– Entrevista com Altair Sales Barbosa
Raízes – O Sr. se tornou uma das maiores referências mundiais em Cerrado, antropologia, arqueologia e meio ambiente. Já proferiu mais de mil palestras, principalmente de teor ambiental, e fez algumas declarações um tanto polêmicas, uma delas inclusive nos causa um desconforto muito grande, que é a afirmação de que “o Cerrado acabou”. Explique melhor essa afirmativa.
Altair Sales
– O Cerrado, diferente dos outros matizes ambientais brasileiros, tem
que ser entendido como um sistema biogeográfico. Sistema é um conjunto
de elementos intimamente interligados, e qualquer modificação em um
desses elementos provoca alterações maiores no sistema como um todo.
No
Cerrado temos ambientes totalmente ensolarados, como as campinas e os
campos limpos, e ambientes sombreados, aqui mesmo próximo a Goiânia
temos exemplos de resquícios dessas matas, no Parque Ecológico Altamiro
Moura Pacheco. O Cerrado tem essa variação de ambiente. Entre o ambiente
ensolarado e o umbrófilo (sombreado), há todo um conjunto de outros
ambientes stricto sensu, como o cerradão, a vereda, as matas ciliares,
todos interdependentes. Modificou um deles, todo o sistema sofre
mudança. Isso vem sendo observado numa história evolutiva de milhões de
anos.
Por exemplo, nos chapadões, onde se encontram as campinas e os
campos limpos, é onde ocorre também a recarga do aquífero, que alimenta
áreas de matas situadas em terrenos mais baixos. A cobertura vegetal do
cerradão, na área plana, é que garante a infiltração da água da chuva
nas raízes das plantas. Retirada essa cobertura, a infiltração não
ocorre como deveria, e isso prejudicará em maior ou menor grau todos os
demais ambientes.
O aquífero só é abastecido ali, as demais áreas são de
descarga. Para responder à sua pergunta, é preciso ter uma visão global
da História Evolutiva do Cerrado, uma evolução de mais de 60 milhões de
anos. Houve uma adaptação a um tipo específico de solo, de clima, de
agente polinizador que, se eliminado ou alterado, modifica as
características dos demais elementos envolvidos.
Raízes – Esses elementos polinizadores seriam as abelhas, os besouros, algo assim?
Altair Sales – Exato. Abelhas nativas, como, por exemplo, a Jataí. Determinadas plantas só são polinizadas por insetos específicos.
Raízes – Se a abelha morrer, a planta deixa de se reproduzir…
Altair Sales –
Sim, você vai ver jatobazeiro, pés de araticum e outras plantas sem
frutos. A planta pode até continuar existindo por certo tempo, mas não
vai mais ter fruto, com isso não terá semente que propicie a reprodução
da espécie, o que determinará seu fim. Se você altera o solo, por
exemplo, arando esse solo para plantar arroz, soja, aquele solo, que era
oligotrófico – carente de nutrientes básicos –, recebe calcário para
corrigir a acidez, recebe adubos ara aumentar a produtividade… se forem
mudadas as características primitivas, não vai mais ser um Cerrado.
Raízes –
Se eu trago uma planta lá da Mata Atlântica, por exemplo, introduzo no
Cerrado, por que ela não propicia o mesmo tipo de infiltração e
manutenção do aquífero?
Altair Sales
– Porque ela não exerce o papel ecológico próprio do Cerrado. O sistema
radicular do Cerrado é muito complexo. Além da raiz pivotante, que é a
raiz principal, que é mais profunda, há um sistema lateral de milhares
de canais. Leve um pedaço mínimo de plantas do cerrado ao microscópio e
verá milhares de radículas…
Raízes – São “cabeludas”, né? Um exemplo é o tucum, certo?
Altair Sales
– Isso mesmo. Essa planta tem uns 40cm acima do solo, mas há um sistema
radicular muito complexo, o que garante uma longevidade ao tronco de
até 1.000 anos, em alguns casos até mais do que isso. Cada raiz tem uma
função ecológica importantíssima, a mais básica é fixar a água no solo.
