TEXTO 1
A Amazônia que arde
O ano de 2016 caminha para ser o mais quente já registrado. Enquanto isso, no Brasil, um dos El Niños mais intensos das últimas décadas exacerbou a estação seca em boa parte da na Amazônia.
Quando
esses dois quadros se juntaram ao uso inadequado do fogo nos últimos
meses, vastos quinhões da Amazônia arderam, com graves consequências
para as populações, para a economia e para a natureza.
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a área queimada na região em setembro[1]
chegou a 54,5 mil quilômetros quadrados, maior do que o Estado do Rio –
extensão pouco menor do que em setembro de 2015, contrariando previsões
iniciais de potencial recorde neste ano.
Nem
por isso há o que se comemorar: largas áreas de vegetação foram
incendiadas. “Sabemos que está ocorrendo o aumento da estação seca na
Amazônia e uma alteração no ciclo hidrológico, mas ainda não sabemos
direito as causas", diz o cientista Paulo Artaxo, professor na
Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro do IPAM.
Estresse
De
acordo com dados da NASA (agência espacial norte-americana), o solo da
floresta amazônica está menos úmido em 2016 do que em 2005 e 2010, dois
anos que também registraram secas extremas[2].
A
área queimada no bioma aumentou 110% em 2015 em relação à área queimada
em 2006, segundo cálculo baseado em informações do Inpe. Enquanto isso,
a área de corte raso caiu 56%, ficando estacionada ao redor de 5.000
km2.
Em todo o mundo, as regiões de floresta tropical têm aquecido em média 0,26°C por década desde meados de 1970[3].
“A Amazônia está sofrendo um processo de estresse hídrico devido ao
aumento de 1,5°C no último século”, explica Artaxo. “Ao ter um ambiente
com uma temperatura alta se aproximando de limiares, isso pode trazer
uma fragilidade maior para a região.”
Quando diferentes forças – atividades humanas, como mudança no uso do solo e emissões de CO2, mais fatores naturais, como El Niño – atuam sobre uma mesma região ao mesmo tempo, pesquisas científicas combinadas a políticas públicas precisam ser prioritárias.
"Políticas
públicas de longo prazo, monitoramento, presença do Estado e
governabilidade estadual são essenciais para definir os próximos rumos
do ambiente e da população como um todo", diz o cientista. "Uma
estratégia muito importante para o país é melhorar o monitoramento
ambiental dos processos que estão acontecendo na Amazônia. Mudanças no
uso do solo são só a primeira alteração ambiental numa cadeia muito
grande – é preciso monitorá-la completamente.”
TEXTO 2
Um menino esquenta a Amazônia
Em
agosto e setembro, o Inpe detectou 425.178 focos de calor no bioma
amazônico. Nos mesmos meses de 2015, foram registrados 444.942 focos,
cerca de 4% a mais. Já a área queimada cresceu pouco mais de 5%, de
102.965 para 108.655 quilômetros quadrados, na mesma comparação.
Esse fogaréu todo responde pelo nome de El Niño (“O Menino”, em espanhol), que começou no ano passado e só foi perder força no primeiro semestre de 2016.
El Niño
é um fenômeno natural climático como consequência do aquecimento fora
do normal das águas do Oceano Pacífico na altura da costa do Peru.
Conhecido por alterar globalmente os índices pluviométricos e os padrões
de vento, no Brasil ele atinge as regiões de formas diferentes. Ao
modificar a distribuição de calor e umidade, El Niño geralmente causa excesso de chuva no Sul do país e redução no Nordeste e no Leste da Amazônia.
No
período de 2015-2016, a temperatura da superfície do Oceano Pacífico
foi a mais alta registrada desde 2001, quando começou o monitoramento de
queimadas por satélite. Para piorar, a temperatura da superfície do
Oceano Atlântico também esteve acima do normal, o que intensificou a
seca e, por consequência, as queimadas na Amazônia este ano[4].
Alta intensidade
O último grande El Niño foi
registrado entre 1997 e 1998. O fenômeno causou uma intensa seca na
Amazônia, o que aumentou significativamente as queimadas.
Naquele
período, estudos do IPAM com IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada) mostraram que na Amazônia os prejuízos com o fogo chegaram a
quase 10% de PIB (cerca de US$ 5 bilhões na época). Em 1998, só o SUS
(Sistema Único de Saúde) gastou mais de US$ 10 milhões com tratamento de
problemas respiratórios na região devido à fumaça das queimadas na
região[5]. No Nordeste, a estiagem provocou uma perda de R$ 1,8 bilhão[6] devido a quebras de produção. No Sul, as chuvas ficaram acima da média histórica, causando tempestades e enchentes.
Neste ano, o El Niño foi, além de intenso, extenso (confira gráfico abaixo).
