by Redação
- 3/11/20171
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Água, poder e política
[EcoDebate] Desde muito cedo na história da humanidade, como nós a conhecemos por
relatos historiográficos, a posse da água foi importante para manter a
hegemonia de alguns agrupamentos humanos, principalmente onde ela não jorrava
com abundância. A posse dos mananciais de água doce era também a posse do seu
entorno e uma arma poderosa para dominar a terra e o rio (territó-rio) na
defesa contra os inimigos. Seu controle sempre representou e representará um
meio essencial que tem como objetivo final tomar e assegurar o poder.
Obviamente isso gerou e gera guerras até os dias atuais. Entender a
dinâmica das águas, saber transportá-la em aquedutos, desenvolver a irrigação
para grandes plantações, entender o poder medicinal que elas oferecem2, entre outras formas de com ela relacionar-se, transformou a história
de muitos povos. A história demonstra claramente que o domínio sobre este
conhecimento se traduz em poder.
O saudoso estudioso da questão hídrica Aldo Rebouças, revela um pouco de
como a água influenciou a tomada de poder por alguns povos antigos. Relata ele
que,
O controle das inundações do rio Nilo foi a base do poder da civilização
Egípcia, desde cerca de 3,4 mil anos a.C.. Nos vales dos rios Amarelo e Indu, a
utilização da água como forma de poder foi iniciada em 3 mil a.C., sendo
exercida por meio de obras de controle de enchentes e da oferta de água para a
irrigação e abastecimento das populações. O controle do rio Eufrates foi a base
do poder da Primeira Dinastia da Babilônia, possibilitando ao Rei Hamurábi –
1792 a 1750 a.C. – unificar a Mesopotâmia e elevar sua região norte a uma
posição hegemônica. Dessa forma, o poder que reinava no sul da Mesopotâmia,
desde o terceiro milênio a.C., foi deslocado para a região norte, onde
permaneceu por mais de mil anos. Para alguns, a politização e centralização
atuais do poder sobre a água teriam tido suas origens nessa época. (2002, p.
17).
Embora outros povos tenham desenvolvido técnicas de irrigação e
canalização das águas séculos antes dos romanos, este povo foi profundamente
moldado pelo entendimento de como utilizar as águas em seu favor3. Se hoje sabemos que eles exerceram enorme domínio em seus tempos de
glória, muito desta se deve a este conhecimento para manter a força sobre os
inimigos políticos e militares. A água tinha tamanha importância para os
romanos que até foi criado o termo rival4 dada a disputa entre os moradores da Roma antiga por este elemento
natural.
A apropriação da água também foi essencial para o processo de soberania
territorial de muitas nações. Não por acaso rios e lagos marcam as fronteiras
de vários países e estados. Cada vez mais nações necessitam dialogar sobre o
consumo das águas que dividem as suas fronteiras. São 263 rios com o papel de
dividir fronteiras entre países,5 com um potencial para grandes conflitos econômicos, políticos e
militares quando é necessário definir quem é o dono do patrimônio hídrico. Sua
posse vai influenciar diretamente no desenvolvimento econômico e na autonomia
política das nações envolvidas e nenhuma delas quer sair perdendo quando o
assunto envolve influência econômica e soberania territorial.
No mundo moderno o poder sobre água vai além do controle sobre a sede
alheia e a produção de alimentos no campo. A indústria, seja ela qual for,
depende visceralmente da água. Em algumas regiões, o transporte é feito pela
navegação e isso inclui transportar remédios e alimentos. É possível afirmar
que grande parte do lazer é identificado com a água. Basta ver para onde vão
muitos habitantes das grandes cidades nos finais de semana ou feriados: praias,
rios, cachoeiras, lagos, açudes, piscinas, etc. Sem falar nas culturas que são
inspiradas nos seres humanos pela relação que estes desenvolvem como os corpos
de água próximos de onde residem. Água e poder caminham juntos há milênios e é
por isso que cada vez mais os grupos econômicos interessam-se por este assunto.
Possuir a água é ter poder político, social, cultural e, principalmente,
econômico.