Um solo desnudo, com plantas exóticas introduzidas, não é capaz de reter
a água. Uma insolação mais forte fará com que a água existente na parte
superficial desse solo evapore e não alimente os lençóis mais
profundos.
Raízes – O Sr. diz, em um de seus estudos, que o Cerrado é como a cumeeira de uma casa. Por quê?
Altair Sales –
A cumeeira é a parte mais alta de uma casa, a parte que recebe a água
da chuva que flui pelos quatro – ou mais – cantos do telhado. O Cerrado
recebe e retém a água da chuva… o verbo, infelizmente, ficaria melhor no
passado: ele retinha essas águas e as distribuía para todas as bacias
do continente. Bacia Amazônica, do São Francisco, do Paraná e inúmeras
bacias independentes, como a do Parnaíba, que, apesar de ser pequena em
relação à Amazônica, é tão complexa que carreia sedimentos do Jalapão,
da Chapada das Mangabeiras e forma o segundo maior delta das Américas,
com mais de 74 ilhas, distribuindo as areias desde o Maranhão, formando
os lençóis maranhenses e piauienses e indo até Jericoaquara, no Ceará.
Algumas ilhas desse delta são tão grandes que têm dois municípios dentro
delas. Tudo isso é terra levada pelo rio Parnaíba, que nasce no
aquífero Urucuia, que está na Chapada das Mangabeiras e no Jalapão (no
Tocantins) e vai dividindo o Piauí do Maranhão até chegar ao Atlântico. A
Bacia Amazônica, com todos os seus afluentes, tem suas nascentes, seu
curso médio, situado na região do Cerrado.
Da mesma maneira os rios
Paraná e São Francisco, e praticamente todas essas águas se encontram na
parte mais alta do Planalto Central brasileiro, que é em Formosa.
Formam a Reserva Biológica das Águas Emendadas, com águas do São
Francisco, do Araguaia e assim sucessivamente.
Raízes – Além da Bacia do Paraná, essa cumeeira distribui águas das bacias do São Francisco e do Amazonas, Tocantins, Xingu…
Altair Sales
– Sim, todas essas e mais Tapajós e até o Madeira, que é já no final do
Cerrado. Depois da Serra dos Pacaás Novos, a alimentação é feita pelo
rio Javari, que nasce numa ilha do Cerrado, em cima da Serra dos Pacaás
Novos e depois o próprio Madeira, que nasce numa região do Cerrado,
quando este se estende em direção ao Acre e Rondônia.
Raízes – É possível ter uma casa sem cumeeira, Professor?
Altair Sales
– É impossível, porque a água cai e alaga o solo, forma uma lagoa, se o
solo for impermeável. Se não for, a água vai escorrer e desaparecer.
Raízes – Isso quer dizer que, se o Cerrado não absorve essa água, ela pode provocar grandes inundações e desastres ecológicos?
Altair Sales
– Sim, cheias repentinas, como no Meia Ponte, no Botafogo, no Tietê (em
São Paulo), por exemplo, durando de um a cinco dias. A água que existe
hoje no planeta, pelos parâmetros estudados, sempre existiu. Não é que a
água vai “acabar”, pelo menos a curto prazo, e curto prazo em Geologia
quer dizer milhares e milhares de anos.
A água em seu volume atual
sempre existiu em 60 milhões de anos, o que ocorre é que ela muda de
local. Hoje ela só está aqui graças às condições que formam um aquífero
importante. Amanhã ela pode estar em outro lugar. Ela pode inclusive
salinizar totalmente e formar apenas águas oceânicas.
Raízes – O Oriente Médio, na época bíblica, tinha muitas matas de araucárias e cedros, e hoje é em boa parte um grande deserto.
