“É um mito
acreditar que indígena seja sinônimo automático de preservação total da
natureza”
18/03/2025
Indígenas preservam, mas há
controvérsias.
Escrevo estas linhas no Dia
Internacional de Combate à Islamofobia, 15 de março. Infelizmente, há pessoas
preconceituosas que generalizam, como se todo islâmico fosse fundamentalista
religioso, quando se sabe que a esmagadora maioria dos membros dessa religião
está longe de sê-lo. Da mesma forma que médico não é sinônimo automático de
ética, professor não é sinônimo automático de compromisso com a verdade e nem
clérigo é sinônimo automático de vida pura ou santidade, indígena também não é
sinônimo automático de preservação da natureza.
Nas grandes reservas indígenas com
densidade populacional baixa, principalmente na Amazônia, segundo indicam
muitos estudos, a preservação da natureza acontece de forma muito mais
eficiente do que na maioria das áreas sob outras formas de manejo,
principalmente as áreas da sociedade não indígena. Mas daí para o mito de que
indígena é sinônimo automático de preservação, a inverdade chega a ser tão
grande quanto o mito de que islâmico seja sinônimo de fundamentalista ou
terrorista.
Conheço a Terra Indígena
Laklaño-Xokleng desde criança. Depois, enquanto cursava o ensino superior na
Universidade de Blumenau (Furb), fiz estágio de arqueologia de salvamento,
orientado pelo precocemente falecido Dr. Alroino Baltazar Eble, da UFSC.
Dormíamos na casa-sede, entre os rios Itajaí Norte e Plate, quando a área era
conhecida como Reserva Indígena de Ibirama, já que o município de José Boiteux
ainda não existia.
Muitos anos depois, já formado e mais
amadurecido na visão de mundo, descendo de Rio do Sul, dei carona a um
indígena, de Ibirama a Blumenau. Tivemos tempo para uma longa conversa. Depois
de muitas perguntas que dirigi ao indígena, cujo nome infelizmente esqueci,
cheguei à conclusão de que havia mais fauna cinegética preservada junto ao
Centro de Blumenau do que na mencionada reserva.
Há uns 15 anos, correu a notícia de que
um cacique dessa mesma Terra Indígena, em Santa Catarina, havia caçado uma anta
fora da reserva. Não seria problema nenhum, se não se tratasse de uma das
últimas antas existentes na região. Em 23 de junho de 2023, a imprensa nacional
divulgou a denúncia de que alguns caciques do Xingu estariam coniventes com
desmatamentos, fato que, espera-se, seja exceção.
Há cerca de 10 anos, um ex-aluno que
estagiava em Mato Grosso viu passar, no rio Teles Pires, uma canoa de alumínio
e motor de popa abarrotada de macacos mortos, conduzida por indígenas. Numa
recente reunião em Brasília, lideranças indígenas lotaram o auditório do Ibama,
quase todos usando cocares de penas amarelas, obtidas, conforme cálculos, de
cerca de 200 ararajubas, uma ave ameaçada de extinção, da família dos papagaios
e araras.
Há poucos anos, passando defronte à
Reserva Biológica Estadual do Sassafrás, em Doutor Pedrinho, junto com três
colegas da Acaprena, vimos, desolados, a antiga e boa casa do zelador da
reserva, Sr. José, destruída e queimada pelos indígenas da Terra Indígena
Laklaño-Xokleng, bem como outra edificação defronte à casa. Paramos e, dois de
nós, adentramos a reserva a pé por cerca de um quilômetro, apesar dos protestos
de um indígena morador fronteiriço que não queria permitir nossa entrada.
Argumentamos que não se tratava de Terra Indígena e entramos.
Logo nas primeiras centenas de metros
da trilha, vimos vários troncos de xaxins-monos recém-cortados, da espécie
Dicksonia sellowiana, oficialmente considerada ameaçada de extinção, alguns com
quase 40 centímetros de diâmetro. Logo adiante, no fundo de um pequeno vale à
nossa esquerda, ouvimos golpes de instrumento manual que poderia ser uma foice
ou facão, sinal de que os cortes também aconteciam no dia e no momento em que
estávamos lá.
De volta ao carro e à estrada, 1,5
quilômetro adiante, ainda no alto da serra, seguindo em direção a Doutor
Pedrinho, na região conhecida como Aldeia Bugio, área ocupada pelos indígenas,
havia um mostruário para comercialização de rostos humanos e outras figuras
esculpidas na mesma espécie de xaxim ameaçado de extinção que vimos cortado
dentro da reserva biológica.
Numa reserva biológica, não se pode
cortar nada, muito menos comercializar produtos dela extraídos. No caso de
espécies ameaçadas, até mesmo no interior de propriedades privadas, o corte é
proibido, salvo exceções, sob rigoroso controle das autoridades ambientais.
Tripla contravenção, neste caso por nós testemunhada, ao que tudo indica,
perpetrada por indígenas.
A mídia, de vez em quando, divulga
casos de crimes cometidos em um consultório, mas isso não torna toda a classe
médica suspeita. Por outro lado, ninguém, com o mínimo de bom senso, vai
acreditar que todos os médicos sejam honestos e éticos. Ou que basta ser padre,
pastor ou outro tipo de clérigo para ser considerado “santo” aqui na Terra. Na
outra ponta, a divulgação de crimes cometidos por clérigos não permite que
ninguém os generalize como ladrões, corruptos ou abusadores sexuais. Isso seria
um mito. Da mesma forma, embora sem generalizar, é um mito acreditar que
indígena seja sinônimo automático de preservação total da natureza.
Inúmeras tribos e aldeias já contatadas
ao longo do tempo adquiriram hábitos e comportamentos dos ditos “civilizados”,
como, por exemplo: uso de ferramentas como facões e utensílios agrícolas; caça
facilitada por armas de fogo e por cães treinados para caça – novidades que
antes não existiam para os povos originários; energia elétrica e uso de
eletrodomésticos; abertura de estradas; uso de veículos, barcos a motor velozes
e até aviões. Muitas tribos recebem turistas e visitantes, que provam da
alimentação indígena, incluindo carne de caça, o que implica automaticamente em
um significativo aumento da pressão de caça e assim por diante.
Impõe-se, então, uma imperiosa
necessidade de regramentos diferentes daqueles que norteavam a outrora
relativamente eficiente relação original dos povos originários com a natureza,
ao mesmo tempo em que a sociedade não indígena precisa aprender muito com eles.
Isso é fundamental para que a atual e
as futuras gerações, de todos os povos e etnias, possam continuar desfrutando
de um meio ambiente minimamente saudável e equilibrado, com eficaz proteção da
peça mais importante e central de todas as complexas relações do homem com a
natureza: a proteção da biodiversidade.
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