Especial: 30 anos da Constituição Brasileira, a guardiã do meio ambiente
Nossa maior conquista na redemocratização, a “Constituição Cidadã” segue atual, mas sofre pressões de todos os lados ao ser uma barreira para os retrocessos socioambientais que tentam nos impor diariamente
Três décadas não são três dias. Eis que a nossa Constituição Federal Brasileira de 1988 completa aniversário neste 5 de outubro. Entra na fase adulta sofrendo pressões de todos os lados, em especial, sobre artigos relacionados ao Meio Ambiente (225) e aos Direitos Indígenas (231 e 232). Apesar de haver avanços no decorrer destes anos, os ataques são contínuos. São projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional e algumas medidas provisórias mais flexíveis, que colocam em risco a conservação ambiental e os direitos humanos. Ao mesmo tempo, chega a esta maturidade envolta por um novo desafio: as mudanças climáticas.“Atualmente, Legislativo e Executivo empenham-se em aprovar projetos de lei que claramente atentam contra a Constituição. Desta forma, ela é hoje uma grande trava contra os vários retrocessos socioambientais em curso. Como consequência, muitos destes temas estão indo parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Este movimento está transformando a corte numa espécie de terceira casa legislativa do país”, afirma o coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil, Márcio Astrini.
Chamada de “Constituição Cidadã” pelo deputado Ulisses Guimarães (1916-1992), presidente da Assembleia Constituinte, como também de “Constituição Verde” e de “Ecológica”, a sétima carta magna brasileira teve um processo de gestação longo, desde o ano de 1985, que traduziu a ânsia pela retomada da Democracia no Brasil, após o período da Ditatura Militar, que vigorava desde 1964.
Em uma tarde chuvosa, às 17h do dia 5 de outubro de 1988, o Brasil dava um novo rumo à sua história. Enfim, o exercício da democracia depois de tempos difíceis que deixaram marcas profundas em diferentes gerações. Ao longo desses 30 anos, a Constituição ganhou mais 100 emendas e resiste àqueles que argumentam que ela cria dificuldades para o ajuste fiscal e à modernização do Estado brasileiro.
Uma das mensagens do artigo 225, que fortalece a questão ambiental talvez seja o resumo de uma de suas principais contribuições à democracia até hoje. O trecho descreve em poucas palavras, os direitos e deveres da gestão pública e da população:
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“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
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Na avaliação de Astrini, a força da Constituição está na sua
contribuição para a democracia. “Reflete em seus artigos a proposta do
zelo público”, diz.Nos movimentos socioambiental e indígena, alguns personagens vivenciaram de perto o processo da Constituinte e apoiaram a inserção destes temas no conteúdo.
O advogado, ambientalista e então constituinte Fábio Feldmann nos conta que naquele período a grande dificuldade estava na compreensão de que meio ambiente e direitos indígenas são temas rigorosamente relevantes para a sociedade brasileira. “No caso do Artigo 225, havia uma resistência cultural em se considerar matéria ambiental como de natureza constitucional, uma vez que praticamente nenhuma constituição contemporânea tratava desse tema, com raríssimas exceções. Além disso, é importante assinalar que as matérias ambientais estão presentes em praticamente toda a Constituição, a exemplo das partes relativas à Ordem Econômica e ao Ministério Público, entre outras”, diz.
O advogado e professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Talden Farias concorda e aponta que o meio ambiente também é mencionado nos artigos 5º, 23, 24, 170, 182, 186, 200 e 216. Está aí um bom assunto para pesquisa, não é?
Sérgio Leitão, diretor executivo do Instituto Escolhas, também recorda do período da Constituinte como se fosse hoje. “O país estava saindo de uma ditadura e seguia os passos da retomada democrática com eleições para governador de Estado. Foi exatamente neste momento que trabalhadores rurais, indígenas e mulheres puderam chegar na Assembleia Constituinte e buscar o reconhecimento e a reafirmação de seus direitos na Constituição que estava sendo elaborada”, conta.
Foi uma fase importante de resgate de cidadania, de tornar o país menos injusto, ao contrário do que vivenciamos hoje, segundo ele. “Agora nos deparamos com movimentos na tentativa de derrubada do que foi construído”, compara.
Mesmo assim, Leitão observa que a Constituição consegue frear as ações que querem derrubá-la. “Não podemos negar que ocorreram avanços significativos ligados ao tema da pauta da sociedade civil. Por exemplo, nunca houve tantas unidades de conservação no país. O Brasil tem criado um conjunto de regras do meio ambiente, um dos melhores do mundo. A sociedade brasileira passou a cobrar dos governantes que elas fossem cumpridas”.
