O sagrado violado: hidrelétricas ameaçam o rio Juruena e
vida dos indígenas
Considerado sagrado pelos povos indígenas, o rio Juruena é o
protagonista de documentário dirigido por Adriano Gambarini, que mostra impacto
das hidrelétricas ao rio e aos que vivem dele
2 de maio de 2021
A relação de diferentes povos indígenas com a natureza passa
pela instância do sagrado e da ancestralidade. O rio Juruena e seus afluentes
que formam a sub-bacia do Juruena, onde vivem 20 povos indígenas, é um exemplo
dessa relação de respeito, amor e devoção. Celebrado pelos indígenas, mas um
ilustre desconhecido da maioria dos brasileiros, o Juruena nasce no Cerrado, em
Mato Grosso, e suas águas cristalinas seguem rumo ao norte em uma paisagem que
aos poucos deixa a savana para adentrar na maior floresta tropical do mundo. Em
território amazônico, o Juruena encontra seu destino na fronteira matogrossense
com o Amazonas e o Pará, e dá vida ao famoso rio Tapajós. Apesar da sua
importância ecológica e cultural – além de sua beleza cênica – o Juruena
permanece invisível aos olhos de grande parte da sociedade. Enquanto isso,
projetos de hidrelétricas e barragens avançam sem alarde sobre suas águas.
Atualmente, o Juruena e seus afluentes contabilizam mais de 30 hidrelétricas, e
mais uma centena estão previstas para serem erguidas na sub-bacia, uma ameaça
ainda maior ao já impactado fluxo hídrico, assim como aos povos que dependem do
rio para comida, transporte e para algo imensurável: a preservação do sagrado.
Para dar visibilidade à sub-bacia do Juruena, aos povos
indígenas que vivem na região e aos impactos das pequenas centrais
hidrelétricas (PCHs) na vida do rio, a Operação Amazônia Nativa (OPAN),
organização indigenista que atua no território desde 1969, produziu um mini
documentário. Lançado no final de março, o vídeo é dirigido pelo fotógrafo de
natureza e colunista de ((o))eco, Adriano Gambarini, e conta com a
narração da militante indígena Tipuici Manoki, representante da Rede Juruena
Vivo.
O mini documentário, disponível online,
apresenta o Juruena, os seus saltos sagrados, os povos indígenas que habitam
suas margens e escuta os relatos dos seus habitantes seculares sobre o impacto
das hidrelétricas e das barragens no rio. O vídeo também documenta outro
problema: o avanço da fronteira agrícola e, junto com ela, dos agrotóxicos.
Para saber mais, ((o))eco conversou com o fotógrafo Adriano
Gambarini sobre o documentário e sobre os impactos das hidrelétricas na região
amazônica.
((o))eco: De onde surgiu a ideia do projeto e a sua relação
em particular com o Juruena?
Adriano Gambarini: A OPAN fez várias viagens à
bacia do Juruena para resgatar histórias dos povos indígenas com relação aos
saltos sagrados e para dar visibilidade ao problema das pequenas centrais
hidrelétricas (PCHs). Isso gerou um livro [Paisagens Ancestrais do Juruena,
lançado em 2019] e desde então havia a vontade de também fazer um documentário
sobre o tema. Foi contratada uma produtora, que fez a captação de entrevistas e
imagens das PCHs, mas não fez o vídeo, e aí a OPAN me chamou para dirigir
porque eu conheço o Juruena há muito tempo. A primeira vez que eu fui para lá
foi em 1999, quando refiz a rota da expedição do naturalista russo Langsdorff
[realizada entre 1821 e 1829]. E eu fui muitas outras vezes para Juruena, para
diferentes fins e até outros documentários e para outros projetos da OPAN,
então aproveitei essas imagens também.
E eu vi a importância e tenho muito amor e respeito ao
Juruena. O Juruena é um rio de extrema importância ecológica para toda a
Amazônia, porque quem abastece os grandes rios são os rios menores. E se você
considerar que o Juruena faz um trajeto extremamente longo, para depois se
tornar um rio de extrema importância que é o Tapajós, e ele vem trazendo uma
fertilidade gigante pelo caminho. Para mim o Juruena tem uma importância enorme
nesse sentido, porque ele abastece de fertilidade alguns rios que formam o
bioma amazônico hidrograficamente falando. Eu tenho esse xodó pelo Juruena por
isso e também por causa da beleza cênica dele, é um rio maravilhoso, os
afluentes dele são igualmente lindos, com águas transparentes. O rio Juruena é
isso, fertilidade, é um dos grandes berços da fertilidade amazônica e pouca
gente conhece.