Altair Sales –
O mundo todo, do Pleistoceno, quando houve uma glaciação, para agora,
teve suas paisagens radicalmente mudadas. O mundo moderno se formou a
partir da última glaciação. O deserto de Atacama era uma floresta
temperada 11 mil anos atrás. Hoje, é o mais seco deserto do mundo. Como
em tantos outros casos de grandes lagos que secaram, a vegetação não
existe mais. O Saara também tinha uma vegetação exuberante, floresta
equatorial, e tudo secou durante o Pleistoceno em função das correntes
marinhas, que afetaram as correntes aéreas, terminando por mudar
completamente o clima lá.
Raízes – Professor, fale um pouco a respeito do livro que o Sr. escreveu, com outros autores, sobre a Juriti Pepena. O que é essa ave?
Altair Sales
– Então. O livro é bastante interessante, foi inspirado numa lenda
indígena do Centro-Oeste brasileiro e de parte do Norte do país. A
Juriti Pepena é uma ave invisível que habita as touceiras de catiguá,
que é um tipo de inhame de folha riscada, de ocorrência nos brejos do
Cerrado. Segundo a lenda, quem ouve os pios lamentosos desse ser passa
por uma série de desgraças e sua vida vira uma infelicidade só, isso
apenas pode ser revertido com a intervenção de um pajé dotado de muita
sabedoria. Se isso não acontecer, a pessoa poderá ficar aleijada para
sempre.
Raízes –
Vamos supor que a nossa sociedade, como um todo, já tenha ouvido esse
pio, e não há um pajé para intervir. A sociedade progressista, nós todos
já estamos nessa situação?
Altair Sales –
(risos) Boa analogia! Se não houver uma intervenção, uma mudança
drástica no modelo econômico que escolhemos e adotamos, eu não tenho a
menor dúvida em afirmar que já estamos caminhando com dificuldades.
Daqui a pouco poderemos ficar paralíticos ou aleijados para sempre.
Agora, é importante entender que o meio ambiente é formado por elementos
interligados: ar, fogo, litosfera, atmosfera, comunidades de plantas e
animais, e tudo isso está ligado ao Homem também. O que aconteceu às
comunidades humanas que ocuparam nossa região? Primeiro, houve até certo
tempo uma reação em que fazendeiros muito bem estabelecidos não tinham
em suas propriedades escolas ou hospitais. Pensando nos filhos e na
conquista de um futuro melhor para eles, enviaram-nos à cidade grande.
No começo, o pai ficou na fazenda, mas, movido em parte pela necessidade
de serviços de saúde e hospitalares na medida em que a idade avançava e
em parte pela saudade dos filhos, também ele se mudou. Nossa
ancestralidade rural passou por uma migração lenta.
As terras foram
sendo arrendadas. A partir de 1970, foram sendo criadas as
multinacionais, o grande capital internacional entrou de vez em nosso
país, por arrendamento ou por grilagem de terras. Com isso, posseiros
foram expulsos da terra por meio da falsificação de documentos em
cartório ou pela compra de políticos corruptos que facilitavam os
trâmites legais, uma vez que só o Estado podia dar a escritura
definitiva de uma antiga posse.
As comunidades rurais, desestruturadas,
buscaram abrigo na cidade, onde se viram massacradas pelos meios de
comunicação de massa, programas altamente banais que faziam e fazem a
cabeça da população brasileira. As pessoas oriundas do meio rural
geralmente vêm parar em zonas urbanas periféricas, que são quase sempre
ambientes muito desestruturados. A mídia instiga o consumismo, mas a
falta de dinheiro impede a sua concretização, o que leva algumas dessas
pessoas a uma vida de crimes.
A estatística carcerária brasileira mostra
que 99,9% dos presos são jovens e/ou negros e/ou pobres. Quem provocou
tudo isso? Pessoas protegidas por uma redoma tão invisível quanto a
Juriti Pepena, um muro chamado impunidade. Enquanto isso, os
prejudicados não veem perspectivas e desvalorizam as próprias vidas.