Capítulo indígena
Um dos momentos mais marcantes neste processo, nos anos 1980, foi a fala indígena de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte, no Congresso Nacional, em Brasília. À época ele representava a União das Nações Indígenas (UNI).
Feldmann descreve que a resistência era mais visível por parte de setores conservadores e xenófobos, no sentido de que haveria de se criar uma distinção entre indígenas aculturados e não aculturados, com o propósito de retirar claramente os direitos dos que seriam considerados “não índios”. “É bom assinalar que os Artigos 231 e 232, em termos de legislação infraconstitucional, são regulados pelo antigo Estatuto do Índio de 1973, ainda que tenha sido aprovado um projeto suprapartidário na Câmara dos Deputados, atualizando a legislação em sintonia com a Constituição de 1988”.
O filósofo e ambientalista Márcio Santilli, um dos fundadores e atual assessor do Programa Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), é mais um contemporâneo da Constituinte.
Ele ainda tem na memória lembranças daquela época, e nos descreve: “As questões indígena e ambiental não caminharam juntas na Constituinte. O tema indígena era tratado com os de outras minorias e o meio ambiente com o de saúde. Houve um apoio maior das organizações sociais, mas em espaços diferentes da Assembleia Constituinte. Esses temas foram tirados dos guetos e vieram associados ao espírito da construção democrática”.
De acordo com Leitão, hoje há um reconhecimento maior desses povos, mas em contraposição, também críticas vindas principalmente de representantes de setores econômicos quanto ao direito de demarcação das terras indígenas e suas extensões.
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Art. 231. “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”
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Para Luiz Eloy Terena, consultor jurídico da Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB), a Constituição de 1988 foi um divisor de
águas. “Trouxe uma mudança de paradigma e o fim da ‘tutela’ do homem
branco sobre o indígena, apesar de hoje ainda existir os desafios no
viés acadêmico e cultural. Também trouxe a missão do Ministério Público
para a defesa dos povos indígenas”, diz.Segundo a liderança indígena Davi Guarani, os desafios impostos na atualidade são o de assegurar aos indígenas a superação de problemas importantes, como a mortalidade infantil, suicídios e criminalização de lideranças. “O que mantém nosso direito constitucional é nossa resistência para manter nossa vida”, afirma.
Povos tradicionais na luta
Outras parcelas de povos tradicionais como os quilombolas ganharam mais visibilidade na Constituição. O artigo 68 garante aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras o reconhecimento da propriedade definitiva, devendo o Estado lhes emitir os respectivos títulos.
A realidade atual, no entanto, está longe do ideal, expõe Nilce de Pontes Pereira, coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), no Vale do Ribeira, em São Paulo. “Hoje temos mais de 5 mil comunidades no país, sendo que 1,5 mil aproximadamente são reconhecidas”, afirma. De acordo com a quilombola, a maior dificuldade é o acesso às políticas públicas, desde questões de saúde até ambientais. “O problema está em compatibilizar nossas roças, que fazem parte de nossa cultura, com as exigências da legislação ambiental. A terra para nós é importante porque a consideramos sagrada, temos o sentimento de pertencimento”, diz.
Mais um segmento que luta para um reconhecimento maior na legislação brasileira é o dos extrativistas (borracha e frutíferas), entre outros. “A Constituição foi um instrumento que consolidou muitas coisas importantes para a população brasileira, mas a extrativista, em especial, não ficou amparada à época. Vale lembrar que foi neste mesmo ano de 1988 que o ativista e ambientalista Chico Mendes foi assassinado no Acre. Vivíamos um momento de pressão”, conta Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações Extrativistas/CNS (antigo Conselho Nacional dos Seringueiros).
Apesar disso, alguns ganhos vieram posteriormente com a criação de reservas extrativistas. A primeira foi a de Alto Juruá, no Acre, em 1990. E no ano 2000, foi instituído no país, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, criando diferentes categorias de proteção integral e de uso sustentável; este é o caso da Resex – Reserva Extrativista. “Os extrativistas vivem dos ativos da floresta e trazem o conceito de conservação ambiental para afirmar seu modo de vida. Hoje são cerca de 90 em todo país”, diz.