Um dos objetivos do documentário é expor o problema das
hidrelétricas na região. Conte um pouco mais sobre isso.
Existem PCHs planejadas tanto para o Juruena quanto para o
Teles Pires, os rios que juntos formam a Bacia do Tapajós. Já tem inclusive uma
hidrelétrica gigante construída no Teles Pires que eu tive a chance de
sobrevoar. Essas grandes obras vão afetar diretamente o fluxo e a migração dos
peixes. E no vídeo a preocupação maior é chamar atenção para essa problemática
das hidrelétricas e da expansão agrícola no entorno, para mostrar que esse
lugar lindo está em risco. O Salto Augusto, por exemplo, fica no leito
principal do Juruena e é um salto super importante do ponto de vista ambiental,
histórico e cultural – tanto pelos indígenas quanto pelos naturalistas que já
passaram por ali – e tem um projeto de barragem nesse salto. E quando você vai
lá, você pensa, por que uma barragem aqui? Vai ser mais uma Belo Monte. Eu,
pessoalmente, sempre falei que não sou contra o progresso, mas que precisamos
ter bom senso. Chega de obra que não gera nada, só impacto.
Esse é um governo que dá cada vez menos voz aos povos
[indígenas] e ao meio ambiente. E historicamente essas PCHs estão sendo feitas
muito a toque de caixa. Eu vi vários povos indígenas dizendo que ali tinha
peixe e agora não tem mais. Eu ouvi um cacique falando que antes eles entravam
no rio e em meia hora, uma hora, voltavam com bastante peixe, e hoje tem que
ficar quatro, cinco horas… navegar no rio para tentar achar um cardume de
peixe. E existe ainda outro problema, que são as cevas que alguns fazendeiros
que têm terras bordeando os rios fazem, aí os peixes ficam concentrados onde
tem a ceva e os índios não podem acessar porque tem que passar pela fazenda. E
existem esses conflitos de vizinhos porque para os indígenas não há fronteira,
eles precisam pescar e vão pescar.
Essas PCHs não fazem uma avaliação aprofundada dos efeitos
colaterais de construir barragens em sequência no mesmo rio. A grande
dificuldade do ser humano é pensar em longo prazo, porque o impacto ambiental
de uma ação às vezes só é visto daqui a 10 anos. E aí se constrói uma barragem
sem avaliar a migração dos peixes, sem avaliar se é um ponto estratégico de
fluxo de peixe, por exemplo, e o dano a esse fluxo de peixe não vai acontecer
ano que vem, vai acontecer daqui a sete, oito anos.
Obras dessa envergadura têm que ter uma projeção das
consequências sobre o meio ambiente. Porque se há consequências para o meio
ambiente, é óbvio que vai haver consequências para essas comunidades que vivem
em função daquele meio ambiente. É óbvio.
Belo Monte é um exemplo emblemático de hidrelétrica
construída mesmo com muita pressão contrária e com estudos que evidenciavam que
além dos inúmeros impactos socioambientais, não iria cumprir a meta de geração
de energia. Ainda assim, Belo Monte está aí. Centenas de outras hidrelétricas
estão planejadas para a bacia Amazônica sem a mesma repercussão e discussão na
sociedade, como fazer para evitar novas Belo Monte?
A parte mais importante é colocar governantes decentes lá
dentro. Porque a empresa que vai construir a obra não está preocupada com o que
vai acontecer daqui a 5 anos, ela quer construir a obra. E no final, a pressão
econômica e o lobby é tão grande que vence mesmo em casos como Belo Monte, que
teve uma mega ação da comunidade e comoveu muita gente e até celebridades. Como
a gente faz para evitar novas tragédias como Belo Monte? Colocando políticos
bons lá. E aí a gente vai no cerne do problema brasileiro: governantes ruins,
que não pensam a longo prazo, que põe o próprio interesse acima do interesse
coletivo.
Qual a importância de dar visibilidade ao Juruena?
Se Belo Monte saiu, com toda a pressão social em cima, que
dirá essas barragens pequenas na bacia do Juruena. Pergunta para qualquer
pessoa aqui do sudeste onde é o Juruena e ninguém sabe. As pessoas já ouviram
falar de Tapajós, Madeira, Solimões, Xingu… mas Juruena? Teles Pires? Quase
ninguém sabe. Que dirá rio Papagaio, rio Buriti e os outros, é muito rio e a
maioria das pessoas só conhece o que sai na grande mídia.
