Sua transição não precisa ser para o campo
A pandemia fez muita gente olhar para um sonho antigo mas reprimido ou até meio platônico mesmo: fazer uma transição para o campo, trocar a vida agitada da cidade grande por um endereço mais tranquilo e verde.
Para muitos de nós, o apartamento que já era apertado de repente tornou-se um claustro. Percebemos que não ter um cantinho ensolarado em casa pode ser muito angustiante. Ou que saber cozinhar é uma ferramenta e tanto para sobreviver, mesmo no apogeu dos aplicativos de entrega.
E nada pode ser mais humano do que desejar algo diametralmente oposto àquilo que temos em mãos, no cotidiano, aquilo que já é nosso e não do vizinho. Se está ruim na metrópole, a solução mora é na roça, claro, que coisa mais óbvia, certo? Nem sempre. Talvez não para todos nós. Talvez em algum momento específico da nossa trajetória, apenas.
Não por acaso 2020 viu explodir a oferta de cursos sobre como fazer essa transição para o campo. Alguns prometendo felicidade plena, outros oferecendo o encontro do seu propósito de vida ou uma vida totalmente alternativa a tudo e todos…
Alguns mais pé no chão venderam capacitação em agricultura, marcenaria, bioconstrução etc. Porque, na verdade, a coisa não é assim tão simples e é preciso ser menos romântico e mais prático, aprender habilidades novas e coisa e tal.
Será que é pra mim?
Sei bem como é fazer essa transição para o campo. Vivi na pele. E isso nem de longe faz de mim alguém que tem a fórmula da prosperidade na roça. Cada história é tão única, tão particular…
Depois de 15 anos vivendo em São Paulo, fui morar em uma ecovila rural, no interior paulista. Tudo foi muito bem planejado, feito com calma, sem pressa ou atropelos.
Fui mudando hábitos em mim para “caber” na nova vida que eu estava construindo para além dos tijolos e das paredes de terra da minha futura casa no mato.
Eu sabia que a simples mudança de CEP não traria felicidade se minha cabeça e meu coração não estivessem em sintonia com o que eu encontraria pela frente. Eu precisava não carregar comigo o que eu condenava na cidade. E isso inclui pensamentos, costumes, consumos e um mundo inteiro de ajustes, novidades e novos conceitos de conforto, por exemplo.
Funcionou, deu certo. Por alguns anos. Amava acordar com aquele horizonte de montanhas enevoado, som de passarinhos, cheiro de terra úmida do orvalho, sol acolhedor. E tantos pequenos grandes prazeres que residem na bota suja de lama, no rosto vermelho do vento frio e na verdade que eu cultivava em mim e que me fazia sentir a força serena da gratidão a quase todo instante.
Mas a vida é uma dança, cheia de surpresas, mudanças, movimentos que nos levam até quando nossa vontade é ficar ali no conforto daquela zona tranquila onde mora a ilusão da permanência e do “felizes para sempre”…
Perrengues da vida na roça
Enfrentei inúmeros desafios no campo. A estrada de terra precária, para dizer o mínimo, me fez gastar uma grana que eu nem tinha com um 4×4, só para ter mais chance de chegar em casa no período das chuvas, quando alguns trechos ficavam intransitáveis para um carro comum.
O sinal de internet era questão de sorte, de benzimento, de conjuntura astral, sei lá. Ou de nerd com sorte, dinheiro pra bancar o plano via satélite iraniano e muito banho de arruda e sal grosso. Quando não funcionava, era preciso ir às pressas até a lan house da cidade, que fechava às 18 horas.
E tinha ratinhos do mato dentro de casa comendo o pão caseiro de madrugada, cobra no quintal, cupim na madeira que eu não quis “tratar” com veneno para ser mais ecológica, vizinho chato reclamando ou fofocando com frequência.
Tinha os dilemas da vida em comunidade, que não eram poucos. E mais o perrengue de não ter correio em casa e tudo que isso implica em tempos de e-commerce. Tinha a responsabilidade de realmente cuidar do próprio lixo, porque a coleta da prefeitura (lixo comum) passava a 7 km da minha casa. E os recicláveis eram levados de carro até a cidade, a 15 km.
