“Mudanças climáticas podem inviabilizar soja e gado no Brasil”
EM ENTREVISTA, O CIENTISTA BRASILEIRO PAULO ARTAXO, MEMBRO DO IPCC, COMENTA NOVO RELATÓRIO DO PAINEL DA ONU. DOCUMENTO PREVÊ ALTA DE ATÉ 5,5°C E REDUÇÃO DE 30% DAS CHUVAS EM ÁREAS EXPLORADAS PELO AGRONEGÓCIO NO BRASIL.
A primeira parte do novo relatório do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), divulgada nesta segunda-feira (09/08), afasta quaisquer dúvidas sobre a causa do aquecimento do planeta. O modo de vida da humanidade, movido à base da queima de combustíveis fósseis, emite gases de efeito estufa que estão levando a um rápido aquecimento do planeta. Até a próxima década, a temperatura média global deve subir 1,5 °C, estima o IPCC.
Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC, alerta para os impactos desse cenário no Brasil. Na região central do país, a temperatura pode subir até 5,5 °C, e as chuvas podem cair 30% até o fim do século.
“Esse cenário vai fazer com que áreas onde hoje são produzidas soja e carne possam não ter mais condições de produzir competitivamente daqui a 10, 20, 30 anos”, analisa em entrevista à DW Brasil.
O sexto relatório do IPCC (AR6) será composto por quatro partes. Além da ciência física, divulgada agora, as demais se ocuparão com os impactos, vulnerabilidade e adaptação, mitigação, programadas para serem publicadas em 2022.
DW Brasil: O novo relatório do IPCC reforça o entendimento de que o aquecimento do planeta, que provoca as mudanças climáticas, é causado pelas atividades humanas. Dos pontos abordados no documento sobre os quais não se tinha o mesmo grau de certeza nos relatórios passados, o aumento dos eventos climáticos extremos é um dos com mais avanços?
Paulo Artaxo: É muito claro que o aquecimento do planeta está sendo causado pelas atividades humanas. Não houve nenhum único país, durante os debates sobre aprovação do relatório, que tenha levantado dúvidas sobre essa questão. É um consenso, passamos dessa etapa. Agora é o que fazer, como fazer, quem paga a conta.
Esse relatório trata de vários aspectos que não foram tratados no passado. O primeiro deles, por exemplo, há uma quantificação dos eventos de extremos climáticos. Isso não existia antes.
A gente dizia antes que, aquecendo o planeta, iria aumentar a incidência de eventos climáticos extremos. Esse novo relatório diz que se a gente deixar o planeta aquecer 4 ºC, ondas de calor vão ocorrer 38 vezes mais frequentemente do que ocorreria sem o aquecimento global. É muita coisa.
O documento também faz a vinculação das emissões urbanas e clima global, o que é importante considerando que 80% da população vai viver em áreas urbanas em 2050. Precisamos de políticas públicas para tornar nossas cidades mais eficientes no uso de energia e transporte, mais sustentáveis.
Essa informação chega num momento em que eventos extremos estão trazendo impactos nos dois hemisférios, como as chuvas fortes na Alemanha e a crise hídrica no Brasil, o que já reforça a mensagem do relatório.
Exatamente. O Canadá, por exemplo, não registrava 48 ºC nos últimos 150 anos. Chover em um dia o que chove normalmente em um ano também é inédito.
As enchentes recentes que aconteceram na Alemanha, por exemplo, ocorreram depois de um nível de chuva recorde. Os alemães viram que o aumento de eventos extremos climáticos pode matar pessoas lá também.
E para o Brasil? Os impactos podem ser considerados ainda mais severos?
Um aumento médio se temperatura de 4°C, que é para onde estamos indo com o cenário de emissões, vai fazer com que o Brasil central aumente de temperatura 5,5 °C, com uma redução de chuvas de 30%. Esse cenário vai fazer com que áreas onde hoje são produzidas soja e carne possam não ter mais condições de produzir competitivamente daqui a 10, 20, 30 anos.
Isso leva o Brasil a ter que repensar que economia nós queremos fomentar. Vamos continuar dependendo do agronegócio? Pode ser um péssimo negócio.
Por que essa região do país sofreria um aumento maior de temperatura em relação à média global?
