Carne cultivada: produção, vantagens e possíveis riscos
Equipe eCycle10 min de leitura
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Frédérique Lavoie no Unsplash
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Descubra como é feita a carne cultivada em laboratório e
conheça seus benefícios, riscos e impactos ambientais
Se preferir, vá direto ao ponto Esconder
1. Carne
tradicional versus carne cultivada
2. O
contraponto
3. Uma
questão de saúde?
4. Hormônios
anabólicos e desreguladores endócrinos: possíveis riscos
5. Considerações
éticas
6. Economia
7. Recepção
do público
Carne cultivada, carne de laboratório ou carne artificial é a carne produzida
em laboratório por meio de técnicas de bioengenharia – ou seja, sem abate. Este
setor emergente visa desestabilizar as formas convencionais de produção de
produtos de origem animal, com o objetivo de reduzir o número de animais mortos
para alimentação e criar um sistema alimentar global mais sustentável e ético.
A carne cultivada é produzida a partir de células animais,
começando com a retirada indolor de uma amostra de tecido muscular de um animal
vivo, que é então transformada em massas de células. Amostras de vacas,
galinhas, coelhos, patos, camarões e até atuns foram levadas a laboratórios na
tentativa de recriar partes de seus corpos sem ter de criar, confinar ou abater
os próprios animais.
Em 2013, Mark Post, professor da Universidade de Maastricht,
apresentou o primeiro “hambúrguer de
laboratório”, ou seja, produzido a partir de carne cultivada. A experiência,
financiada por Sergey Brin, co-fundador do Google, foi resultado de 5 anos de
pesquisa e surgiu a partir da reprodução de células-tronco bovinas, cultivadas
e alimentadas com nutrientes em laboratório.
Desde então, o sonho de poder produzir carne a partir da
“agricultura celular”, sem a pecuária, ganhou apoio tanto de ativistas dos
direitos dos animais quanto, principalmente, de atores do setor. Um grande
número de start-ups foi criado, muitas delas patrocinadas por grandes nomes
da indústria
de alimentos.
Com esse objetivo em mente, em 2018 a Food And Drug
Administration dos Estados Unidos estabeleceu um marco regulatório e abriu
caminho para a comercialização desses produtos. Mas a carne cultivada seria uma
revolução alimentar ou uma utopia impossível? Quais os dilemas éticos,
econômicos e psicossociais que seu processo de produção envolve? E, para além
das questões teóricas, quais são os riscos e os benefícios que a criação de
carne cultivada implica?
Carne tradicional versus carne cultivada
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura
(FAO) estima que a demanda por carne vai aumentar em mais de dois
terços nos próximos 40 anos – e o problema é que os métodos de produção atuais
não são nada sustentáveis.
A pecuária contribui
para o agravamento das mudanças climáticas por
meio da liberação descontrolada de metano,
um gás
de efeito estufa 20 vezes mais potente do que o dióxido de carbono. O aumento da
demanda aumentará significativamente os níveis de metano, dióxido de carbono e
óxido nitroso e causará perda de biodiversidade.
Outro grande problema causado pela indústria agropecuária é
o elevado consumo
de água. Cultivar plantas para a alimentação animal representa 56% de toda
a água consumida nos EUA. O cultivo de grãos consumidos pelos animais demanda
uma quantidade enorme de água, que, somada ao consumo direto dos bichos,
representa, segundo um estudo,
faixas de consumo de água de 34-76 trilhões de litros por ano.
Além disso, a pecuária é a principal causa da extinção de
espécies, zonas mortas nos oceanos, poluição da água e destruição de habitats.
O uso disseminado de pesticidas,
herbicidas e fertilizantes químicos
utilizados na produção de culturas para alimentação animal interfere nos
sistemas de reprodução dos animais e na saúde do consumidor final. E, segundo
um relatório da organização Mercy
for animals e um estudo publicado na revista científica Nova
Economia, ela também é a principal causa direta de desmatamento na
Amazônia.
Diante deste cenário, a carne de laboratório surge como uma
opção sustentável que mudará para sempre a maneira como comemos e encaramos os
alimentos. Uma pesquisa realizada em 2011 por pesquisadores da
Universidade de Oxford sugere que a produção de carne bovina cultivada poderia
usar até 99% menos espaço do que o necessário para os métodos atuais de criação
de gado.
O estudo também aponta que as emissões de gases de efeito
estufa e outros prejuízos ao meio ambiente são substancialmente menores quando
se produz carne cultivada, em comparação com os métodos utilizados para
produzir carne de verdade.
O contraponto
Apesar dos resultados positivos revelados pela pesquisa da
equipe de Oxford, estudos mais recentes sugerem que, no longo prazo, o
impacto ambiental da carne cultivada em laboratório poderá ser maior do que o
da pecuária. Ao contrário da investigação anterior, estes estudos consideraram
não só a natureza dos gases emitidos, mas também os custos energéticos das
infraestruturas necessárias à cultura de células.
Os animais têm um sistema imunológico que os protege
naturalmente contra infecções bacterianas e outras. Este não é o caso da
cultura de células e, em um ambiente rico em nutrientes, as bactérias se
multiplicam muito mais rápido do que as células animais. Para evitar a produção
de um bife com mais bactérias do que carne, é essencial evitar a contaminação –
e isso requer um alto nível de esterilidade.
Na indústria farmacêutica, por exemplo, as culturas de
células são realizadas em “salas limpas” altamente controladas e higienizadas.
A esterilidade é geralmente garantida pelo uso de materiais plásticos
descartáveis.
