Pandemia impulsiona corrida do ouro no Pará e acirra conflitos
Empobrecido pela ilegalidade, epicentro da explosão do garimpo na Amazônia é palco de disputas entre indígenas e órgãos governamentais. Busca por investimentos mais seguros em tempos de crise estimulou atividade.
Sobre troncos de madeira para não tombar no solo argiloso da Floresta Amazônica recém-desmatada, a escavadeira abre uma cratera de 30 metros em busca do substrato onde se esconde o ouro do alto Tapajós. Minerando dentro da Floresta Nacional do Crepori e operada por um migrante vindo do Maranhão que aprendeu o ofício no Suriname, a máquina é essencial no atual boom do garimpo na região e principal alvo de ações de combate da Polícia Federal e de órgãos ambientais.
A mecanização do garimpo se intensificou nos últimos anos, reflexo do movimento, tanto no Pará como em Brasília, pela legalização da atividade em áreas protegidas, e do relaxamento da fiscalização ambiental no país.
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Estimulado pela busca por investimentos mais seguros em tempos de crise financeira provocada pela pandemia do novo coronavírus e pela desvalorização do real diante do dólar, o ouro bateu o recorde de R$ 350 por grama entre agosto e novembro de 2020. Isso gerou uma escalada na produção, cujo valor, medido pela taxação, quase triplicou de 2019 para 2020.
No centro da escalada está o município paraense de Jacareacanga, de onde saem semanalmente cerca de 80 kg de ouro, 90% dele ilegal. “Jacareacanga é hoje a capital do ouro na Amazônia, mas praticamente todo ele é retirado de terras indígenas ou da Flona (Floresta Nacional) do Crepori, ou seja, não pode constar como procedente da cidade”, diz o empresário Alan Carneiro, defensor da legalização do garimpo em unidades protegidas e que há quatro anos vive do crescimento da mecanização, com a maior oficina de escavadeiras e peças de maquinário para garimpo da região.
“Eu buscava um lugar para investir e vi aqui uma grande oportunidade: praticamente não havia civilização e nenhuma que operasse no meu ramo”, comenta o soldador vindo de Rondônia. Hoje ele trabalha na criação de uma cooperativa que visa regularizar a situação de Jacareacanga.
Entre seus futuros cooperados está o mato-grossense Valbim Oliveira, que teve duas escavadeiras, avaliadas em aproximadamente R$ 700 mil, queimadas em uma operação realizada em agosto, enquanto operava na Terra Indígena Mundurucu. “A Polícia Federal chegou de helicóptero logo de manhã e começaram a atirar nas bombas hidráulicas. Dói demais você perder todo seu capital em meia hora”, conta.
“Com cada vez mais escavadeiras queimadas, há uma escassez de máquinas. Se antes o aluguel custava 1 g de ouro por hora, hoje em dia custa 2 g, o que deixa muito garimpeiro bravo com o [Jair] Bolsonaro, pois nenhum presidente antes dele fez algo assim”, reclama Oliveira, que continua apoiando o presidente, e diz que retiraria as máquinas caso fosse intimado.
A destruição de maquinários de grande porte, prevista em decreto de 2008 que regulamentou a Lei de Crimes Ambientais, é alvo de queixas de defensores do garimpo e do atual ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, um dos autores do PL (Projeto de Lei) 191/2020, que regulamenta a extração mineral em terras indígenas. O PL foi assinado por Bolsonaro em fevereiro do ano passado.
Povo rachado
Criticado tanto por ambientalistas quanto por garimpeiros, que o acusam de amparar grandes mineradoras e não os pequenos, o projeto de lei acabou ampliando a divisão entre o povo munduruku, etnia indígena que compõe um terço da população de Jacareacanga. Estima-se que 70% de todo o ouro produzido na cidade saia dos quase 25.500 km² das terras indígenas Sai-Cinza e Munduruku, uma riqueza à qual os índios tem pouco acesso. Poucos participam diretamente, e os caciques recebem dos brancos 10% como “taxa”.
Oficialmente, a principal organização representativa dos mundurukus é a Associação Indígena Pusuru, sediada em uma pequena casa no centro de Jacareacanga. Encabeçada por Francinildo Kabá Munduruku e o primo João Kabá Munduruku, a instituição luta pela liberação da exploração de ouro em suas terras.
“Somos 14 mil, entre aldeados e os que vivem fora das terras, e a maior parte trabalha com o garimpo”, defende João, criticando as limitações. “O índio tem a terra, mas o governo não deixa extrair o ouro dela, não faz sentido.” Segundo a Constituição Federal, as terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas pertencem à União e têm o aproveitamento de riquezas minerais sujeito a autorização do Congresso Nacional.
Lideranças indígenas contestam as afirmações de João. Sob ameaças, um destes líderes afirma que os índios que lutam pela liberação do garimpo foram cooptados pelos pariwat, como chamam os não indígenas, e não representam o povo munduruku. “Eles mentem sobre a maioria ser favorável à extração; na realidade, são 20% os que apoiam a legalização, mas essa minoria faz barulho e aplicou um golpe sobre a Pusuru.”
Em carta ao Ministério Público Federal (MPF) datada de 18 de dezembro passado, as lideranças afirmam que a eleição de Francinildo para a entidade foi uma manobra com envolvimento de “empresários, deputado estadual e senador que estão envolvidos com as atividades ilegais de garimpagem e a favor do PL 191, se aproveitando de um momento de fraqueza com a morte de grandes lideranças do nosso povo causadas pela pandemia”. A carta diz ainda que a Pusuru não representa mais os mundurukus.
