Não podemos repetir o erro que cometemos com o pau-brasil
Para fazer uso econômico dos produtos madeireiros e
não-madeireiros das florestas da Amazônia, devemos abandonar o modo de
exploração que fizemos na Mata Atlântica
LEONARDO
SOBRAL · MARCO
W. LENTINI · TOMÁS CARVALHO ·
2 de maio de 2021
Neste dia 3 de maio, comemoramos o dia do pau-brasil. Esta
espécie, símbolo do Brasil, é endêmica da Mata Atlântica brasileira e foi
explorada à exaustão desde os primórdios da colonização do país. Alguns
historiadores alegam que a exploração do pau-brasil constituiu a primeira
atividade econômica brasileira, seja para a extração da tintura avermelhada da madeira
para tingimento de tecidos, seja para o uso da madeira para diferentes
aplicações¹. Devido a séculos de exploração predatória, levamos o pau-brasil
próximo à extinção, assim como destruímos a maior parte das florestas de Mata
Atlântica nesse processo.
É justamente por ea razão que o dia do pau-brasil representa uma oportunidade de reflexão. Após a destruição da Mata Atlântica e o avanço contínuo sobre o Cerrado brasileiro, estamos nesse momento acelerando o ritmo de destruição das florestas da Amazônia. Após duas décadas de relativo sucesso no combate ao desmatamento da Amazônia, voltamos no último biênio a aumentar essas taxas a um patamar superior a 1 milhão de hectares por ano. Embora as motivações econômicas por trás do desmatamento da Amazônia sejam relativamente mais complexas do que as que levaram à destruição da Mata Atlântica brasileira há séculos, temos na Amazônia nos dias atuais, a exemplo do pau-brasil, espécies madeireiras cujo valor de mercado representam um incentivo para a exploração predatória das florestas. Uma vez empobrecidas pela exploração predatória e ilegal, tais florestas perdem seu valor de uso a ponto de se tornarem passíveis de desmatamento, perpetuando uma lógica de uso da terra bastante semelhante à que impusemos historicamente à Mata Atlântica brasileira.
Não é exagero dizer que o país que tem nome de árvore,
paradoxalmente, tem como alicerce de desenvolvimento a destruição de suas
florestas. Até os dias atuais, destruímos cerca de 1/5 das florestas da
Amazônia brasileira. Isso representa a perda de cerca de 500 mil km2 de
florestas, o que equivale a duas vezes a área do estado de São Paulo.
O Imaflora lançou em 2017 a plataforma Timberflow,
voltada à geração de inteligência e de informação qualificada para o setor
florestal da Amazônia. Tal plataforma se alimenta de um amplo banco de dados
oriundo dos sistemas oficiais de controle florestal, voltados a regular as
autorizações de exploração, licenciamentos e transações de produtos de madeira
realizados nesta região. Através deste banco de dados temos mapeado a evolução
da atividade madeireira da Amazônia, sendo que a indústria madeireira, ao longo
dos últimos 20 anos, tem gradualmente migrado do ‘arco do fogo e do
desmatamento’² para as regiões mais centrais da região (Figura 1). Devido à
falta de ordenamento público da exploração florestal e da falta de adoção de
práticas de produção capazes de manter as florestas conservadas, chamadas de
manejo florestal, esta migração da indústria madeireira regional tem
contribuído para o aumento da degradação florestal nas regiões mais centrais da
Amazônia.
Além da contínua migração das fronteiras, outro fenômeno que temos identificado através dos bancos de dados do setor florestal é uma forte retração na atividade madeireira da Amazônia nos últimos 20 anos. Em 1998, cerca de 28 milhões de metros cúbicos de madeira em tora eram explorados na região (Lentini et al.2003), sendo que em 2020 esta produção era de cerca de 10 milhões de m3 (Tabela 1). Embora os principais estados produtores de madeira continuem a ser os mesmos aos registrados há 20 anos (Pará, Mato Grosso e Rondônia concentram 87% da produção de madeira em tora da região), os principais polos de processamento de madeira estão hoje localizados em regiões distantes do arco do fogo e do desmatamento, como Colniza e Aripuanã (noroeste do MT), Santarém, Prainha e Aveiro (oeste do PA), além de Porto Velho (norte de RO). Em 2020, ainda, cerca de 3,2 milhões de metros cúbicos de produtos serrados e beneficiados de madeira foram comercializados a partir dos polos de produção da Amazônia, constando os municípios de Paranaguá, São Paulo, Curitiba, Fortaleza e Brasília entre os principais consumidores. De acordo com os dados do IBAMA (2019), cerca de 9% da produção madeireira da Amazônia está sendo exportada nos dias atuais.
