2014 está rolando - Fernando Gabeira
No fim do ano recebi um envelope laminado cheio de
bolinhas de isopor e um cartão de Antônio Bernardo: "2014 vai rolar".
E como! - pensei.
Aproveitando os feriados, revi um livro de Octavio
Paz, Os Privilégios da Vista. Ele menciona os calendários lunares e solares dos
antigos povos da América Central. Alguns dias ficavam de fora. Eram os dias
vazios, como os definiu Paz. Não é o caso de 2014, quando temos uma conjunção
de Copa do Mundo e eleições. A Copa é realizada de quatro em quatro em quatro
anos, mas agora será no Brasil Nas eleições de que participei traçávamos
uma linha rígida: a campanha começava quando a Copa terminava. Agora essa linha
se dissolveu. As eleições podem invadir o espaço da Copa e esta, certamente,
invadirá o espaço das eleições.
Independente de grandes manifestações, o Brasil
merecia um grande debate, pois é uma eleição que potencialmente pode definir
rumos. A maioria, quer mudança. Mas isso
não quer dizer nada, pois as eleições podem consagrar o mesmo bloco de partidos
que está no poder. O desejo de mudança vai perseguir o próximo vencedor. Ele,
naturalmente, pode resistir, argumentando que venceu.
O Brasil fez a Copa para projetar uma
imagem de crescimento e pujança que hoje está desfocada não só pelo medíocre
crescimento, como pela precariedade de infaestrutura e serviços públicos,
revelada pelas manifestações de junho. As vezes, para simplificar o que vejo
hoje no País, socorro-me da teoria do cobertor curto: você puxa para o consumo,
esfria o investimento, divulga a Copa, mas os jornais falam das chuvas
intensas, dos desabrigados e das imutáveis áreas de risco nas cidades
brasileiras. E assim segue: você faz um cinturão de segurança, ocupando favelas
com forças de paz, mas esfria na zona norte, nas áreas metropolitanas, para
onde fogem muitos bandidos.
Os fatos vão estar sempre por aí,
mostrando que há alguma coisa errada na maneira como gastamos o dinheiro
público. Apenas 28% das verbas para prevenção de enchentes foram gastos,
enquanto nos estádios de futebol o ritmo de gastos já não se limita às obras,
mas alcança os reparos do que foi feito de errado, como se viu no Maracanã e,
agora, no Mané Garrincha. Não bastasse tudo isso, no final do ano Renan
Calheiros usou um avião da FAB para fazer transplante capilar no Recife.
Se andassem um pouco na rua, teriam ideia
de como essas coisas repercutem. E ainda dizem que ouviram a voz das ruas. As
tensões levantadas pelo movimento de 2013 não foram resolvidas. Isso não
significa que teremos de novo grandes demonstrações. A tentativa é de empurrar
com a barriga, manter as coisas como estão, permanecer no poder, às vezes até
debochando das críticas das ruas.
Li na biografia de Vargas escrita por Lira Neto que
alguns de seus auxiliares tentavam levá-lo a mudanças, argumentando que era
preciso fazer como os atores que se renovam, lançar novas peças, atrações,
senão o teatro fica vazio. O desejo de mudança que existe agora é também
um certo cansaço com essa longa experiência do PT e seus aliados no governo.
Ela não é capaz de indicar novos rumos. Claro que sua hegemonia eleitoral não
será ameaçada se os desejos de mudança não forem canalizados pelos oponentes.
A singularidade desta eleição com Copa do Mundo no Brasil
pode trazer para o processo um interesse maior da imprensa internacional. O
Brasil viverá dias intensos sob os olhares de muita gente. Tanto como no ano
passado, os brasileiros no exterior certamente vão usar o momento para
expressar suas expectativas sobre o País, ampliando a exposição nacional.
Assisti a alguns debates na TV e os analistas
sempre mencionavam,por prudência, a imprevisibilidade. 2014 vai rolar, como diz
o cartão. Mas para onde, de que jeito, com que convulsões ou espasmos? O nível
de imprevisibilidade justifica-se pela presença desses elementos esparsos que
de repente se podem reconfigurar de uma forma nova - Copa, eleição
presidencial, desejo de mudança, esgotamento de um modelo econômico, perda de
credibilidade do processo político. Caso não se combinem no sentido da mudança,
isso quer dizer apenas que a mudança, sobretudo a ditada pela realidade
econômica, foi adiada, ultrapassou o calendário de 2014.
Não apenas o ajuste econômico, mas algum tipo de
renovação política sería menos doloroso se conversado antes, no momento
eleitoral. Caso o processo eleitoral passe por cima desse desejo de mudança,
aí, sim, o próximo presidente pode viver anos interessantes, no sentido que os
chineses dão ao termo.
Esse é um dos enigmas deste imprevisível 2014.
Certamente há muitos outros e só poderemos desvendá-los com o tempo.
O ano apenas começou a rolar. Ainda uso
palavras do ano " passado e, como diz o poeta T. S. Elliot, palavras do
ano passado pertencem à linguagem do ano passado e as palavras de um novo ano
esperam outra voz. Isso predispõe à abertura ao imprevisível. Mas um olhar mais
largo aos acontecimentos que preocuparam no final do ano mostra que eram
previsíveis.
As inundações no Espírito Santo podem ser
compreendidas por meio do minucioso livro de Warren Dean A Ferro e Fogo. Augusto
Ruschi denunciou o processo de derrubada das matas e assoreamento dos rios. Num
momento em que o Espírito Santo tinha 500 serrarias, os desmatadores levaram
seu know-how para ã Amazônia.
Estive no presídio de Pedrinhas após um motim com
mortes. Alguns presos foram decapitados. Anotamos uma série de problemas que
precisavam ser resolvidos para atenuar a violência ali. Até audiências na
Assembleia fizemos para mobilizar os atores locais. Pedrinhas de novo, motim de
novo. Cabeças cortadas. Tanta discussão científica sobre se é possível viajar
para o passado, encontrar uma curva fechada que nos jogue para trás no
tempo.
E isso é tão frequente no Maranhão... Alguém
precisa dizer isso a Stephen Hawking, que dedica parte de seu livro Minha Breve
História à hipótese de uma viagem no tempo.
Fernando Gabeira é jornalista
Fonte: O Estado de S. Paulo
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