- domingo, 10 setembro 2017 23:41
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Poderia escrever a coluna inteira sobre as razões, os problemas e as consequências dessa perda para a natureza e para as pessoas que vivem e dependem do Cerrado. E poderia discorrer sobre as implicações de tudo isso para os diferentes setores da nossa sociedade (economia, agricultura, cidades, indústria, etc.). Mas hoje é dia de comemoração, certo?
De fato, os cientistas da conservação e os ambientalistas de forma geral tendem a chamar atenção para os problemas. Talvez porque a própria ciência da conservação tenha sido criada como uma “ciência de crise”, talvez porque há um senso de urgência diante de tantas alterações que vêm acontecendo em escala planetária (p. ex., mudanças climáticas), ou talvez só porque temos uma curiosidade pela desventura alheia – basta ler os jornais todos os dias.
Mas, o foco nos problemas e suas consequências catastróficas tem um lado ruim: pode gerar um sentimento de impotência e desânimo. O que podemos fazer, se agora mudamos até a composição da atmosfera da Terra? O que fazer se a diminuição dos estoques pesqueiros é inevitável? O que fazer se as decisões políticas que atendem aos interesses de poucos, sempre são tomadas à revelia dos desejos da sociedade?
Diante de questões como essas, tenho defendido a necessidade de um discurso positivo sobre a conservação. Um discurso conciliatório e menos agressivo. Um discurso mais inclusivo e menos separatista. Você tem todo direito de discordar de mim, mas chocar as pessoas, na minha opinião, não vai resolver o problema. Quem faz algo por medo, não o faz com amor.
Eu acho, portanto, que a inspiração é o segredo. A inspiração é um recurso renovável e poderoso, mas que tende a ser esquecido diante de tantos desastres. Na minha opinião, o medo (de um possível colapso, por exemplo) causa resignação, intolerância, descrédito e alimenta extremismos. Mas a inspiração causa mudança, traz novas maneiras de pensar, aguça a curiosidade e nos faz sentir humanos, tendo consciência de que pensamos e sabemos que pensamos, como descreve nosso próprio nome científico Homo sapiens sapiens.
Então, no Dia do Cerrado, quero compartilhar com você uma visão de futuro inspiradora. Casos de sucesso na conservação. Ideias que tem o poder de nos fazer pensar que ainda há saída para o problema do Cerrado, que ainda podemos salvar o que resta deste bioma e torná-lo habitável, produtivo, resistente e resiliente às ameaças que enfrenta e enfrentará. Enfim, uma mensagem otimista, que nos lembre a importância de comemorar o dia de hoje.
“Nos últimos 50 anos, o Cerrado perdeu
praticamente 50% de sua cobertura original, é verdade. Mas há 50 anos,
era impensável ter tantas políticas públicas com foco no Cerrado como
hoje em dia”.
Em primeiro lugar, é importante ter uma perspectiva histórica. Por
mais que a perda da vegetação nativa do Cerrado só aumente, nossa
consciência sobre a necessidade de conservar esse bioma também só
aumenta. E isso é bom! Nos últimos 50 anos, o Cerrado perdeu
praticamente 50% de sua cobertura original, é verdade. Mas há 50 anos,
era impensável ter tantas políticas públicas com foco no Cerrado como
hoje em dia.Hoje temos monitoramento por satélite (em breve teremos detecção de desmatamento em tempo real para o bioma), temos programas de agricultura de baixo carbono, incentivos à restauração, declaração voluntária (praticamente concluída no Cerrado) sobre onde estão as áreas protegidas em propriedades privadas. Tudo isso é um avanço enorme. Muito mais lento que o necessário e muito mais lento do que gostaríamos, mas não deixa de ser um avanço.
Quer mais notícia boa? O Cerrado vem sendo restaurado! Já há estudos importantes sobre a restauração no bioma, algo antes apenas discutido para ecossistemas florestais. A semeadura direta - processo no qual sementes misturadas com terra são espalhadas em áreas extensas - tem alcançado resultados surpreendentes. Na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, o próprio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) vem realizando experimentos de restauração em uma parcela de 96 hectares.
