No terreno do Inmet, uso institucional continua,
mas reparcelamento é liberado
Segundo especialistas e
representantes da sociedade civil, detalhamento de regras sobre o tombamento de
Brasília feito pelo instituto abre brechas para alterações no projeto original
e interfere em atuação do GDF. Eles prometem entrar na Justiça
Queixa também atinge a alteração
do uso residencial unifamiliar para as quadras 700
Quase três décadas depois da inscrição
de Brasília como Patrimônio mundial da humanidade, o Iphan publicou uma
portaria para complementar e detalhar as regras do tombamento da capital
federal. O documento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
se propõe a consolidar as normas de preservação, mas, para entidades de defesa
do tombamento, a legislação federal abre brechas para mudanças no projeto de
Lucio Costa. Conselhos comunitários e associações de defesa da área vão
recorrer à Justiça para tentar revogar a Portaria 166/2016. Além de reafirmar
princípios da proposta original da cidade, como as escalas e a estrutura urbana
do Plano Piloto, a nova regra permite uso residencial em lotes na beira do
lago, libera a criação de lotes no Eixo Monumental e admite a instalação de
pequenos comércios entre prédios da Esplanada.
A portaria foi publicada pelo Iphan em 13 de maio, depois de 18 meses de trabalho de técnicos do instituto. O documento detalha regras de uso e ocupação e o gabarito de cada área da zona tombada. A nova legislação não revogou a Portaria 314/1992, a primeira a tratar sobre as regras do tombamento — segundo o instituto, apenas complementa e detalha a legislação anterior.
Para a vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do DF, Vera
Ramos, a nova portaria define regras de uso e ocupação do solo e parâmetros
urbanísticos para a área tombada, o que só poderia ser feito pelo GDF, por meio
de lei distrital. “Essa portaria descaracteriza o conceito de unidade de
vizinhança porque permite a alteração do uso de equipamentos públicos
comunitários das entrequadras. O Iphan está legislando sobre a política de
desenvolvimento e de uso do solo do Distrito Federal, o que é uma atribuição do
GDF”, explica Vera Ramos.
Pelo projeto original das unidades de vizinhança, os lotes das
entrequadras residenciais são destinados a finalidades específicas, como
estacionamento, postos de gasolina, creches, correios, biblioteca, clube de
vizinhança, templo religioso, escola parque ou área de esporte, dependendo da
superquadra. A portaria do Iphan estabelece apenas que esses lotes devem ter
“usos diversificados relacionados às características essenciais da escala
residencial”. Para os terrenos, o gabarito máximo será de três pavimentos.
“A Portaria 166 se dispõe complementar e detalhar a Portaria 314, de
1992, mas vai além e define parâmetros urbanísticos que conflitam com a antiga
norma”, comenta Vera Ramos. “Além disso, a redação é confusa e imprecisa. Isso
pode levar à descaracterização das unidades de vizinhança. Tudo revestido de
nobreza de intenção”, acrescenta a arquiteta. Entidades como o Instituto
Histórico e Geográfico do DF, os conselhos comunitários da Asa Sul, da Asa
Norte e do Sudoeste, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios, a
Associação Casa de Lucio Costa e a Frente Comunitária de Preservação do Sítio
Histórico de Brasília, além de prefeitos de várias quadras, lançaram ontem um
manifesto, vão procurar o Ministério Público Federal e acionar a Justiça para
tentar revogar a normatização. As entidades alegam que a portaria traz vários
pontos incluídos na antiga proposta do Plano de Preservação do Conjunto
Urbanístico de Brasília (PPCub), suspensa por conta das reclamações da
sociedade.
Mudanças
O grupo queixa-se da alteração do uso residencial unifamiliar para as
quadras 700 e para o Cruzeiro Velho, o que poderia abrir brechas para a
instalação de pousadas. O texto altera o uso de lotes na beira do Lago Paranoá,
liberando residências e hotéis em áreas como o Trecho 4 do Setor de Clubes Sul.
A portaria cita ainda a possibilidade de desmembramento e criação de novos
lotes no canteiro central do Eixo Monumental, desde que destinados a
equipamentos culturais e de uso público. Outro ponto polêmico é a fixação de
normas urbanísticas para a grande área hoje ocupada pelo Instituto Nacional de
Meteorologia (Inmet), no Setor Sudoeste. A portaria do Iphan mantém o uso
institucional, mas libera o reparcelamento e a construção de edificações de até
seis andares no terreno.
A arquiteta e urbanista Tânia Batella, da Frente Comunitária de
Preservação do Sítio Histórico de Brasília, diz que ficou surpresa com a nova
portaria. “Ela é absurda. As autoridades do Iphan não podem mudar uso do solo
da área tombada como se estivessem lidando com o quintal da casa deles”,
reclama a especialista. “Um dos pontos essenciais do projeto de Brasília são os
espaços públicos, que caracterizam a capital como uma cidade parque. Mas até no
canteiro do Eixo Monumental há previsão de novos parcelamentos, além das mudanças
nas entrequadras. Vamos requerer a suspensão dessas normas”, acrescenta.
Órgão
aponta avanços
O superintendente do Iphan no DF, Carlos Madson, defende o trabalho
desenvolvido pelo instituto e afirma que a portaria foi debatida internamente
pelos técnicos durante um ano e meio. “Essas críticas são normais, também
recebemos muitas manifestações favoráveis. A gente entende que o texto
representa um avanço e não revoga a Portaria 314, que continua vigente. A
prerrogativa de alterar normas de uso e ocupação do solo é do GDF. O que o
Iphan fez foi detalhar e sistematizar as normas, dando mais consistência e
efetividade à preservação de Brasília”, explica.
Madson conta que apresentou a minuta de portaria ao arquiteto Ítalo
Campofiorito, membro do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural e
responsável pela redação das regras do tombamento aprovadas em 1992, e diz que
o especialista aprovou a iniciativa. Sobre a possível mudança de uso nos lotes
das entrequadras, Madson diz que a “cidade não pode ficar congelada”. Ele
menciona os terrenos destinados a cinemas e a clubes. “Os cinemas de rua não
existem mais, quase todos fecharam as portas no Brasil. Com relação aos clubes,
a maioria da comunidade não quer a construção ao lado de suas casas, por temer
o impacto e o barulho. Por que não fazer uma reciclagem, como ocorre em outros
países, como a Holanda? Lá, igrejas fechadas e sem uso viraram bibliotecas e
até habitação, sem descaracterizar”. Madson defende uma “corrente do meio”
entre os que apoiam propostas que desvirtuam o tombamento e aqueles que brigam
pelo “congelamento” da cidade.
O secretário de Gestão do Território e Habitação, Thiago de Andrade, diz
que representantes do GDF participaram de encontros com o Iphan para avaliação
e críticas da proposta de portaria, mas argumenta que a responsabilidade sobre
o texto é do instituto. Segundo ele, a nova proposta de PPCub não poderá entrar
em conflito com a portaria do Iphan. “Mas nada impede que o PPCub seja ainda
mais rígido e restritivo do que a portaria. A questão da proibição das pousadas
nas quadras 700, por exemplo, é um compromisso assumido pelo governo e não
haverá discussões sobre isso. A portaria não tira atribuições do governo”,
comenta o secretário.
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