Raízes – Em suma, nós vivemos um desarranjo social que é, na verdade, um desarranjo ecológico.
Altair Sales – Ambiental. Um desarranjo ambiental que provoca toda essa desestruturação social.
Raízes –
Observando atentamente a sua fala, Professor, a gente percebe que não
se trata apenas de uma teoria, de uma coisa de professor universitário. A
realidade, com suas tragédias e catástrofes, corrobora os alertas dos
ambientalistas
…
Altair Sales
– Exato. O que aconteceu no reservatório do Sistema Cantareira, em São
Paulo, é uma consequência do que está sendo feito no Cerrado. Estamos
colhendo os frutos de um planejamento inadequado. O Cerrado, de uns
tempos para cá, tem sido incluído na política econômica brasileira, como
um avanço da fronteira agrícola, sem que se ouça a comunidade
científica. Vão tocando o barco sem se preocupar com o futuro da
Humanidade.
É agronegócio sem zoneamento adequado. Na verdade é possível
conciliar meio ambiente e agronegócio sadio. Tem que haver um
mapeamento agroecológico para que não haja efeitos nocivos à natureza.
Em São Paulo, o sistema é alimentado pelo rio Piracicaba, que é afluente
do rio Doce, que por sinal tem nascentes no aquífero Bambuí, que é
típico do Cerrado, embora seja uma bacia independente.
O Piracicaba
nasce no arenito Botucatu, no aquífero Guarani, de onde suga a água para
abastecer o Sistema Cantareira. Porque a água que cai nas escarpas da
Serra da Cantareira é incapaz de encher todo aquele grande reservatório,
precisa de um aquífero de grandes proporções como o Guarani era. Num
dos períodos cíclicos em que se observam influências do El Niño, La Niña
e outros eventos periódicos, houve uma grande estiagem, com drástica
diminuição da água da chuva, e as represas não foram alimentadas como
deveriam.
A represa deveria, então, ser sustentada pelos rios que a
alimentam. Só que os aquíferos também já chegaram aos seus níveis de
base, não tem água hoje como há 20 anos. Consequência: a maioria dos
rios desapareceu, os menores, e os maiores tiveram a vazão muito
reduzida. O Governo pensou em colocar uma sonda para chegar ao arenito
Bauru, mais antigo que o Botucatu, e sugar aquela água para alimentar a
represa. Felizmente não se fez isso, seria um desastre ambiental de
grandes proporções.
Agora o pensamento é captar água da nascente do
Paraíba do Sul para suprir a necessidade da represa Cantareira. É uma
transposição que pode ser benéfica a curto prazo, mas em mais ou menos
cinco anos poderá haver problemas para a bacia do Paraíba do Sul (que
alimenta os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo) e
também para o Sistema Cantareira.
O aquífero Guarani não está sendo
reabastecido como deveria, porque foram retiradas as plantas nativas dos
chapadões e no lugar foram implantadas variedades exóticas, como soja e
algodão melhorado geneticamente, que têm raízes sub-superficiais,
diferentes das raízes das plantas do Cerrado. Cai a chuva e a água, em
vez de infiltrar, empoça e não é sugada pela planta, nesse caso uma
insolação mais forte ou mais prolongada provoca níveis de evaporação
indesejados.
Raízes – Curva de nível feita nas lavouras não resolve esse problema?
Altair Sales
– Não, porque a curva de nível acumula a água na primeira vez, na
segunda já forma na base da curva uma argilificação do solo. A argila é
uma rocha impermeável e não deixa a água penetrar. A água pode até ficar
retida, mas fica empoçada, criando ambientes propícios à proliferação
de insetos nocivos, como o Aedes aegypti.
Raízes –
Por falar em transposição, há o caso do Rio São Francisco, no Nordeste.
Lá também há o risco de se agravar em vez de se resolver o problema?