Há experimentos em áreas menores e eles são bastante promissores também. Com apenas um ano de monitoramento pós-semeadura, diversas espécies tiveram taxas de sobrevivência maior que 60%, o que é muito bom em plantios dessa natureza. Gramíneas nativas também ajudaram no processo e esses resultados deixam claro que é possível restaurar ecossistemas savânicos. Outra boa notícia é que a semeadura direta pode ser oito vezes mais barata que o plantio de mudas de árvores, que ainda é a técnica mais utilizada no Cerrado. Ou seja, é possível pensar em uma economia de escala, por meio de técnicas mais simples e já conhecidas, como essa semeadura. Se tiver interesse, dê uma espiada no estudo publicado pelo grupo.
Outros estudos demonstram que outra técnica conhecida como “topsoil” também é eficiente para a restauração no Cerrado. A técnica consiste em remover a camada superficial do solo de uma área a ser convertida para outra área, degradada, a ser restaurada. O simples fato de depositar essa camada sobre a área degradada tem trazido resultados animadores na recuperação do solo e da biodiversidade da área a ser restaurada. E isso sem falar na restauração passiva, onde algumas áreas são protegidas sem uso (cercadas com arame), mas com algum nível de manejo (p. ex., controle de queimadas ou de espécies exóticas invasoras) - embora essa restauração no Cerrado funcione apenas a longo prazo.
“A conservação do Cerrado tem beneficiado as pessoas. Diretamente. Inúmeras comunidades tradicionais, comunidades quilombolas e povos indígenas vivem dos recursos do Cerrado, integrando seus bens e serviços não só aos seus modos de vida e cultura, mas também à sua economia”.
Parece muito dinheiro, mas isso corresponde a apenas 3% do valor disponibilizado para financiamento da agropecuária no DF nos últimos anos. Isso mesmo, só 3%! E isso considerando um custo de restauração de R$28 mil/ha, o que pode ser reduzido em muito, dependendo da técnica utilizada. Portanto, se cada produtor que necessite restaurar uma área solicitar crédito para fazê-lo, o impacto desse pedido no desenvolvimento agropecuário no DF será mínimo. Além disso, essas linhas de crédito já existem, não é preciso reinventar a roda.
A conservação do Cerrado tem beneficiado as pessoas. Diretamente. Inúmeras comunidades tradicionais, comunidades quilombolas e povos indígenas vivem dos recursos do Cerrado, integrando seus bens e serviços não só aos seus modos de vida e cultura, mas também à sua economia. Atualmente, há cada vez mais interesse em aprender e ouvir essas comunidades. Elas vêm sendo incluídas em estratégias e planos de conservação, desde o nível federal ao local. E isso também é muito bom! É imprescindível, portanto, ampliar nosso entendimento sobre como melhor conservar a natureza por meio da inclusão dessas comunidades.
As unidades de conservação (UCs) no Cerrado são poucas e protegem cerca de 8% do bioma. Mas elas tiveram um efeito positivo na contenção do desmatamento ao longo do que restou do bioma. Estudos recentes mostram que, sem as UCs, praticamente toda área atualmente protegida teria sido convertida em áreas de cultivo, principalmente monocultura. Acertamos ao proteger determinadas regiões e, sem dúvida, o impacto da criação e implementação das UCs do Cerrado teve um efeito positivo na conservação de biodiversidade.
Tudo isso não é motivo para apatia; não quer dizer que está tudo bem. Sem dúvida, precisamos nos mobilizar como sociedade em prol da conservação do Cerrado e de um aumento exponencial da conscientização sobre sua importância entre todos os brasileiros. Como cientista e ambientalista, trabalhando em uma instituição localizada no meio do Cerrado, não vou deixar de alertar nossos governantes e nossos jovens sobre os problemas e desafios à frente. Mas hoje, só por hoje, gostaria de lhe dizer que há motivos para comemorar, que há iniciativas de sucesso, que há esperança para a conservação e recuperação do Cerrado. E isso é bom!
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