito décadas atrás, tem a ver com esse comportamento. “Por trás do produto sem agrotóxico há uma relação bem-sucedida entre cultivo de alimentos e meio ambiente. Conforme dados do Organics Brasil, esse mercado cresceu 25% no ano passado, em comparação a 2014, movimentando R$ 2,5 bilhões. “Ainda é um nicho por uma questão de falta de renda no País”, diz o diretor.


E uma coisa puxa a outra. Segundo a Associação Brasileira das Empresas de Controle Biológico (ABC Bio), a indústria de defensivos agrícolas biológicos cresce entre 15% e 20% ao ano.


A entidade aponta como principal razão uma nova mentalidade dos produtores, que buscam uma agricultura mais sustentável e valorizam o manejo integrado de pragas.
Há 25 anos, quando começou a trabalhar com agrofloresta, o pesquisador Marcelo Arco-Verde, da Embrapa Florestas, sabia que resistência era o principal obstáculo a ser enfrentado ao apresentar essa forma de cultivo para o agricultor. “Plantar em meio a árvores era coisa de maluco na época”, relembra.


Arco-Verde entende que a agrofloresta tem ainda outra vantagem: a de poder ser instalada em áreas de Reserva Legal. “É um modelo perfeito para entrar na recomposição de 57 milhões de hectares exigida pelo Código Florestal”, diz.


Embora não existam estatísticas que possam dimensionar a extensão desse cultivo, o pesquisador explica que esse modelo agrícola está espalhado por todo o País, de forma mais acentuada na Amazônia. “Nunca vai concorrer com a agricultura de escala. Mas a diversificação faz bem a todo mundo, à terra e ao produtor”, afirma. (Página 22/ #Envolverde)


* Publicado originalmente no site da Página 22.

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