História evolutiva da vegetação na área serrana da região Sul ressalta importância de ecossistema não florestal
GILBERTO STAM |
ED. 239 | JANEIRO 2016
Os campos de altitude da Serra Geral, no sul do Brasil, são encontrados sobre platôs cada vez mais altos à medida que avançam para a borda leste, onde a serra de repente despenca em imensos cânions. Vegetação campestre e arbustos predominam nessa área de invernos frios e solo raso, salpicada por afloramentos rochosos, pequenas manchas florestais e regiões encharcadas e ricas em matéria orgânica (turfeiras).
A aparente monotonia dos campos, que alguns chamam de “mar de grama”, esconde uma rica biodiversidade vegetal, com quase 300 espécies exclusivas da região, muitas delas pouco estudadas até recentemente. “A taxa de endemismo é de 25%, muito maior do que a encontrada na Floresta Atlântica da região”, diz o botânico João Iganci, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Embora muitas plantas dali também existam em outras regiões de altitude, tanto tropicais quanto temperadas, é esse endemismo que torna especiais os campos do Sul. “O número total de espécies também é alto e comparável a outros centros de biodiversidade, considerando que a área é pequena.”
Iganci, especialista na vegetação dos Campos de Cima da Serra, como são conhecidos na região, faz parte de um grupo da UFRGS e da Universidade Federal de Goiás (UFG) liderado pela geneticista Loreta Freitas, também da UFRGS, que busca compreender a história evolutiva das espécies da região e localizar áreas prioritárias para conservação. Os pesquisadores dividiram a Serra Geral em quatro regiões (ver mapa), sempre a partir de 900 metros acima do nível do mar, onde a floresta típica da Mata Atlântica dá lugar aos campos e às matas com araucária. A primeira etapa foi mapear a distribuição das espécies usando como indicador três gêneros típicos da região, todos eles com uma abundância de espécies endêmicas (índice de endemismo): Petunia, Calibrachoa e Adesmia.
O estudo, parte do doutorado do biólogo Michel Barros, demonstrou que a Área 1, no cume da serra, abriga a maior diversidade, com 13 espécies, seguida pela Área 2, a oeste, com 10 espécies.
Altos índices de endemismo geralmente ocorrem em ecossistemas antigos e estáveis, já que demora muito tempo para novas espécies surgirem. Parece que foi isso mesmo que aconteceu nos campos de altitude sulinos, de acordo com simulações do clima desde 21 mil anos atrás, quando o planeta atingiu sua temperatura mais baixa desde o último ciclo glacial.
Os resultados indicam que a Área 1, seguida pela 2, manteve um clima mais estável, confirmando a pista dada pela biodiversidade. “No último máximo glacial o clima era mais frio e seco, propício para o desenvolvimento dos campos, o que permitiu que espécies desse ambiente avançassem sobre áreas mais úmidas e quentes, onde antes predominavam florestas”, conta Loreta.
“Ao migrar para regiões para as quais não estavam adaptadas, as espécies campestres se diversificavam, dando origem a novas espécies e linhagens.” Durante esse período, houve expansão dos campos em direção a locais de menor altitude, ao norte. Mas, com o aquecimento gradual e aumento da umidade, as florestas voltaram a se expandir e ocupar regiões de campos que, por sua vez, se tornaram restritos às regiões mais altas, onde estão hoje.
As florestas com araucária – que dividem o mesmo ambiente, formando mosaicos com os campos – também tiveram um papel importante. “Ao longo do tempo, ocorreu uma competição constante entre campo e essas florestas, com uma alternância entre ambientes dependendo das condições climáticas”, diz Iganci.
Essa dinâmica, que ainda hoje existe, pode ter sido responsável pela separação de determinadas populações que acabaram formando novas espécies. “Esse parece ter sido o caso de algumas petúnias polinizadas por abelhas”, diz Loreta. “Essas abelhas não conseguiam atravessar as florestas com araucária, que assim provocavam um bloqueio no fluxo gênico entre populações.”
Os pesquisadores observaram também que a biodiversidade fica menor nas direções oeste e norte, conforme diminui a altitude e a umidade que vem do mar. “Os resultados para biodiversidade se referem apenas aos grupos estudados, mas são espécies altamente representativas da região”, diz Loreta.
“Também observamos uma forte correlação da biodiversidade com o clima e a altitude.” Além de indicar áreas prioritárias e ajudar a entender a origem da biodiversidade da região, o estudo contribui para revelar uma riqueza antes desconhecida.
“Até pouco tempo atrás os Campos de Cima da Serra vinham sendo completamente negligenciados em estudos que levam em conta os aspectos ecológicos, evolutivos e conservacionistas”, diz Iganci. O pesquisador, que fez várias viagens de coleta nos últimos 10 anos, alerta para a degradação do ecossistema e identifica sua principal ameaça: o avanço da silvicultura, que consiste em plantações de pinheiro e eucalipto.