Altair Sales
– No caso específico do Rio São Francisco, se houver a concretização da
transposição, vão praticamente acabar com o rio, que hoje já tem
trechos que podem ser atravessados a pé. Já foi considerado entre os
maiores rios do mundo, hoje nem é como naquela música do Luiz Gonzaga,
“Riacho do Navio corre pro Pajeú, o Rio Pajeú vai despejar no São
Francisco, e o Rio São Francisco vai bater no meio do mar”.
Aquilo ali
já não é mais verdade, ele não bate mais no mar. É o mar que avança em
direção ao Rio São Francisco, que começa a morrer da foz à nascente. Na
transposição, há dois grandes canais, um de 25m de largura por 12m de
profundidade, com 750 km, é o Canal Norte, e outro com as mesmas medidas
e com 600 km, que é o Canal Leste. A ideia é bombear a água do
Sobradinho para encher esses canais e fazer dois grandes rios que vão
correr pelo Nordeste. As bombas d’água vão alterar a mecânica do rio.
Ele correrá mais depressa, com isso chupará mais os afluentes, que já
estão exauridos. Os afluentes menores vão assorear e sumir.
Raízes –
E a gente percebe isso no dia a dia, em Goiânia e região inclusive, a
depredação do Cerrado é um fato. Há poucas reservas de Buriti, que é o
grande esteio, o grande monumento do Cerrado. Em sua opinião, Professor,
o que o pequeno produtor pode fazer para ajudar, se não a parar, pelo
menos a desacelerar esse processo de devastação?
Altair Sales
– Pouca coisa. Claro que ele, se quiser, pode tomar providências, mas
são os latifúndios, praticamente cidades que surgem da noite para o dia,
como Luís Eduardo Magalhães, Chapadão do Céu, São Lucas do Rio Verde –
que tem até um time de futebol melhor que o Vila Nova, embora
pouquíssima gente admita isso –, são esses grandes capitais dinâmicos
que trazem uma nuvem que cega para a verdadeira imagem do futuro.
Cercar
a área do córrego e impedir que o gado a pisoteie, com isso protegendo o
lençol freático, é uma boa opção, mas de modo geral a contribuição do
pequeno produtor é mínima. Os grandes dizimadores do futuro é que teriam
que mudar seu comportamento predatório. Por isso eu disse que o Cerrado
não existe mais. Você não pode medir a degradação do meio ambiente
apenas pela existência ou não de certas plantas.
É preciso que existam
comunidades, tanto animais quanto vegetais. Caso contrário, haverá uma
degeneração, inclusive pelo cruzamento indevido de espécies. Nossos
animais estão praticamente todos no livro vermelho da extinção,
principalmente pela falta de espaço para que sobrevivam. E além da ação
do Homem, ainda há dois inimigos naturais da fauna silvestre que foram
trazidos pelos europeus, que são o gato e o cachorro domésticos. Ambos
são animais exóticos, ou seja, não nativos daqui.
O latido do cachorro,
no meio rural, provoca um tamanho nível de estresse em pequenos animais e
pássaros silvestres que, em alguns casos, impedem a procriação deles.
Quanto ao gato, trata-se de um predador por natureza, pondo fim a
passarinhos, calangos, micos etc. com a proliferação das pet shops, que
tratam melhor esses bichos do que o sistema de saúde humano trata as
crianças pobres, a Humanidade – e aqui especificamente a gente goiana –
está criando seres que acabarão com a fauna nativa. Eu tenho pena dos
filhotes de Lobo-Guará, de tamanduá, de raposa, de meleta, de ouriço,
porque eles já não têm mais para onde fugir.
Raízes – O Lobo-Guará, inclusive, segundo um estudo seu, Professor, ajuda na proliferação de plantas como o araticum…
Altair Sales –
Sim, as sementes do araticum só quebram a dormência no intestino
delgado do Lobo-Guará, da raposa, do Cachorro-do-Mato Vinagre – esses
sim, canídeos naturais de nosso bioma –, que defecam e proporcionam a
germinação dessa planta
Raízes – Sem falar que grande parte do que comemos tem origem indígena, e muitas pessoas sequer suspeitam disso…
Altair
Sales – Verdade. Se pensarmos para além das aparências, veremos que
quase tudo o que entra em nossa dieta é contribuição indígena. O milho,
cultivado desde sete mil anos atrás no México, tem sido modificado pelos
índios do Cerrado.