Waldelirio Manhuary Munduruku, vice-prefeito, reconhece o problema. “Temos consciência de que é uma ilegalidade, mas o garimpo é uma necessidade do índio”, afirma. Ele compara as necessidades financeiras atuais com as do passado: “O índio hoje está inserido na sociedade, quer água gelada, TV de última geração, não somos mais tutelados. Os que são contra querem que fiquemos isolados como silvícolas, mas não dá para voltarmos a 1500.”
Procurador da República com atuação na região do alto Tapajós, Paulo de Tarso Oliveira questiona a liberação da extração mineral e o abandono do modo de vida tradicional. “As terras indígenas existem como ferramentas para manutenção dos modos de vida tradicionais desses povos; se não há mais indígenas vivendo assim, perdem a razão de ser”, diz.
Para o superintendente da Fundação Amazonas Sustentável (FAS), Virgílio Viana, a exploração das terras indígenas deveria existir somente se comandada em sua totalidade pelos índios. “Caso contrário, as sequelas sociais são muito negativas, acabam destruindo o modo de vida e o tecido social da comunidade”, diz.
Empresário x artesão
Oliveira acredita que o PL 191 não é o caminho para trazer a atividade mineradora para a licitude. “O garimpo como foi concebido pelo legislador seria uma atividade pequena, artesanal, desenvolvida manualmente em até 50 hectares, mas o que se observa na prática são pessoas com dezenas de permissões de lavras, e o uso de máquinas enormes, balsas de até R$ 2 milhões, que atuam sem estudos de impacto ambiental. Isso necessita ser discutido antes de ampliarem-se as fronteiras da mineração”, defende.
O argumento encontra voz mesmo entre donos de lavras dentro de Unidades de Conservação. Vanderlei Pinheiro é morador há 21 anos da comunidade de São José, uma vila de mineradores encravada no meio da Floresta Nacional do Crepori e que hoje conta com um movimentado aeródromo no meio da floresta. Para ele, é impossível passar a atuar de acordo com a legislação.
“Se formos trabalhar como manda o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral, substituído em 2019 pela Agência Nacional de Mineração, ANM) não seria possível. Os custos seriam grandes demais. O ganho com a operação não cobre o investimento que teria de ser feito com as mudas”, afirma, se referindo ao replantio de árvores nativas obrigatório após a exploração da terra.
“Acaba que nós deixamos por conta da natureza se recuperar, o que ela faz rapidamente.” A reportagem visitou dezenas de garimpos abandonados nos quais os buracos permanecem abertos, sem recuperação da vegetação.
Para a procuradoria federal, o argumento da falta de oportunidade seria falacioso: “Ele registra de forma implícita a crença de que o desenvolvimento desse segmento é incompatível com a responsabilidade socioambiental e o desenvolvimento sustentável; isso sem mencionar a precarização das condições de trabalho, más condições de habitação e higiene, doenças como a malária e outras mazelas que vêm a reboque do garimpo ilegal”, afirma Oliveira.
Ouro “esquentado”
Não existem dados precisos sobre a produção garimpeira, porque apenas parte dela entra nos registros oficiais. A ferramenta usada para medir a produção é a CFEM (Contribuição Financeira por Exploração Minerária). Jacareacanga é o município onde a produção de ouro mais cresce no Pará, mas ainda assim a CFEM na cidade vai na contramão do observado no estado e mesmo no Brasil.
“O ouro extraído em áreas ilegais não pode ter indicação de origem, então é necessário falsificar essa procedência”, afirma o procurador Paulo de Tarso Oliveira, apontando a maior falha da contribuição. “A CFEM é autodeclaratória, ou seja, cabe ao vendedor indicar a origem, sem qualquer comprovação por parte da Receita Federal ou da ANM. Não há justificativa para um segmento tão importante da economia como a mineração possuir um sistema tão precário, senão atender algum interesse”, afirma.
Segundo cálculos da prefeitura de Jacareacanga, a arrecadação municipal, que hoje está próxima dos R$ 8 milhões, teria um incremento de R$ 4 milhões caso o CFEM passasse a ser recolhido na cidade. Em contraste, em Itaituba, também no Pará, entre 2018 e 2020, a arrecadação com o ouro saltou de R$ 10,8 milhões para R$ 53,5 milhões. Um dado que demonstra bem como Jacareacanga perde com o garimpo ilegal é o fato de a cidade ter o 51º pior IDH entre os 5.565 municípios brasileiros, enquanto Itaituba está mais de 2 mil posições acima, em 3.291º lugar.
Um estudo publicado em maio de 2020 pelo Instituto Escolhas aponta que áreas com Permissões de Lavra Garimpeira (PLG) são utilizadas para “esquentar” ouro: investigações da Polícia Federal identificaram áreas com PLG sem qualquer produção de fato declarando grandes extrações de ouro, o que sugere falsidade na procedência.
A Polícia Federal ainda apontou em denúncia que a cada 11 anos a atividade garimpeira mecanizada lança no Tapajós o equivalente ao rejeito lançado no rio Doce pela mineradora Samarco, controlada pela Vale e a BHP, no rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais.
No alto Tapajós, o garimpo tende a continuar apesar das dificuldades técnicas e do jogo de gato e rato entre autoridades com orçamentos cada vez menores e pequenos mineradores cada vez mais aparelhados e questionando os crimes impunes cometidos pelos grandes.
“Chegar e espancar é fácil, educar é difícil. Olha o que a Vale fez em Mariana e Brumadinho, por que as autoridades não queimam as máquinas deles?”, questiona Valbim Oliveira, ainda sem trabalhar após a queima das suas escavadeiras.
Fonte: Deutsche Welle
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