Água e poder no Brasil
Aqui no Brasil não podia ser diferente a relação entre agrupamentos
humanos e a água. Os primeiros povoamentos aconteceram próximos aos mananciais
de água doce. Alguns povos indígenas que habitavam as margens de rios e lagoas
foram expulsos de seus territórios quando da invasão dos europeus. Um exemplo
foi que aconteceu com alguns destes povos no Semiárido brasileiro. Vaqueiros, a
serviço do latifúndio agropastoril nordestino, apossaram-se de várias fontes de
água utilizadas pelos povos indígenas que habitavam o sertão para matar a sede
das boiadas que transportavam (GARCIA, 1984). O mesmo aconteceu por causa da
extração de minerais em várias outras partes do Brasil.
No plano do desenvolvimento econômico industrial a água também teve
papel importante. Pode-se afirmar que a água foi uma peça fundamental para a
expansão do poderio europeu no Brasil. Isso aconteceu principalmente porque os
engenhos de açúcar do litoral nordestino eram instalados próximos aos rios que
faziam movimentar as rodas d´água que moíam as canas. Foram estas rodas d´água
as alavancas da indústria açucareira que enriqueceu europeus. E é esta mesma
indústria uma das grandes poluidoras dos rios brasileiros.
Hoje, esta relação entre indústria e poder econômico tem nas
hidrelétricas um dos seus pilares. Atualmente, mais de 60% da geração de
energia é de responsabilidade de empresas privadas. Como mais de 90% de energia
elétrica brasileira vem da hidroeletricidade, isso significa muita água em mãos
privadas, pois controlar a geração de energia elétrica é controlar as águas que
a geram. Foi para prevenir este tipo de coisa que Getúlio Vargas deu ao Brasil,
em 1934, a sua primeira lei para o ordenamento do seu patrimônio hídrico.
Vargas sancionou o Código das Águas pelo Decreto 24.643 daquele ano (BRASIL,
2010) colocando a água como um bem publico.
É claro que sendo pública não significa que a água será acessível a toda
a população. E disso sabemos muito bem no Brasil. Na última crise hídrica de
São Paulo, por exemplo, enquanto os bairros periféricos sofriam com dias de
racionamento, os bairros abastados continuaram com suas piscinas cheias e
algumas indústrias continuaram pagando menos que o usuário comum pela água
consumida em um caso típico de lucro privatizado e prejuízo partilhado pelos
mais pobres.
Também é o caso aqui de ressaltarmos a disputa pela água para a
agricultura. O agronegócio monocultor tem se apossado cada vez mais de águas
subterrâneas e daquelas que correm pelos rios, como é caso do São Francisco. O
Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco levará parte da água
transposta para o agronegócio na região semiárida do Nordeste e beneficiará
proprietários de empresas produtoras da fruticultura irrigada. Os grupos que
detém o poder no campo estão conseguindo continuar o trabalho iniciado durante
a Ditadura Civil-Militar com a construção das hidrelétricas e colocar o maior
manancial do Nordeste em perigo.
É essencial para os donos dos meios de produção possuir toda a rede
produtiva envolvida, e a água, como já afirmamos acima, é parte essencial para
produzir alimentos. Além do mais, este poder sobre a água impede que os
pequenos produtores possam competir na produção de frutas, legumes e verduras,
gerando monopólios sobre a cultivo de diversas culturas alimentares. Controlar
a água é controlar a vida pela sede e pela fome, já que todo o processo de
produção de alimentos depende dela.
Água e política
Este tópico é bem conhecido dos brasileiros. A água como moeda de troca
para manter grupos políticos no poder é uma tradição antiga em nosso
país.
O clássico samba “Lata d´água na cabeça”6 conta um pouco a história de Maria, representante de tantas mulheres
faveladas que viviam nos morros cariocas. Lá era necessário, para lavar roupa
ou conseguir água para outros afazeres domésticos, subir os degraus do morro
para encontrar as bicas que jorravam água. Foram as instalações dessas bicas
que se transformaram em moeda de troca por votos criando até mesmo a figura do
“Político de bica d´água” que teve o seu maior expoente em Chagas Freiras. Seu
estilo, a troca das bicas d´água por votos, dominou a política fluminense a
ponto de ter sido criado o termo Chaguismo.