Isso reduz significativamente o risco de contaminação, mas
gera resíduos plásticos, cujo nível nos ecossistemas já é alarmante. Alguns dos
materiais de cultura são feitos de aço inoxidável e, portanto, podem ser
esterilizados a vapor ou lavados com detergentes, mas esses tratamentos também
têm um custo ambiental.
Embora poucos estudos tenham sido feitos sobre o impacto
ambiental da indústria farmacêutica, os dados disponíveis sugerem que sua pegada de carbono pode
ser 55% maior do que a da indústria automotiva.
Uma questão de saúde?
A carne de laboratório é mais saudável do que a carne
tradicional? Segundo especialistas, ela pode ser. Se você se preocupa com a
contaminação da carne pelas fezes, a carne cultivada pode ser uma boa
alternativa, uma vez que a E. coli pode ser totalmente eliminada no laboratório
e nas instalações de produção.
O uso de antibióticos,
um problema grave associado à produção de carne, também seria eliminado. A
Organização Mundial de Saúde apontou, em um relatório, que cerca de 700 mil
pessoas morrem de doenças resistentes a medicamentos a cada ano, com esse
número subindo para potencialmente 10 milhões até 2050. Por isso, eliminar a
necessidade do uso de antibióticos na produção de carne não é apenas mais
saudável: é urgentemente necessário.
Os níveis de gordura e colesterol na carne
cultivada também podem ser controlados, levando a resultados potencialmente
positivos para a saúde, uma vez que níveis elevados de colesterol no sangue
podem levar a condições como doenças cardiovasculares. A carne de laboratório
também pode ser fortificada com vitaminas e minerais para fornecer nutrição
máxima, assim como certos produtos são hoje, como leite, cereais e pão.
Hormônios anabólicos e desreguladores endócrinos:
possíveis riscos
Segundo o biólogo Eric Muraille, em artigo publicado no
periódico The Conversation, o volume muscular dos animais aumenta
lentamente e leva tempo para que as células musculares satélites se
multipliquem.
Para obter o que um animal produz ao longo de vários anos em
apenas algumas semanas de cultivo in vitro, é necessário estimular
continuamente a proliferação das células satélites com fatores de crescimento,
incluindo hormônios sexuais anabólicos.
Esses hormônios estão presentes em animais e humanos, bem
como em carnes convencionais. Eles estimulam a síntese de proteínas nas
células, resultando em aumento da massa muscular. No entanto, a superexposição
a eles estabeleceu efeitos deletérios.
Na Europa, a utilização de hormônios de crescimento na
agricultura está proibida desde 1981 pela Directiva 81/602. Esta proibição foi
confirmada em 2003 pela diretiva 2003/74 e validada pela Autoridade Europeia
para a Segurança dos Alimentos (EFSA) em 2007. Mas qual será a concentração
final desses hormônios na carne cultivada?
Além disso, um número crescente de estudos documentou a
toxicidade de produtos plásticos comumente usados. Os disruptores
endócrinos, compostos que podem interferir no sistema hormonal e
desorganizá-lo, podem ser transferidos das embalagens plásticas para os
alimentos. Sem surpresa, o mesmo fenômeno foi documentado em culturas de
células cultivadas em recipientes de plástico por fertilização in vitro.
A menos que o uso de plástico na produção de carne por
cultura de células seja rigidamente controlado, a carne pode ser contaminada
com disruptores endócrinos e outras substâncias antes mesmo de ser embalada.
Considerações éticas
Existem algumas considerações éticas para a carne cultivada
em laboratório. Um dos benefícios principais e inegáveis é a redução drástica
no abate necessário. No entanto, as células iniciais sempre precisarão de
amostras colhidas de animais vivos, que nunca poderão dar seu consentimento.
A carne de laboratório também falha em derrubar o mito de
que os animais são apenas recursos para serem explorados pelos humanos.
Disponibilizar carne cultivada em laboratório também reforça a ideia de que as
pessoas podem e devem continuar a comer carne, apesar do fato de ser
biologicamente desnecessário para uma boa saúde, como revelam bilhões de
pessoas em todo o mundo que seguem dietas à base de
vegetais.
Economia
O mercado potencial total endereçável para carne cultivada em
laboratório é enorme e, à medida que a tecnologia melhora, os investidores
estão ganhando confiança no setor. Em janeiro de 2020, a Memphis Meats
arrecadou 161 milhões de dólares em uma rodada de arrecadação de fundos da
Série B – uma soma que excede todos os investimentos divulgados publicamente em
carne cultivada em laboratório até o momento. O investimento foi saudado como
um ponto de inflexão para a indústria de carnes.
Contribuindo para essa confiança estão os grandes nomes que
investem em empresas de carnes cultivadas em laboratório, incluindo Bill Gates
e Richard Branson, e as próprias empresas de carnes convencionais, como Tyson
Foods e Cargill.
Recepção do público
Para além dos desafios ambientais, éticos e econômicos que a
produção de carne cultivada envolve, uma questão cultural e psicossocial se
destaca: a resistência do consumidor. De um lado, defensores do consumo de
carne alegam que alimentos produzidos em laboratório não são comida de verdade
e que, portanto, a carne artificial não seria carne de verdade.
De outro, vegetarianos argumentam
que é possível viver bem, e de maneira saudável, sem a ingestão de proteína
animal. Além disso, a aceitação do consumidor está associada a fatores morais e
éticos mais amplos, que muitas vezes envolvem convicções políticas, culturais e
até mesmo religiosas.
Com tantos obstáculos, é difícil prever quando a carne
cultivada deverá chegar ao supermercado mais próximo – e, principalmente, se o
produto encontrará espaço na mesa das pessoas. Por enquanto, é um mistério.
Fontes: Bioscience, Mercy
for Animals, Nova Economia, The Conversation, Sentient Media, The Guardian e Cultured
Beef