Um aquecimento médio de 2 °C no planeta significa que as áreas continentais se aquecem 3,5 °C. Isso porque 70% da superfície do planeta é oceano, e a água tem uma capacidade térmica muito maior do que os ecossistemas terrestres. Então as áreas continentais se aquecem muito mais.
Um aquecimento médio de 4 °C significa um aquecimento nas áreas continentais de 5,5 °C. Esse aumento da temperatura vai fazer com que a chuva no Brasil central diminua muito. Pode não ser viável uma agricultura com eficiência como a que gente tem hoje.
A mensagem é clara. A questão é o que os governos vão fazer. Ou seja, é o mesmo problema de antes.
A Amazônia é outro destaque deste relatório. Ela armazena 120 bilhões de toneladas de carbono no ecossistema. Se isso for para a atmosfera, todo o cenário de aquecimento pode piorar muito.
O relatório também traz mais clareza em relação às projeções voltadas para elevação do nível do mar?
A projeção até 2100 é de que o nível do mar suba em torno de um metro. E esse relatório faz pela primeira vez uma projeção para 2300. Isso porque, uma vez iniciado o processo de derretimento das geleiras, não há maneira de parar. E a parte do relatório Science for Policy Makers traz a projeção de elevação de até 16 metros até 2300.
As consequências disso para cidades como Rio de Janeiro, Nova York, Londres e para países como Bangladesh são catastróficas.
A palavra “irreversível” aparece muitas vezes no relatório. O que ainda é possível reverter com o corte significativo de emissões de gases do efeito estufa?
Muitos processos já iniciados são irreversíveis. A meia vida do CO2 na atmosfera é de alguns milhares de anos, ou seja, o CO2 que a gente já emitiu vai ficar lá.
A única maneira de tirar esse CO2 da atmosfera é através da fotossíntese. Mas como vamos plantar árvores onde hoje se cultiva comida? Isso traria um impacto gigantesco para a sociedade.
Há ainda um dado muito importante nesse relatório. Os aerossóis estão mascarando o aquecimento. A poluição emitida por partículas que resfriam o clima é responsável pelo resfriamento de 0,5 ºC. Isso foi calculado pela primeira vez.
A hora em que a gente parar de queimar carvão e petróleo, que a gente eletrificar os veículos do mundo inteiro – e isso vai ocorrer – o planeta será aquecido imediatamente em mais 0,5 ºC. Isso é 50% de tudo o que foi aquecido até agora desde a Revolução Industrial.
Isso significa que não será possível manter o aumento da temperatura “bem abaixo dos 1,5ºC”, como estipulado no Acordo de Paris, já que a temperatura média do planeta já subiu 1 ºC desde a Revolução Industrial?
O IPCC fala nesse relatório que vamos aquecer em média 1,5 ºC nesta década. Mas na verdade, isso é eufemismo. Vamos diminuir a redução dos aerossóis, isso vai acontecer na Índia, China, América Latina, com a eletrificação da frota e a desativação das usinas a carvão. E esse 0,5 °C que está mascarado vai ser somado de imediato.
Então parar de queimar combustíveis fósseis vai piorar o aquecimento do planeta?
Vai aumentar a temperatura no curto prazo. Mas, para a sociedade, ao longo dos anos, isso é vantajoso. Primeiro: vai reduzir as 3 bilhões de pessoas que morrem por ano por doenças causadas pela poluição do ar. E, segundo, vai tornar os nossos ecossistemas mais sustentáveis, diminuindo a deposição de substâncias tóxicas. Parar de queimar carvão e outros [combustíveis fósseis] vai deixar de mascarar um terço do aquecimento, mas é esse o caminho a seguir.
Quais são as perguntas desafiadoras a serem respondidas nos próximos relatórios?
As principais perguntas estão associadas com o que a gente chama dos tipping points, os chamados pontos de não retorno. Onde estão eles?
Em que nível de subida de temperatura a gente altera a circulação oceânica? Em que nível de temperatura a Floresta Amazônica passa a emitir carbono em vez de absorver, como ela estava fazendo até há algum tempo? Qual é o impacto do feedback da liberação de metano pelo derretimento do permafrost [solo permanentemente congelado]? São todas questões ainda sem respostas.
Estudos recentes mostraram que a Corrente do Golfo está enfraquecendo. Mais um sinal dos impactos das mudanças climáticas?
Sim. Nós estamos alterando o principal canal de redistribuição de energia do planeta. Isso é extremamente preocupante.
Fonte: Deutsche Welle
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