“Ainda não podemos atribuir essa intensidade do fenômeno ao aquecimento
global; serão necessárias um pouco mais investigações”, explica o
pesquisador sênior do IPAM, Paulo Moutinho. “Mas o que se pode já dizer é
que, se o avanço do desmatamento e da mudanças climática continuarem, o
cenário de grandes secas em boa parte da Amazônia poderá ser algo bem
comum no futuro.”
TEXTO 3
O (des)controle do fogo
O fenômeno El Niño
forneceu o ambiente para as queimadas proliferarem em 2015 e 2016. Mas,
ele sozinho não explica por que tantos focos de calor surgiram na
Amazônia. Essa conta é do homem.
Na
Amazônia, é praticamente impossível que o fogo apareça por causas
naturais. Raios, por exemplo. Se o número de focos de calor aumentou
neste ano é porque alguém riscou o fósforo em uma situação altamente
favorável a propagação das chamas.
“A
frequência do fogo natural na Amazônia, ou seja, de quanto em quanto
tempo uma mesma área queima sem interferência humana, é de 500 a 1.000
anos”, explica a pesquisadora Ane Alencar, diretora do IPAM. “Pela ação
humana, nós diminuímos essa frequência para 24 anos, sendo que há
lugares que já queimaram até 12 vezes nesse mesmo período." É uma alta
frequência de queima a qual a vegetação não tem tempo para se adaptar”. O
resultado é uma mortalidade elevada de árvores, mesmo quando o fogo é
rasteiro.
Alencar
mapeou o histórico do fogo em 24 anos no Sudeste da região, utilizando
dados de sensoriamento remoto e identificando quantidade de material no
solo. Sua conclusão é que, apesar de o fogo ser considerado um distúrbio
natural da floresta, a forma que se faz o manejo da terra está
alterando seu regime na Amazônia, pois ele mexe na dinâmica da região,
enquanto as mudanças climáticas potencializam seus efeitos.
"A
floresta tem a capacidade de retenção de água no solo, mas não está se
recuperando desse processo de seca intensa”, diz a diretora do IPAM. Há
um déficit de água acumulada na floresta, que parece aumentar ano após
ano. Por isso, qualquer fagulha tem potencial de virar labaredas. “São
vários eventos que se sobrepõem, sem que haja um tempo de recuperação do
solo.”
Um
desses eventos é a conversão de uma área florestada para um campo de
soja ou de pasto. Um estudo realizado pelo também pesquisador do IPAM
Divino Silvério ao redor do Parque Indígena do Xingu (MT) aponta que
áreas de produção tem a temperatura da superfície de 4°C a 6°C, em
média, mais alta em comparação a uma área florestada.
"Ao
desmatar, o sistema perde capacidade de retirar água do solo mais
profundo, assim, a energia do Sol que seria utilizada para gerar vapor
d’água passa a ser utilizada para aquecer o solo. Desta forma, o sistema
se torna muito mais quente e mais seco", explica Silvério.
Combate
Justamente
num ano que se previa crítico, o Ibama (Insttuto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) teve menos dinheiro para
combater incêndios florestais na Amazônia. O Prevfogo, um programa do
Ibama que todo ano contrata brigadistas para combater queimadas
sobretudo em terras indígenas e assentamentos, teve R$ 24,2 milhões no
ano passado e contratou 1.400 pessoas. Neste ano, após dois cortes
orçamentários e uma complementação, foram R$ 22 milhões, que bastou para
contratar 900 pessoas.
"Com
o aumento do salário mínimo, a despesa total cresceu, mas o orçamento
não acompanhou. Por isso contratamos menos brigadistas", explica Gabriel
Zacharias, chefe do Prevfogo.
Segundo
ele, uma estratégia que o programa tem usado nos últimos anos é tentar
fazer o manejo do fogo usando o conhecimento tradicional dos índios (23
das 49 brigadas do Prevfogo são indígenas). "Não dá para simplesmente
dizer para não queimar. O que nós estamos fazendo é buscar resgatar, por
exemplo, a informação de quando os avós dos índios queimavam", diz
Zacharias. "O horário da queimada, por exemplo, importa muito na
disseminação do fogo."
TEXTO 4
Mais fogo, menos comida
O
fogo é uma técnica antiga utilizada pelos índios, para limpar a área e
preparar a terra antes do cultivo. No passado, quando usado, o fogo não
causava tantos problemas. Porém, em um ambiente cada vez mais seco, as
condições naturais do clima que os indígenas estavam acostumados não são
mais as mesmas. O risco de se perder o controle do fogo – porque a
chuva atrasou, por exemplo – é bem maior agora. Consequentemente, há
mais incêndios florestais e muitos indígenas estão perdendo seu cultivo
de subsistência.
Segundo
a pesquisadora do IPAM, Ane Alencar, é preciso entender como as
políticas públicas podem auxiliar em ano de seca extrema e trabalhar com
os índios a melhor forma de manejo para enfrentar o problema. “É
preciso criar os mecanismos para que eles tenham essa visão de médio
prazo e possam se adequar às novas condições climáticas", afirma
Alencar.