Percepção campestre
O estudo contraria a ênfase dada às florestas que limita os esforços de preservação de campos no mundo todo. Um grupo de especialistas em ecossistemas campestres do Brasil, Estados Unidos, França, Bélgica e África do Sul tenta mudar essa percepção ressaltando, dentro e fora da comunidade científica, a alta biodiversidade dos campos, que devem ser vistos como ecossistemas antigos, cuja história evolutiva de milhões de anos tem íntima relação com o fogo e a presença de animais herbívoros.
Muitas plantas apresentam adaptações como caules subterrâneos e são capazes de brotar rapidamente após a queima e com órgãos subterrâneos como tubérculos, rizomas e bulbos, que armazenam água e amido em local protegido.
“A diversidade de plantas e também de outros grupos dos ambientes de campo e de savana no Brasil pode ser considerada equivalente àquela das florestas”, diz o ecólogo Gerhard Overbeck, especialista em vegetação campestre, também da UFRGS.
“Temos de levar em conta também a área ocupada por esses ecossistemas. O Pampa, por exemplo, ocupa pouco mais de 2% do Brasil, mas contém mais de 2.150 espécies de plantas apenas em ambientes de campo”, completa. Segundo ele, em algumas regiões campestres no sul do Brasil é possível encontrar mais de 50 espécies de plantas por metro quadrado, incluindo um grande número de espécies de gramíneas.
Muitas plantas de ambientes campestres têm um longo ciclo de vida, como algumas do gênero Vellozia, que ocorrem nos campos rupestres no Brasil Central, que demoram 100 anos para chegar à idade reprodutiva e podem viver até 500 anos. O problema é que os sinais de antiguidade no campo são mais difíceis de visualizar que o perímetro das árvores ou o acúmulo de matéria orgânica nas florestas.
Valorização humana
Os campos também prestam importantes serviços ecológicos. “Esses ecossistemas são fundamentais na regulação do ciclo hidrológico, pois além de a vegetação reter muito menos água das chuvas do que o dossel das florestas, as abundantes raízes finas funcionam como uma esponja que libera a água aos poucos para os rios e aquíferos”, diz a engenheira florestal especialista em Cerrado Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, em Assis.
Além disso, o solo abriga tubérculos, bulbos e rizomas, adaptações das plantas que ajudam a reter água na estação seca e permitem que elas resistam ao fogo e à herbivoria, desafios comuns nesses ambientes. “Essas estruturas contribuem para o sequestro de carbono, embora isso ainda não esteja quantificado”, diz Giselda. “Os solos são complexos e levam muito tempo para se formar. Se degradados, a recuperação é dificílima.”
A falta de conhecimento sobre a ecologia dos campos tem levado a políticas de conservação equivocadas, como o incentivo à silvicultura, com resultados desastrosos para a biodiversidade e para os serviços ecológicos. “As árvores fazem sombra, impedindo o crescimento das plantas herbáceas ávidas por sol e reduzindo a biodiversidade”, diz Giselda.
“Além disso, fazem com que 20% a 30% da água da chuva evapore antes de chegar ao solo.” Outro exemplo de proteção às avessas é a proibição da “sapecada”, queima provocada pelos pecuaristas serranos para manejo do pasto e proibida em 1992 pelo Código Florestal Estadual do Rio Grande do Sul. Giselda afirma que o fogo, assim como o gado (desde que não sejam excessivos), evita o adensamento das árvores, ajudando a manter estável a estrutura e a diversidade da vegetação campestre. Além disso, a variedade de gramíneas natural desses ambientes pode tornar a carne mais saudável do que a de animais confinados.
O grupo internacional de especialistas, do qual fazem parte Giselda e Gerhard, publicou em 2015 um artigo no qual propõe o conceito de “campos antigos” (old growth grasslands, em inglês), um adjetivo em geral aplicado a florestas maduras.
Os autores chamam a atenção para características específicas de ecossistemas de campo de savana que exigem estratégias de conservação distintas. Ao ampliar a compreensão desses ambientes, eles também esperam contribuir para inserir os campos na pauta do movimento ambientalista, lançando um novo olhar sobre esses ecossistemas que ajude a enxergar as riquezas escondidas no “mar de grama”.
Artigos científicos
Veldman, J. W. et al. Toward an old-growth concept for grasslands, savannas, and woodlands. Frontiers in Ecology and Environment. v. 13, n. 3, p. 154-62. abr. 2015.
Barros, M. J. F. et al. Environmental drivers of diversity in Subtropical Highland Grasslands. Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics. v. 17, n. 5, p. 360-8. out. 2015.
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