Perspectivas futuras
Trinta anos depois, nossa Constituição está longe de ser defasada. “Em relação à matéria ambiental, a Constituição permanece muito atual”, afirma Feldmann. Vale assinalar que ela foi realizada antes de grande marcos internacionais ambientais, como a Rio-92, e do surgimento de um novo direito internacional revelado nas Convenções da Biodiversidade e do Clima e, mais recentemente, nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), no âmbito da Organização das Nações Unidas.
Para Feldmann, a única ressalva ao Artigo 225 é com relação aos animais. “Infelizmente houve uma única emenda aprovada no que tange a se entender manifestações culturais envolvendo animais como admissíveis com o objetivo claro de se resolver a controvérsia da vaquejada, decidida como cruel pelo Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz.
O cenário é preocupante nesta fase de eleições. Um tema fundamental que não pode sair do radar, segundo Leitão, é a preservação de espaços naturais para a própria garantia da agricultura do país. “O que observamos é que alguns setores querem retrocessos ao momento anterior a 1988. A tentativa de descaracterizar a Constituição não é algo gratuito. Dependendo dos resultados da eleição, esse risco será maior. A forma mais efetiva de se mobilizar é participando do debate para contestar narrativas contrárias à democracia, ao meio ambiente e aos direitos desses povos”, considera.
“Atualmente, o contexto político no Brasil e no mundo está marcado por uma radical polarização, o que sugere que não sejam realizadas mudanças em ambiente tão extremado. Temos, sim, que trabalhar na regulamentação da Constituição Federal quanto aos biomas considerados como Patrimônio Nacional (Floresta Amazônica, Mata Atlântica, Serra do Mar, Zona Costeira e Pantanal Matogrossense) e incluir o Cerrado e Caatinga, único bioma genuinamente brasileiro, no parágrafo 4º do Art. 225 que dá tratamento especial a certos biomas”, recomenda Feldmann.
Márcio Astrini, no Greenpeace, vai na mesma linha e aponta riscos em relação a mudanças profundas na Constituição no momento atual, como chegam a propor alguns candidatos na eleição presidencial. “Vejo com extrema preocupação qualquer proposta de promover uma nova constituinte. Vivemos um período de instabilidade e grande conservadorismo. Neste ambiente, é provável que tenhamos mais retrocessos do que avanços”, avalia.
Atualização: as mudanças climáticas em cena
Ao olhar para o passado, Márcio Santilli não titubeia em falar que foi uma constituição de ponta. “Somente a questão climática não estava posta como hoje. Havia a preocupação com espaços protegidos, mas se fôssemos pensar hoje em um novo ordenamento jurídico, mereceria um papel de guarda-chuva nesta questão. Mas existem outros âmbitos institucionais para isso, que não exigem necessariamente a reforma constitucional”, considera.
Entre leis ordinárias importantes em vigor, que vieram após 1988, Santilli aponta como positivas as Lei de Crimes Ambientais e a do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). “Tivemos retrocessos quanto ao Código Florestal (mas que teve correções feitas pelo STF referentes a inconstitucionalidades) e atualmente o que sofre mais ameaça são as regras do licenciamento ambiental e o direito indígena”, avalia.
Santilli alerta para a necessidade de aumento da mobilização da sociedade e dos meios de comunicação, neste sentido. “Cada um desses temas tem um campo de batalhas. No caso dos indígenas, não houve a constituição de leis ordinárias mais modernas e ainda é importante o recurso ao STF, em muitos casos, como o que resultou na decisão de não poder reduzir unidades de conservação por medida provisória, mas sim, por projeto de lei. Outra decisão importante, foi quanto à preservação da titulação de terras quilombolas”, afirma.
Em um cenário de curto prazo, Santilli prevê que o foco no país sejam questões imediatas emergenciais, como violência, miséria e desemprego. “São problemas concretos. Mas qualquer que sejam os próximos governos (estaduais e federal), congresso e dirigentes de classe, será inevitável que tenham de enfrentar o impacto da mudança climática, principalmente em relação a crise hídrica que estamos vivendo. E temos de avaliar também a importância do respeito a tratados na dinâmica internacional, neste sentido, como o Acordo de Paris”, afirma.
Ele analisa que o mundo, apesar dos retrocessos, já mantém uma corrida de tecnologia na questão climática e quem não participar disso ficará para trás. “As demandas são muito específicas, como energia limpa. Por pior que seja o cenário político e a preocupação das pessoas com a crise, há muito o que fazer. Temos de nos organizar, ter capacidade de comunicação para estas agendas.”
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