Como também podemos ver na Tabela 1, algumas poucas espécies
de grande valor econômico servem, na prática, como os drivers da exploração das
florestas da Amazônia. A exemplo do pau-brasil, essas espécies, são hoje as
principais fontes de renda para a indústria madeireira que nos últimos 20 anos
atua majoritariamente em uma lógica de exaustão e posterior destruição de
florestas. O paradoxo é que hoje esse modelo não é lógico. Desde a década de
1950, desenvolvemos experimentação e pesquisa que nos permitem hoje aplicar
técnicas de manejo florestal capazes de explorar madeira e outros produtos de
florestas naturais, mantendo-as conservadas com sua biodiversidade íntegra.
Deste modo, além de gerar renda e empregos da atividade florestal legalizada, o
manejo permite que os serviços ambientais associados à floresta sejam
conservados no longo prazo, como água e carbono. A Amazônia tem hoje diferentes
casos de sucesso na condução do manejo responsável de florestas, verificados de
modo independente, tanto nos empreendimentos certificados pelo FSC (Sigla de Conselho de Manejo Florestal)
como em concessões florestais (a ser discutido a seguir). Hoje há cerca de 2,6
milhões de hectares de empreendimentos empresariais e comunitários inseridos
nestas duas categorias, com potencial de suprir cerca de 5% da demanda por
madeira em tora da região.
Um dos entraves históricos à expansão do manejo florestal na
Amazônia foi a falta de áreas elegíveis para a condução formal desta atividade
devido à falta de ordenamento do território e de titulação fundiária. Isto de
certo modo gerou desincentivos para investimentos mais robustos na área
florestal e propiciou um ambiente de instabilidade para o setor e aumento da
ilegalidade. Entretanto, desde 2006, o Brasil conta com um novo arcabouço legal
representado pela Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei 11.284) que regula,
entre outros mecanismos, a concessão de florestas públicas para a iniciativa
privada a iniciativas de manejo de uso múltiplo da floresta. Somado ao
potencial de produção madeireira em territórios comunitários públicos e privados,
o sistema de concessões florestais é capaz hoje de prover a demanda pela
indústria madeireira regional de forma plena através do manejo florestal, de
modo a manter as florestas de produção conservadas no longo prazo.
Apresentamos na Figura 1 um mapa da Amazônia brasileira com a síntese dos temas que trazemos na narrativa deste artigo. O mapa representa a grande concentração da atividade madeireira da Amazônia (tanto das áreas autorizadas para a exploração como das empresas processadoras de madeira) nos tempos atuais ao longo da região central da Amazônia, destacando o oeste do Pará, Noroeste do Mato Grosso, sul do Amazonas e norte de Rondônia. Mais de ¾ da exploração de madeira da Amazônia já está nesta região (Lentini et al. 2019). Se nada for feito, esta região é esperada para concentrar a maior parte do desmatamento e da degradação florestal na Amazônia nas próximas décadas, pelas motivações que apresentamos anteriormente.
Entretanto, a principal mensagem que gostaríamos de deixar
neste artigo é que há tempo para ação. Apresentamos na Tabela 2 uma compilação
da área disponível para a implantação de projetos de manejo florestal
responsável na Amazônia brasileira e nas novas fronteiras madeireiras, que
foram delineadas na Figura 1. Em suma, a área de Florestas Nacionais e
Estaduais existentes dentro da fronteira madeireira ativa já seria capaz de
suprir 70% de toda a demanda atual por madeira em tora da indústria regional6.