Eu acho que esse governo está expondo de forma tão explícita
a intenção deles que acho que catalisou essa comoção nas pessoas. Mas as
pessoas esquecem. Então se a mídia ficar seis meses sem falar da Amazônia,
acabou. A Amazônia é uma ideia distante e eu acho que a única forma de manter
acesa essa comoção é continuar jogando o máximo de informação possível na
mídia, é o único jeito.
Existem 20 povos indígenas de diferentes etnias na
sub-bacia do Juruena, como é a relação deles com o Juruena?
Eu andei com cinco etnias, documentei vários povos, e cada
um tem suas lendas e crenças, mas todos eles têm essa relação de sagrado com os
saltos. O rio é sagrado. Esses saltos são sagrados, há lendas ao redor deles.
Todos os povos têm essa mítica e consideram os saltos próximos da aldeia deles
sagrados, isso não é restrito a um povo só.
Além das Terras Indígenas há também unidades de
conservação na sub-bacia, como o Parque Nacional do Juruena. Você acredita que
essas áreas protegidas são suficientes para garantir a proteção do rio ou elas
também estão vulneráveis?
Teoricamente as unidades de conservação, sejam Parques Nacionais ou Terras Indígenas, asseguram a conservação da biodiversidade. Mas existe uma vulnerabilidade porque tudo está interligado. Os rios não têm fronteiras, então mesmo que nasçam numa área protegida, passam por áreas que não são. Se há contaminação, seja por agrotóxico ou mercúrio de garimpo, os rios serão atingidos, assim como todas as áreas e pessoas que estiverem no caminho destas águas. Em muitos lugares na Amazônia já existem evidências de peixes com alto índice de mercúrio na carne, por exemplo. Se você me perguntar o que sustenta a Amazônia em pé enquanto floresta, eu acho que são as Terras Indígenas e o mosaico de unidades de conservação. É o que sustenta. Porque mesmo com essas áreas já tem invasão de garimpeiro, madeireiro, tudo isso, imagina se eles tiram esses limites? As Terras Indígenas são grandes áreas que ainda protegem o bioma. E esse tipo de mosaico de áreas protegidas é essencial, senão acaba tudo mesmo.
O que você espera que o documentário desperte nas pessoas?Eu espero que as pessoas percebam que está tudo integrado.
Que as pessoas percebam que a Amazônia é brasileira e está tudo integrado,
porque os indígenas vão sofrer, mas nós todos vamos sofrer eventualmente. Eu
queria fazer um documentário de 2 horas para mostrar que a falta de água em São
Paulo tem a ver com a destruição da Amazônia, que a causa é o que está sendo
feito lá, porque isso está provado cientificamente. A minha ânsia é divulgar o
máximo possível essas coisas da área ambiental que a sociedade às vezes não tem
acesso e tentar manter essa comoção. A pessoa não sabe onde é o Juruena? Vamos
mostrar onde é.
Acho que o papel é expor esses problemas que estão longe dos
olhos da maior parte da sociedade. E acho que foi importante trazermos uma
indígena militante para fazer a narração, dá mais força à mensagem que queremos
passar. Numa palestra que eu fiz no TED Talks, eu abri perguntando quem
conhecia os guaranis e todo mundo levantou a mão. Depois perguntei sobre outros
10 povos indígenas com os quais eu trabalhei e ninguém conhecia. Esses povos
indígenas do documentário, por exemplo, são desconhecidos da maioria das
pessoas. Eu gostaria muito que esse documentário fosse para um canal de TV
grande para alimentar essa comoção às causas indígenas. É curto, mas o recado
está dado sobre o perigo que eles estão correndo lá, não só os indígenas, mas
todo o sistema ambiental. Essa é a questão. Quando a indígena fala que estão
jogando agrotóxicos no rio [Juruena], isso vai para todo mundo, não fica só
para os indígenas.
O objetivo é mostrar essa importância ecológica do Juruena,
que por consequência tem uma importância cultural enorme para os povos que
vivem lá. É uma cadeia. Ele é importante ecologicamente, por isso ele é
importante, socialmente falando, para os povos da região e por isso é tão
importante ficar atento a essas interferências ambientais que já estão
acontecendo ali. Essa pauta não pode ficar restrita ao meio indigenista, que é
pequeno. A gente precisa veicular esse conteúdo o máximo que pudermos, é a
chance de que a gente tem de atrair parceiros que não são da área para esta
causa.
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