O caso do Semiárido nordestino já é por demais estudado e tornado
público, mas parece que ainda não condenado como deveria. Basta ver o caso do
Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco e como mais uma vez a
água foi utilizada para ganhar votos por vários políticos de campos ideológicas
diferentes.
O surgimento da Agência Nacional de Águas – ANA, através do Decreto
9.984, no ano 2000, e sua equivalente em cada estado da federação, é resultado
das políticas neoliberais do Presidente Fernando Henrique Cardoso e teve em sua
formulação vários agentes defensores da cobrança da água como política pública.
Iniciava-se a visão mercadológica sobre a água brasileira.
A atual onda de privatizações das empresas distribuidoras de água nos
estados brasileiros forçada pelo Presidente Temer não passa de outra política
influenciada pelo Banco Mundial já repetida e fracassada em várias partes do
mundo. Já de olho neste mercado, foram reveladas que grandes empresas doariam
dinheiro para campanhas de candidatos aos governos dos estados para que estes,
caso eleitos, facilitassem a privatização das empresas7.
É urgente colocar a questão privatização da água, e sua consequente
posse por alguns grupos econômicos, na pauta política. Em 2018 teremos eleições
e precisamos saber o que os candidatos pensam sobre este assunto. Quem sabe
poderiam assinar um documento comprometendo-se a firmar a água como um bem
público e a recuperar nossos rios, que mesmos públicos, estão cada vez mais
sendo tomados por empresas do agronegócio monocultor e grandes indústrias que
dele retiram a água e a devolvem de forma imprestável.
Referências bibliográficas
BRASIL. Código das águas. Brasília: Senado Federal. 2010.
PETRELLA, Ricardo. O manifesto da água. Rio de Janeiro: Vozes. 2002.
RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia política da água. São Paulo: Annablume.
2008.
REBOUÇAS, Aldo da Cunha; BRAGA, Benedito, TUNDISI, José Galízia. Água
Doce no Mundo e no Brasil. In: REBOUÇAS, Aldo da Cunha, BRAGA, Benedito;
TUNDISI, José Galízia (Organizadores). Águas Doces no Brasil: capital
ecológico, uso e conservação. São Paulo: Escrituras Editora. 2002. pp. 1-37.
1 Flávio José Rocha da Silva é doutor em Ciências Sociais e administra a
página OPA-Observatório da Privatização da Água https://www.facebook.com/OPA-Observat%C3%B3rio-da-Privatiza%C3%A7%C3%A3o-da-%C3%81gua-852140801528639/.
3Provavelmente muito deste conhecimento foi adquirido com outros povos
dominados pelo império romano.
4 “A palavra “rival” (ou “rivalidade”) vem do latim rivus
(corrente ou riacho); um rival, portanto, é alguém que da margem oposta usa a
mesma fonte de água – daí a ideia de perigo ou ataque.” (PETRELLA, 2002, p. 60)
5 Segundo Ribeiro (2008, p. 94), baseado em dados da UNEP, “São 263 rios
que tem seus cursos passando por dois ou mais países, sendo 69 na Europa, 59 na
África, 57 na Ásia, 40 na América do Norte e 38 na América do Sul.”
6Confira a composição de Jota Jr. E Luís Antônio: “Lata d’água na
cabeça/Lá vai Maria, lá vai Maria/Sobe o morro e não se cansa/Pela mão leva a
criança/Lá vai Maria/Maria lava roupa lá no alto/Lutando pelo pão de cada
dia/Sonhando com a vida do asfalto/Que acaba onde o morro principia.”
7 O Grupo Odebrecht foi acusado de pagar 24 milhões de Reais para
conseguir contratos na área de saneamento. Confira em https://oglobo.globo.com/brasil/odebrecht-teria-pago-ao-menos-245-milhoes-por-contratos-de-saneamento-em-12-estados-21204422. Já o Grupo JBS é acusado de pagar propina a políticos brasileiros com
o objetivo de entrar no mercado do saneamento básico. Confira em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1890211-jbs-pagou-propina-para-assumir-saneamento-de-estados-diz-delator.shtml
"Água, poder e política, artigo de Flávio José Rocha da
Silva," in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 3/11/2017, https://www.ecodebate.com.br/2017/11/03/agua-poder-e-politica-artigo-de-flavio-jose-rocha-da-silva/.
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