A pirralha raivosa e os patriarcas
Greta provoca-os sobre como ousam ocupar o poder e ignorar o justo para a humanidade
O presidente Jair Bolsonaro foi o primeiro a ventilar seu ressentimento à menina Greta, “é só uma pirralha”, disse ele. Trump retrucou “Greta precisa controlar sua raiva”.
Parece ser mesmo insuportável aos patriarcas olhar uma menina miúda, de
olhos firmes, e serem obrigados a silenciar-se diante de um “how dare you?”.
A pergunta não é sobre como eles ousam desqualificá-la pela juventude,
pelo gênero ou pela deficiência — é mais abstrata e impessoal: Greta
provoca-os sobre como ousam ocupar o poder e ignorar o justo para a
humanidade.
Greta ousou tanto que está na capa da prestigiosa revista Time
— é a pessoa do ano. Há quem a descreva como líder, personalidade ou
ativista. O melhor de todos os títulos é exatamente o mais simples: é a
pessoa do ano para o mundo. Uma pessoa “com uma mensagem”,
como ela mesma se define. Mas a política não é um espaço plural para as
mulheres, e menos ainda para as meninas com deficiência. Desqualificar o
pensamento de Greta é um gesto naturalizado pelo capacitismo entranhado
na misoginia: uma menina com autismo não pode ser alguém com ideias
razoáveis. Por isso, até mesmo o título pessoa lhe é espoliado pela
deficiência — a pessoa com deficiência é reduzida ao que falta ou excede
em seu corpo. No seu caso, o autismo ameaça a legitimidade de
apresentar-se em público sem sofrer desqualificações pela juventude ou
pela neurodiversidade.
Mais informações
Gente
bem-intencionada repete o coro de que Greta seria uma marionete, uma
alegoria para a participação de jovens na política de adultos. É verdade
que Greta não é uma cientista de jaleco branco com publicações
internacionais sobre os efeitos do aquecimento global. É só uma menina
que fincou os pés na porta do parlamento sueco em greves sistemáticas da
escola. “Algumas pessoas dizem que eu deveria estudar para ser uma
cientista climática, pois poderia ‘resolver a crise climática’. Mas a
crise climática já foi solucionada”, diz ela, em um sarcasmo sobre seu
lugar de mensageira da certeza — se não há dúvidas científicas sobre a crise climática, o que faltam são mensageiras do jargão científico. Ela é uma delas.
Se
rejeitar o título de marionete a aproxima da experiência de outros
jovens engajados em questões políticas, Greta enfrenta uma jornada muito
particular de desqualificação: é interpelada pela deficiência. Sua
resposta ao ódio capacitista é apropriar-se do diagnóstico médico do
autismo como uma “dádiva”, uma singularidade existencial que movimenta
seu estranhamento sobre o senso de normalidade do mundo. Acompanhá-la
exige um descentramento de quem se sente interpelado por ela: sua
epistemologia é binária, seus discursos são breves como seu senso de
urgência, suas alegorias sobre a crise climática seguem seus sentimentos
de finitude do planeta. Os que rejeitam ou se sentem incomodados pela
interpelação de Greta se unem e, em coro, esbravejam “pirralha raivosa”.
Como Greta, nós também acreditamos que “vivemos em um mundo estranho”.
Para nós, o mais estranho é que a rejeição ao debate político não se dá
por argumentos, mas por “cancelamento” ou “apagamento” de pessoas. Há
uma personificação do ódio — é a menina com deficiência que se torna o
alvo de quem ignora a crise climática. O mesmo ocorre com defensores de
causas feministas, anti-racistas ou de direitos humanos — são pessoas
ameaçadas por ousarem desafiar a normalidade de uma ordem política
desigual. O cancelamento dos mensageiros da democracia é uma das
características do esvaziamento do político pelo ódio e, mais
temerosamente, como diria Hannah Arendt, um forte sinal de fumaça das
políticas fascistas de banalidade do mal.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown.
Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR.
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