O lixo atrapalha, mas não é o vilão das enchentes, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos
O
lixo urbano irregularmente lançado ou disposto tem sido apontado por um
sem número de vozes como o responsável maior pelas enchentes. Essa tese
tem sido insistentemente sustentada por autoridades públicas, com
acrítica aceitação por boa parte da mídia e, pasmem, pela própria
população de nossas cidades.
No
entanto, como veremos, é uma tese perigosa e equivocada que, ao
espertamente jogar à população, por consequência de uma sua eventual
falta de educação, a culpa pelas enchentes, como também se jogam as
chuvas às costas de Deus, desvia o foco das atenções, subtrai a
importância das verdadeiras maiores causas e alivia a responsabilidade
dos seguidos governos que não as atacam devidamente.
As
enchentes urbanas são explicadas pelo incrível aumento do volume de
águas de chuva que aflui, em tempos sucessivamente menores, para um
sistema de drenagem (córregos, rios, bueiros, galerias, canais…)
progressivamente incapaz de lhe dar a devida vazão.
Esse
aumento do volume de água e a redução do tempo em que chega às
drenagens são promovidos essencialmente pela impermeabilização do solo
urbano e pela cultura de canalização e retificação de drenagens
naturais.
Como
um enorme agravante a esse quadro, considere-se ainda o fantástico grau
de assoreamento dessas drenagens por sedimentos provenientes dos
intensos processos erosivos que ocorrem particularmente nas faixas
periféricas de expansão da cidade. Esse assoreamento acaba por reduzir
ainda mais a já comprometida capacidade de vazão de toda a rede
drenagem.
Ou
se ataca essa questão, através de medidas que recuperem ao máximo a
capacidade da cidade em reter as águas de chuva, seja por infiltração,
seja por acumulação (pequenos reservatórios domésticos e empresariais,
calçadas, valetas e pátios drenantes, bosques florestados e arborização
intensa, etc,) e combatam a erosão em sua origem, ou nunca nos
livraremos do flagelo das enchentes. As bilionárias obras de alargamento
e aprofundamento das calhas de nossos rios principais são necessárias,
mas a realidade mostra que são insuficientes e já se aproximam de seu
limite de benefícios.
O
lixo? Claro que o lixo é um fator complicante, e seu lançamento
irregular deve ser combatido de todas as formas. Mas seus efeitos
principais são para um tipo de enchente muito localizado, junto às
proximidades de um bueiro obstruído ou em uma situação que exija o
funcionamento de bombas de sucção, por exemplo. Vejam que nas cenas
televisadas de enchentes é muito mais comum ver-se água jorrando dos
bueiros e bocas de lobo do que sendo impedida de entrar. Essas águas que
jorram são o retorno das águas para as quais as galerias e córregos não
conseguem dar a devida vazão.
Por
outro lado, é importante considerar que do volume total do material de
assoreamento das drenagens 90% são constituídos por sedimentos
provenientes dos processos erosivos nas frentes de expansão das cidades,
e apenas 10% são constituídos por lixo urbano e entulho de construção
civil.
Note-se
ainda que muito provavelmente apenas uma pequena parte do lixo disperso
nas drenagens da cidade seria proveniente do ato deseducado de se
lançá-lo irregularmente, há problemas ainda bem sérios de deficiências
de recolhimento do lixo doméstico, especialmente em áreas habitacionais
irregulares de baixa renda.
Enfim,
o sucesso de um programa de combate às enchentes exige, antes de mais
nada, a compreensão exata de toda a dinâmica causal do fenômeno, assim
como a corajosa decisão das autoridades públicas e privadas em assumir
suas intrínsecas responsabilidades. O que não condiz com a comodidade de
se jogar às costas da população a culpa pelos problemas.
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Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas
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Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia”
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Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia
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Articulista do EcoDebate
in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 13/02/2020
O lixo atrapalha, mas não é o vilão das enchentes, artigo de Álvaro Rodrigues dos Santos, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 13/02/2020, https://www.ecodebate.com.br/2020/02/13/o-lixo-atrapalha-mas-nao-e-o-vilao-das-enchentes-artigo-de-alvaro-rodrigues-dos-santos-2/.
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