Quando somamos a esta conta os territórios comunitários
potencialmente disponíveis para o manejo florestal – Reservas Extrativistas,
Reservas de Desenvolvimento Sustentável, territórios quilombolas e
assentamentos rurais –, a área total disponível dentro da nova fronteira
madeireira poderia suprir o dobro da demanda atual por madeira em tora de toda
a Amazônia. Importante frisar que não advogamos que todas estas florestas sejam
utilizadas para a produção de madeira responsável, uma vez que esta decisão
depende do zoneamento de uso destas áreas, assim como as preferências e
questões culturais dos diferentes povos tradicionais residentes. Apenas
pontuamos que é possível reservar um conjunto de florestas de produção dentro
ou nas proximidades da nova fronteira madeireira que sejam suficientes para
estabilizar esta fronteira, e paralisar sua migração no longo prazo.
Para que esta tarefa seja possível, entretanto, existe um
conjunto de ações que se fazem urgentemente necessárias:
1) Ganho de escala nas concessões e aumento de sua
atratividade e competitividade econômica. É de suma importância que revisões
regulatórias nos requisitos da Lei 11.284/2006 possam ser feitas de modo a
facilitar o ambiente de competição e de negócios nas concessões florestais. Já
há tentativas nesse sentido, a exemplo do PL 5518/2020. Além disso, um número
maior de investidores precisa ser atraído para as concessões, tendo-se como
argumento justamente esse aumento de competitividade e diminuição dos riscos de
legalidade.
2) Monitoramento e controle eficientes. Operações de
fiscalização e combate são fundamentais para coibir a exploração ilegal. Além
disso, é preciso apostar em ferramentas de inteligência, muitas delas sendo
desenvolvidas pela sociedade civil, para tornar as ações de comando e controle
mais cirúrgicas e eficientes. Este avanço não será alcançado sem uma maior
autonomia orçamentária e operacional das entidades responsáveis pelo controle
florestal e do desmatamento.
3) Transparência e controle social. Dados e informações de
cadeia florestal e das ações de monitoramento, controle e fiscalização têm de
estar plenamente disponíveis à sociedade, de modo que as ferramentas e sistemas
sendo desenvolvidos possam prosseguir em um contínuo processo de aprimoramento.
Estas ferramentas podem apoiar não apenas os esforços oficiais de controle,
como os atores públicos e privados comprometidos em avaliar os riscos
associados à madeira em suas políticas de compras e em suas cadeias de
suprimento.
4) Fomento a mercados responsáveis. Os operadores nos
mercados internacionais já vêm a alguns anos aprimorando suas políticas e compromissos
de compra de madeira devido a regulações como o EUTR7. O reflexo deste
comportamento na indústria madeireira da Amazônia ainda foi relativamente
pequeno devido à proporção baixa de produtos destinados à exportação (<
10%). Entretanto, é chegado o momento de envolver os operadores de mercado
brasileiros no esforço de avaliar melhor suas cadeias de suprimento, assumir
compromissos, e tomar medidas efetivas para paralisar o fluxo de madeira ilegal
no mercado. Isso inclui o papel da união, estados e municípios em aprimorar
suas políticas de compras públicas, tendo-se em vista a nova regulação de
licitações e contratos administrativos (Lei 14.133/2021).
5) Maior controle e presença de estado nas áreas públicas
não destinadas. Estima-se que a Amazônia ainda contenha cerca de 54 a 70
milhões de hectares de áreas públicas não destinadas (Sparovek et al 2019,
Azevedo-Ramos e Moutinho, 2018). Aumentar o controle efetivo da grilagem e do
desmatamento nestas áreas é fundamental do ponto de vista de efetivar o ordenamento
territorial da Amazônia e minar uma das fontes de renda da indústria madeireira
baseada na ilegalidade.
6) Capacitação e treinamento. Ainda há grande carência de
recursos humanos para realizar o manejo florestal em larga escala. Para
alcançar este patamar, estima-se que seriam necessários ao menos 20 mil
profissionais, trabalhadores e técnicos devidamente treinados no longo prazo
(Lentini et al. 2009). Investimentos nessa área precisam ser feitos sob o risco
do ganho de escala no manejo florestal ocorrer sem que a totalidade dos
benefícios de conservação seja alcançado nas florestas de produção.