O caos ou a realidade?
Lembro da noite em que voltei do hospital poucas horas depois de parir minha filha. Era noite, chovia muito forte e estávamos sozinhos: eu, meu marido e a pequena. Pegamos uma estrada vazia, cheia de curvas, linda. Mas era água pra todo lado e a chegada em casa só não foi um caos porque aquilo para nós não era mais sinônimo de caos. Estávamos realmente adaptados às dificuldades do mato.
Chegamos no escuro, sem luz alguma e, para entrar na casa, era preciso descer uma escada um tanto traiçoeira… Com guarda-chuva, bebê no colo, mala de maternidade, bola de pilates e outros apetrechos cômicos do parto natural… rs.
Os cachorros estavam alucinados. Pareciam entender a novidade e queriam cheirar tudo, quase nos derrubaram com as patas de lama e a saudade. Foi um pouco tenso, sim, mas era algo tão corriqueiro e dentro das nossas expectativas que não causou sofrimento.
Este, aliás, é o grande problema da transição para o campo regada a sonhos românticos: quando a dose de ilusão é grande demais… Quando nem sabemos muito bem o que é viver no campo e, mesmo assim, mergulhamos de cabeça nos planos rascunhados na melancolia do que definimos como “vida urbana sem graça ou sem sentido”.
Tudo bem mudar de plano
Sabe, deixei o campo porque de repente minha vida não cabia mais ali. Dentro de mim nasciam novos rumos, novas necessidades. E tudo bem. Tudo bem, mesmo. Hoje, preciso de escola boa perto de casa, de acesso realmente bom à internet, de um tipo de privacidade que eu não tinha mais lá. Tanta coisa mudou…
Mas, de tudo isso, o que quero compartilhar com você é que sua vontade de sair da cidade merece um olhar bastante atencioso e acolhedor, calmo e sensato. Porque é exatamente na sua motivação para deixar a cidade que estão informações importantes sobre você. É preciso descobrir o que esse desejo realmente quer te dizer.
Pode ser que você precise mesmo de uma transição para o campo. Mas pode ser que precise apenas de um apartamento com uma boa varanda, ou de uma casa maior, com terra para restabelecer o fundamental vínculo com a natureza, à sua maneira. Pode ser que sua alma esteja pedindo uma rotina mais leve, um trabalho menos estressante e não um novo endereço.
Comece a transição por dentro
Tudo pode. E você só saberá se sua história incluirá um período no campo quando puder encarar de perto e bem fundo tudo aquilo que você deixou submerso com os prazeres contidos, a correria dos boletos, a fúria de cumprir as tarefas sempre para ontem e afogar as mágoas na happy hour com os amigos (também de saco cheio de tudo isso, talvez), quando a pandemia acabar.
Com todas as tristezas que nos trouxe, 2020 jogou na nossa cara que é tempo de mudar, de transformar. Mas a mudança pode começar dentro primeiro, sabe? Transição não é uma fuga. Ou não precisa ser… Ela nunca envolve apenas você, ainda que você seja solteiro(a) e sem filhos. Você vai ficar mais longe da família, dos amigos, vai mudar o trabalho, a rotina, praticamente tudo.
Mudanças assim pedem fôlego e coragem. Trazem delícias e desilusões. Que trazem verdades e aprendizados. São o que são: caminhos de vida de gente, vida humana, com todos os seus erros e acertos.
Se tiver amor e determinação, vá em frente. Curta cada momento, sem pensar na linha de chegada. E se me permite uma dica, te digo: seja para o apê maior ou menor, a roça, a casa na praia ou a vida do outro lado do Atlântico, comece o roteiro da sua transição viajando para dentro de você.
Foto: Nandhu Kumar / Unsplash
Jornalista ambiental e permacultora, escreve sobre bioconstrução, arquitetura e design sustentáveis, economia solidária, consumo consciente, alimentação orgânica, maternidade e simplicidade voluntária. É autora do livro Meio Ambiente & Ecovilas (Editora Senac São Paulo).
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