São inúmeros produtos derivados do milho que fazem
parte da culinária do mundo todo, e não apenas alimentos, mas também
combustíveis e remédios. Da mesma maneira ocorre com a mandioca.
Farinha, tapioca, beiju, suportes para remédios, polvilho etc. O tomate
também, foi domesticado pelo nosso índio.
Ainda há reservas de tomate
primitivo, que originou primeiro o tomatinho de capoeira, que por sua
vez deu origem ao tomate atual. O abacate, o abacaxi, tudo planta nativa
domesticada e aperfeiçoada no Cerrado. Quanto ao chocolate, derivado do
cacau, o índio fazia a sebereba, uma bebida energética também chamada
jacuba, não só do cacau, mas também do buriti. Batia, cozinhava, tirava a
polpa, misturava mel de abelha, adicionava água e bebia. Isso foi
ensinado aos europeus, que adicionaram leite, pois o gado é de origem
mista europeia e indiana.
Vamos pensar na borracha, o mundo se move
sobre ela, nos pneus dos veículos, no solado dos sapatos. Pois é, a
seringueira dá o látex, que faz inúmeros produtos, inclusive a
camisinha. Inúmeras plantas medicinais incorporadas à farmacopeia
internacional têm origem no Cerrado. O quinino, que cura malária…
ficaríamos a tarde toda enumerando as contribuições. Todos os tipos de
pimenta vêm da Malagueta, que é nossa.
Mas, sem dúvida alguma, a maior
contribuição é mesmo a sabedoria, o exemplo da relação saudável com a
Natureza, que ainda não aprendemos, mas ainda podemos aprender se as
escolas cumprirem a função para a qual foram criadas. Só que não há uma
eternidade para isso. Se o Homem não mudar seu procedimento, chegará o
dia em que será tarde demais.
Raízes – Para encerrar, Professor, vamos falar um pouco mais do livro “O Piar da Juriti Pepena?”.
Altair Sales –
Claro! O subtítulo é “Narrativa Ecológica da Ocupação Humana no
Cerrado”. O pano de fundo é o meio ambiente e o modo de narrar é fruto
de uma escola antropológica que nós criamos e depois ajudamos a
aperfeiçoar, quando ainda estávamos nos Estados Unidos. O livro tem o
suporte teórico dessa escola, a “ecologia cultural”, que tem suas bases
no neo-evolucionismo e no neo-marxismo.
Há duas formas de você ver a
realidade: uma é situando-se fora dela, como observador, a outra é de
dentro pra fora. O livro foi escrito numa concepção que se põe dentro do
universo estudado, e somos afetados por tudo o que ocorre com esse
universo. Desde os primórdios, há 12.000 anos, passando pelos
bandeirantes com as primeiras cidades fundadas aqui, os variados ciclos
econômicos, até chegar ao impacto do sistema capitalista e os dias de
hoje.
Tudo isso foi dando um novo desenho ao lugar que ocupamos,
modificando o que colhemos, nós e as gerações futuras. O livro pode ser
encontrado em várias livrarias, mas principalmente na Biblioteca da
UCG-GO. A primeira edição está praticamente esgotada, depois de um
período de três anos e três lançamentos, na própria UCG, no Instituto
Histórico e Geográfico e também na UnB. Isso nos incentiva a continuar
escrevendo.
Raízes – A gente agradece pela entrevista. Muito obrigado, Professor Altair Sales.
Altair Sales –
Eu é que agradeço pela oportunidade de levar a público algumas de
minhas ideias, espero ter contribuído para a formação de uma consciência
ambiental da população goiana.
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