Anvisa retira alerta de consumo para produtos que podem até “corroer a córnea”
Levantamento inédito mostra que 93 produtos com glifosato tiveram classificação reduzida sob Governo Bolsonaro – ao mesmo tempo que o cerco ao pesticida se fecha no mundo
O cenário mundial não está favorável aos fabricantes de glifosato. O herbicida enfrenta vetos em países europeus e mais de 18.000 ações nos tribunais nos Estados Unidos que relacionam o seu uso a doenças como o câncer.
Mas, no Brasil, o agrotóxico mais vendido no mundo não só teve a licença de comercialização renovada como também, oficialmente, tornou-se menos perigoso aos olhos do Governo brasileiro.
Isso porque, após a reclassificação de toxicidade aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa), 93 produtos formulados à base de glifosato tiveram a
classificação de toxicidade reduzida, segundo um levantamento inédito
realizado pela Agência Pública e Repórter Brasil com base na publicação no Diário Oficial.
Mais informações
Antes,
24 produtos à base do herbicida eram considerados “Extremamente
Tóxico”. Agora não há nenhum produto enquadrado na categoria máxima de
toxicidade.
O levantamento mostrou ainda que três produtos se mantiveram na mesma classe toxicológica.
“Esse
alerta vai sair da embalagem do glifosato, um produto que pode corroer a
córnea. A embalagem agora será igual a de qualquer produto de uso
doméstico. Estamos seguindo contra todos os alertas que o mundo está
abrindo para o glifosato”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da
Fiocruz.
A portaria que diminuiu a classificação toxicológica
dos produtos à base de glifosato foi publicada em julho deste ano.
Agora, só receberá o alerta máximo os pesticidas que causarem morte ao
serem ingeridos ou entrarem em contato com os olhos ou pele.
Especialistas acreditam que as mudanças vão afetar mais aqueles que manuseiam os produtos,
porque o símbolo de perigo, a caveira, passará a ser usado apenas no
rótulo de produtos que causem a morte ao serem ingeridos ou entrar em
contato com olhos e pele. Os demais agrotóxicos terão apenas um símbolo
de atenção.
Veja as mudanças na tabela:
No Brasil e no mundo
Há mais de 40 anos no mercado mundial, o glifosato é líder de vendas no Brasil e no mundo.
No Brasil, existem hoje 102 produtos técnicos,
duas pré-misturas e 123 produtos formulados à base do ingrediente ativo
glifosato. São usados para o controle de mais de 150 plantas
infestantes em variados cultivos – de soja e café até feijão, maçã e
uva. Em 2017, 173.000 toneladas de glifosato foram vendidas no Brasil,
segundo o Ibama.
Porém,
estudos acenderam o alerta sobre a segurança, correlacionando o uso do
pesticida com o aparecimento de doenças como depressão, autismo,
infertilidade, Alzheimer, Parkinson e câncer em diversas partes do corpo. Em 2015, após análise de diversos estudos a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc) da Organização Mundial de Saúde concluiu que o glifosato era “provavelmente cancerígeno” para humanos.
Em
fevereiro deste ano, a Anvisa concluiu a reavaliação do glifosato, que
durou 11 anos, e entendeu que o produto não se enquadra nos critérios
proibitivos previstos na legislação brasileiras: não é classificado como
mutagênico, carcinogênico, tóxico para a reprodução e teratogênico (que
causa malformação fetal).
“A principal conclusão da
reavaliação é que o glifosato apresenta maior risco para os
trabalhadores que atuam em lavouras e para as pessoas que vivem próximas
a estas áreas”, informou a agência.
Agora, não há
previsão de uma nova avaliação por parte do governo, já que a legislação
não estipula um novo prazo, diferentemente do que acontece na União Europeia e nos Estados Unidos.
Gerente-geral
de toxicidade agência regulatória na época do começo da ação, Luiz
Cláudio Meirelles conta que o produto entrou em reavaliação devido às
suspeitas de doenças crônicas, como câncer e autismo.
“Uma das maiores preocupações eram os efeitos crônicos, aqueles que
apareceriam anos depois, após a pessoa ter exposição contínua ao
produto”, explica.
Hoje, Luiz Cláudio entende que o
caminho a ser tomado deveria ser o da proibição. “Hoje a situação do
glifosato é um caminho sem volta. Tudo que começa a ser apontado como
problemático na saúde e no meio ambiente, a ciência guia para uma condenação”, explica.
O glifosato é defendido pela Bayer, dona da Monsanto.
A reportagem questionou a empresa sobre a reavaliação da Anvisa, a
queda na classe toxicológica, os processos nos Estados Unidos e o
banimento na Europa. No entanto, a Bayer limitou-se em comentar os dois
últimos pontos. Por nota, a empresa informou que se solidariza com os
demandantes e suas famílias, mas que “o glifosato não foi a causa de
suas doenças”.