Uma alternativa para a criação desta visão mais abrangente do problema está na plataforma SOMAI
(Sistema de Observação e Monitoramento da Amazônia Indígena),
desenvolvida pelo IPAM. Por meio dela, os povos tradicionais têm acesso a
informações que impactam suas terras. Com o apoio do Google, nos
próximos meses, um boletim digital, o Alerta Clima Indígena, será
lançado para levar dados climáticos com mais antecedência aos indígenas.
“Muitos
povos indígenas já relatam mudanças nos seus calendários agrícolas,
afetando diretamente a segurança alimentar. Ferramenta como o SOMAI e o
Alerta Clima Indígena apoiarão tomadas de decisão importantes na gestão
territorial, visando a ações de adaptação para esses povos", afirma a
coordenadora do núcleo indígena do IPAM, Fernanda Bortolotto.
Produção em risco
Não
só o cultivo de subsistência precisa de adaptação. No Pará, o segundo
Estado que mais produz cacau no Brasil, os agricultores estão sentindo
os impactos da seca. No verão de 2015, diversos produtores relataram a
mortalidade de cacaueiros. Esse ano, a safra que deveria ser colhida até
agosto atrasou e é esperada uma perda de 50% da produção.
Até
os produtores mais antigos estão surpresos com a situação desse ano.
Élido Trevisan é um médio produtor em Medicilândia (PA), que produz
cacau desde 1977. Ele conta que, em uma safra normal, sua produção é de
1.500 quilos por hectare, mas esse ano vai cair para 900 quilos. “É uma
queda muito grande na colheita do cacau, ainda mais considerando que
essa foi a única safra do ano. Estamos sofrendo, porque ficamos nove
meses sem produção."
TEXTO 5
Os efeitos invisíveis do fogo
Além
das labaredas e grandes colunas de fumaça, as queimadas provocam
efeitos danosos e de longo prazo que não são imediatamente visíveis.
O
primeiro é o empobrecimento do solo. Especialmente em áreas em que o
fogo é recorrente, ou seja, quando ele é usado como ferramenta agrícola,
ele degrada e afeta a fertilidade da terra, e reduz tanto a produção
agrícola quanto sua capacidade de produção.
Nutrientes
essenciais às plantas, como nitrogênio, potássio e fósforo, são
eliminados. Além disso, a prática reduz a umidade do solo e acarreta na
sua compactação, resultando em um processo erosivo.
Na
Amazônia, as queimadas se somam ao desmatamento e a secas extremas para
ampliar esse processo, uma vez que cada um desses fatores alimenta o
seguinte.
Com
a crescente demanda por alimentos, a saúde do solo, que é um recurso
finito, é uma preocupação mundial. De acordo com a Organização das
Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) cerca de 32% das
terras do mundo estão degradadas.
"No
Brasil 40% do PIB vem do uso do solo. Se fizermos o manejo de forma
equivocada, vamos comprometer o futuro e a segurança alimentar da
população. Por isso, é preciso investir na conservação, na recuperação e
no bom uso do solo," explica o diretor-executivo do IPAM, André
Guimarães.
Aquecimento global
Outro
efeito é o impacto no clima. Além de reduzir a capacidade das florestas
em armazenar o carbono, as queimas são responsáveis por liberar uma
grande quantidade de CO2, o principal gás do efeito estufa, na
atmosfera.
Estimativas
globais indicam que 70% a 80% do CO2 que chega à troposfera pela queima
de biomassa em um ano vem de regiões equatoriais e subtropicais[7].
Na
terceira Comunicação Nacional do Brasil à Convenção-Quadro da ONU sobre
Mudanças do Clima, divulgada neste ano, as emissões de gases estufa
pelo fogo seguidas de desmatamento correspondem a 350 milhões de
toneladas de CO2 equivalente (t CO2e) em 2010, que são 63% das emissões
totais de uso de solo, como explica o cientista da UFMG (Universidade
Federal de Minas Gerais) Raoni Rajão. “Há também as emissões de mais de
450 milhões de tCO2e que, por serem de fogo que não ocasionaram
desmatamento, não são contabilizadas, já que parte disso pode voltar
para a floresta em recuperação”, diz.
Quanto
mais gases estufa na atmosfera, piores são as mudanças climáticas e
mais intensos e frequentes serão os eventos extremos, como as secas –
que, por sua vez, alimentam mais fogo, num círculo vicioso e
extremamente perigoso para a Amazônia e para quem vive na região.
“Enquanto desmatamento e queimadas forem uma prática corrente na Amazônia, não haverá equilíbrio”, diz Paulo Moutinho, do IPAM.
Reportagem: Karinna Matozinhos (IPAM), com colaboração de Claudio Angelo (Observatório do Clima)
Edição: Cristina Amorim (IPAM)
Edição: Cristina Amorim (IPAM)
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