Por Clarissa Beretz –
Apesar de campanhas de conscientização e apelo religioso, devotos
de Iemanjá seguem poluindo o mar com oferendas não degradáveis no dia
do orixá
É muita contradição: para presentear uma divindade, você joga lixo na
casa dela. Claro que quem oferta não enxerga assim, mas na prática, as
toneladas de “presentes” compostos por materiais que não se degradam
atirados no mar para Iemanjá – o orixá considerado mãe de todos os
orixás no candomblé e na umbanda – poluem, e muito, o ambiente marinho. A
tradição é antiga, mas hoje já sabemos quais os componentes que não se
decompõem e o quanto eles prejudicam os animais aquáticos, que confundem
essas partículas com comida, morrendo sufocados ou por insuficiência
digestiva.
Ainda que módicas campanhas de conscientização sejam feitas há
algumas décadas por prefeituras e organizações Brasil afora, é assim que
há mais de 90 anos em todo dia 02 de fevereiro, os devotos reverenciam a
rainha do mar. São balaios de isopor cheios de flores, frascos de
perfume, garrafas de champanhe, velas, espelhos, bijuterias, bonecas,
pentes e uma infinidade de artigos despejados de embarcações, em alto
mar, ao longo da costa litorânea brasileira, promovendo a poluição
marítima, cujas consequências são irreversíveis inclusive para a saúde
humana.
Em 2016 a iniciativa Fundo Limpo recolheu, em apenas duas horas, 150
quilos desses objetos nas águas dos arredores da casa de Iemanjá, no Rio
Vermelho, em Salvador, onde cerca de 600 mil pessoas participaram da
maior festa para o orixá no Brasil. Só da praia, a prefeitura retirou 60
toneladas. Há 5 anos o órgão promove a iniciativa Balaio Verde, que
incentiva que sejam entregues apenas flores e objetos biodegradáveis,
como os feitos de palha, papel e madeira. “Ao invés de jogar o frasco,
perfume as flores”, recomenda a campanha, que no entanto só é lançada
poucos dias antes da festa nas redes sociais da prefeitura, o que deixa
sua eficácia um tanto duvidosa.
A assessoria da Secretaria da Cidade Sustentável e Inovação (SECIS),
em Salvador, garantiu que a campanha seria lançada cerca de 20 dias
antes da festa, mas até a presente data, 29/01, nada consta nas redes
sociais do órgão. “Mesmo sem indicadores da eficácia da ação,
consideramos que estamos fazendo a nossa parte para conscientizar o
cidadão a reverenciar Iemanjá sem poluir o mar e as praias”, declarou em
nota.
Adaptação dos ritos em novos tempos
O fato é que não seriam necessárias campanhas de conscientização para
quem se diz filho de um ser a quem justamente se atribui a proteção da
vida marinha. O assustador aumento de detritos nos oceanos – sobretudo o
plástico – e o perigo que ele representa, é exaustivamente anunciado
por especialistas na imprensa mundial há décadas. Nem mesmo o alarmante
estudo de que em 2050 haverá mais plásticos nos mares do que peixes,
(divulgado no Fórum Econômico Mundial de Davos em 2016), parece
convencer devotos de vários terreiros baianos, que no ano passado foram
vistos levando balaios cheios de aparatos nada sustentáveis para atirar
ao mar.
Sem falar nos próprios pescadores do Rio Vermelho, que na mesma data
pediram um mar farto de peixes para Iemanjá atirando em suas águas uma
escultura de cerca de dois metros de altura feita de fibra de vidro.
Novamente a contradição.
“O monumento vai virar uma região de corais no fundo do mar, sem
prejudicar o meio ambiente”, declarou na época o presidente da colônia
de pescadores local, Marcos Souza.
Até Mãe Stella de Oxóssi,uma das maiores representantes do Candomblé
no país – morta no último dia 27 de dezembro – decretou em 2015 que os
filhos do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá não poluiriam mais. “Meus filhos
serão orientados a oferendar Iemanjá apenas com cânticos. A festa se
tornou muito grande e manter esse hábito será nocivo para as próximas
gerações. Os ritos devem ser adaptados às transformações do planeta e da
sociedade, a essência dos mitos, jamais!”, declarou em carta publicada no jornal baiano A Tarde.
Prevenir e reduzir o lixo marinho é um dos 17 Objetivos para o
Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela ONU (Organização
das Nações Unidas), no intuito de proteger a vida abaixo da água, mas
isso não pode ser alcançado sem a implementação de uma gestão efetiva de
resíduos.
Impossível não considerar o fator tradicional e religioso deste ato,
porém, como disse mãe Stella, agora os tempos são outros. Religião à
parte, uma pergunta basta para concluir a necessidade de uma mudança na
escolha das oferendas: “Iemanjá, sendo a rainha do mar, ficaria feliz ao
ver sua casa suja e seus animais morrendo?” Certamente que não. Se
polui o território regido por ela, não é presente.
Que em 2019 possamos comprovar a evolução de nossa espécie neste sentido. E que Iemanjá nos abençoe. Ou não. (#Envolverde)
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