“Há um extenso trabalho de pesquisas sobre
o glifosato e os herbicidas à base do mesmo, incluindo mais de 800
estudos analisados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos
(EPA), por agências europeias e outros reguladores no momento do
registro dessa molécula. Todas as agências regulatórias que analisaram
estes estudos chegaram à mesma conclusão: produtos à base de glifosato
são seguros quando usados conforme as instruções”, disse em nota.
Confira na íntegra os questionamentos e a nota divulgada pela Bayer.
Segundo
Ricardo Carmona, professor de Produção Vegetal na Faculdade de
Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília (UnB),
ainda não há no mercado um herbicida capaz de substituir o glifosato.
“Se o glifosato fosse proibido, não teríamos outro herbicida de ação tão
ampla que sozinho pudesse substituí-lo. Teríamos que aplicar pelo menos
dois, para controlar tipos diferentes de ervas daninhas, que
possivelmente seriam mais tóxicos, e aumentaria o uso dos agrotóxicos e
causaria consequências a saúde e ao meio ambiente”, diz.
Cerco ao glifosato pelo mundo
Nos
Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos
(EPA) avaliou, em 2017, que o glifosato é “provavelmente não cancerígeno
para humanos”. No entanto, a Justiça americana tem decidido de maneira
oposta.
A Bayer — dona da Monsanto, primeira empresa a
vender agrotóxicos à base de glifosato — responde a mais de 18.000 ações
contra o glifosato, sendo que 5.000 dessas foram registradas apenas em
abril deste ano.
Em agosto e 2018 a Monsanto perdeu uma ação na Júri da Califórnia e foi condenada a pagar 289 milhões de dólares ao jardineiro Dewayne Johnson. A vítima enfrenta um linfoma. Segundo a defesa, ele teria desenvolvido a doença por utilizar nos jardins de uma escola na Califórnia os herbicidas Roundup e RangerPro, feito à base de glifosato.
Em
março deste ano, o Júri Federal de São Francisco entendeu que a
exposição ao glifosato foi um fator significativo para que o aposentado Edwin Hardeman desenvolvesse câncer, e determinou que a Bayer pague mais de 80 milhões de reais em indenização à vítima.
Edwin
enfrenta um linfoma não-Hodgkin, um tipo de câncer que tem origem nas
células do sistema linfático. Durante 20 anos ele utilizou o herbicida
Roundup, à base de glifosato, em sua propriedade. O produto é da empresa
Bayer/Monsanto.
Na Europa, o debate ocorre no sentido de
retirar o glifosato do mercado. Em julho deste ano, o Parlamento da
Áustria baniu o uso de glifosato no país, o tornando o primeiro membro
da União Europeia a tomar a medida.
Em 2017, o presidente da França, Emmanuel Macron,
prometeu proibir o glifosato no país até o fim de 2020. Porém, no
começo deste ano, afirmou que não seria possível banir o produto do
mercado dentro do prazo estipulado. Até o momento o herbicida já está
fora de 20 municípios franceses devido a leis municipais.
Na Alemanha,
o governo se comprometeu a retirar o glifosato do mercado até 31 de
dezembro de 2023, como parte de um programa de proteção de insetos
lançado neste ano.
Ações no Brasil
Em agosto deste ano, o Ministério Público do Trabalho
(MPT-MT), Ministério Público Federal (MPF-MT) e o Ministério Público
Estadual (MP-MT) do Mato Grosso iniciaram uma ação civil pública para
proibir a utilização de qualquer agrotóxico à base de glifosato no
estado.
O Mato Grosso é o maior exportador de soja do
Brasil, com mais de 16,2 milhões de toneladas apenas entre janeiro e
julho deste ano. As culturas do grão são as que mais usam herbicidas à
base de glifosato.
Segundo o MPT, a ação tem como enfoque
defender a saúde dos produtores rurais e o direito à vida. Os
promotores justificam que as condições climáticas do Mato Grosso não são
adequadas à bula de alguns dos principais produtos à base de glifosato,
que tem como especificações, por exemplo, que a aplicação seja feita
com a umidade relativa do ar mínima de 55% e com temperatura máxima de
28Cº, condições que não coincidem com o clima do estado em grande parte
do ano.
A próxima audiência da ação está marcada para 13 de novembro.
Esta
reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da
Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos
no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto. Este texto foi publicado originalmente no site da Agência Pública.
Correção
Luiz Cláudio Meirelles era gerente-geral de toxicidade à época das ações, e não diretor.Correção
A portaria da Anvisa tratou de classificação toxicológica, e não de classificação de risco.
Ader
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