7) Fomento ao manejo florestal comunitário e familiar
(MFCF). Fora as questões de capacitação, a maioria das comunidades interessadas
em manejo florestal necessitará de apoio nas áreas de gestão, cooperativismo,
atração de investimentos, mercados e assistência técnica para poderem realizar
a produção florestal de maneira eficaz e competitiva com os empreendimentos
empresariais. Desde o advento do programa de MFCF (Decreto 6.874/2009), poucos
avanços em termos da operacionalização oficial em escala do fomento aos
produtores florestais comunitários foram efetivamente alcançados.
O sobrevivente: pau-brasil de mais de 600 anos rodeado pelo guia, Uanderson, à esquerda, e Alex e Ricardo, à direita. Foto: Cássio Vasconcelos.
Nosso histórico de uso das florestas demonstra que temos
atuado no papel de destruidores destas áreas naturais. Entretanto, por outro
lado, começando pelo nome do nosso país, nossa vocação demonstra que temos o
talento para sermos manejadores destes recursos. É chegado o momento para
aplicarmos às florestas de produção da Amazônia todas as lições aprendidas que
obtivemos em séculos de predação de espécies como o pau-brasil na Mata Atlântica
brasileira.
Literatura consultada
Azevedo-Ramos, C., Moutinho, P. 2018. No man’s land in the Brazilian Amazon: could
undesignated public forests slow Amazon deforestation? Land use policy
73: 125-127.
IBAMA. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis. 2019. Produção Madeireira de Espécies Nativas: 2012 a
2017. Brasília. 378p. Disponível em
http://www.ibama.gov.br/flora-e-madeira/publicacoes.
Lentini, M.,
Schulze, M., Zweede, J. 2009. Florestas públicas da Amazônia: os
desafios ao sistema atual de concessões. Ciência Hoje, v.34, 242, p. 34-39.
Lentini, M., Sobral, L., Planello, M., Vieira, R.,
Cerignoni, F., Nunes, F., e Guidoti, V. 2019. O que mudou no perfil da
atividade madeireira na Amazônia nas últimas duas décadas (1998-2018)? Boletim
Timberflow 1, julho de 2019.IMAFLORA, Piracicaba.
Lentini, M., Veríssimo, A.; Sobral, L. 2003. Fatos
Florestais da Amazônia, 2003. Belém: Imazon.Sparovek, G., Reydon, B.P., Guedes
Pinto, L.F., Faria, V., de Freitas, F.L.M., Azevedo-Ramos, C., Gardner, T.,
Hamamura, C., Rajão, R., Cerignoni, F., Siqueira, G.P., Carvalho, T., Alencar,
A., Ribeiro, V., 2019. Who owns Brazilian lands? Land use policy 87, 104062.
Notas
1. O pau-brasil foi a primeira madeira a ser fortemente
explorada no Brasil. A madeira era usada para móveis, violinos, construção
civil e naval, por ser dura e resistente, além da coloração avermelhada, que
chamava atenção dos europeus, aumentando assim seu valor de mercado. Nativa das
florestas tropicais brasileiras, no bioma Mata Atlântica, sua ocorrência se dá
desde o litoral do Rio Grande do Norte até o Rio de Janeiro. Estudos históricos
apontam que, por volta de 1503 já havia um sistema complexo montado em torno da
extração de pau-brasil. As historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling
apontam que “brasil” e suas variações são oriundas do latim “brasilia”, que
significava “cor de brasa” ou “vermelho”. A história de excesso de exploração
culminou, porém, para que entrasse para lista de árvores ameaçadas de extinção
em 2004. Uma descrição botânica da espécie (Caesalpinia echinata Lam.) e
sua ocorrência natural pode ser vista em
http://floradobrasil.jbrj.gov.br/reflora.
2. Historicamente, o desmatamento da Amazônia se concentrou
em um cinturão que se estende desde o estado do Acre, passando por Rondônia,
sul de Mato Grosso e leste do Pará e Maranhão, chamado de ‘arco do fogo e do
desmatamento’.
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