O GLOBO - 15/06
Brasil, infelizmente, tem desenvolvido uma cultura de conflitos
Toda sociedade alicerçada na liberdade, em direitos e na segurança jurídica preza e respeita os seus acordos. Em situações deste tipo, demandas e interesses em conflito entram em processo de negociação e conciliação, em que as partes se reconhecem mutuamente enquanto portadoras de direitos. O progresso mede-se, assim, pela capacidade que cada um desenvolve de aceitar o outro como igual e em honrar o que foi acordado. Conflitos devem ser equacionados, sem o que o Estado termina vivendo em uma situação de completa instabilidade. Ninguém sabe o que esperar do dia de amanhã.
O Brasil, infelizmente, tem desenvolvido toda uma cultura de conflitos, como se pretensões de direitos devessem se resolver pela exclusão dos direitos de outros. Não apenas se aceita o conflito como, em alguns casos, chega-se a fazer o elogio da violência como um meio adequado de pressão. Tribunais são frequentemente deixados à mercê e, em seu lugar, surgem invasões de propriedades como se estas fossem um instrumento legítimo de pressão entre outros.
Fugindo a essa cultura, ocorreu no Paraná, em particular no município de Guarapuava, um conflito de direitos envolvendo a Cooperativa Agrária Agroindustrial, altamente produtiva e com todos os seus títulos de propriedade em ordem, e uma comunidade quilombola, reivindicando direitos sobre uma mesma área desta cooperativa.
O conflito durava anos e os ânimos só se acerbavam, quando ocorreu uma mediação entre as partes, feita, no último ano, pelo Incra e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Procurou-se a negociação e o envolvimento direto entre as partes envolvidas. Estava se desenhando um novo projeto, capaz, mesmo, de ser um exemplo nacional, um case, como se diz em linguagem empresarial.
A demanda quilombola inicial era, vou arredondar os números, de três mil hectares, demanda essa não aceita pela cooperativa. De um lado, títulos de propriedade legalmente registrados; de outro, um relatório antropológico determinando a mesma área como território quilombola. Nada que aproximasse as partes.
Após intensas negociações, que começaram com desconfianças mútuas, elas acordaram uma área a ser demarcada de aproximadamente 1.500 hectares, dando uma satisfação de direito a ambas. Houve um efetivo processo de reconhecimento, algo raro quando se trata de conflitos que envolvem movimentos sociais.
O acordo, ressalte-se, foi patrocinado pelo Incra e pelo MDA, que tiveram uma participação ativa em todo esse processo, contribuindo, decisivamente, para que fosse levado a bom termo. Em nenhum momento apostaram no conflito, mas na solução do problema. Muito particularmente, o Incra agiu como órgão de Estado que é, e não como defensor de uma das partes. Sua preocupação foi o Brasil, que está, evidentemente, acima de todos nós. Procurou, isto sim, avançar rumo a um novo modelo de resolução de conflitos sociais, baseado em decisões técnicas.
Foi editada uma portaria, de nº 5445, que selou esse acordo. Houve uma solenidade, no interior do Paraná, com a participação do ministro do Desenvolvimento Agrário, do presidente do Incra e do diretor de ordenamento fundiário. O clima era de cordialidade, com as partes já vencendo a desconfiança anterior. A coroação, por assim dizer, deste processo foi um abraço de confraternização entre o presidente da Cooperativa Agrária, Jorge Karl, e a líder quilombola, Dona Ana. Para quem presenciou, foi um ato emocionante.
Tudo pacificado, ficaram as partes aguardando o decreto presidencial, pronto para assinatura desde dezembro do ano passado. Frise-se que assinatura do decreto é uma demanda de ambas as partes, sendo de seu comum interesse que tudo se resolva rapidamente. A cooperativa seria indenizada pelo justo valor de suas terras e os quilombolas entrariam em posse de, doravante, seu território. Nada aqui os distancia. Não há nenhum obstáculo à publicação deste decreto. Contudo, nada ocorreu depois.
No dia 31 de maio, um domingo, uma área da cooperativa foi invadida. A surpresa e a indignação não poderiam ser maiores, pois não foi este o desfecho almejado. O acordo foi violado e, em vez de uma negociação que tinha sido um sucesso, voltou-se ao velho esquema do conflito. Pode-se entender que as lideranças quilombolas já estivessem cansadas de esperar, porém, isto é de responsabilidade do governo e não da cooperativa. Logo, em vez da invasão da propriedade de um parceiro de acordo, poderiam ter invadido o Incra, o MDA ou o Palácio do Planalto. A cooperativa, observe-se, não tem nenhuma culpa nesta demora, que também lhe prejudica.
A demora governamental está produzindo um clima de insegurança para todas as partes e uma estranha sensação de que os respectivos direitos estão, de certa maneira, suspensos. O que era para ser um case nacional está se tornando um “contracase”! Quem se engajará em uma negociação se o seu resultado não for respeitado?
Para se ter uma ideia de quanto se havia avançado nas negociações, chegou-se a cogitar que os quilombolas poderiam tornar-se cooperados, uma vez cumpridos os critérios das cooperativas, o que lhes asseguraria as condições de seu desenvolvimento socioeconômico. A sua sustentabilidade estaria assegurada. Como fica agora o clima de confiança?
Urge que o governo retome a iniciativa, publicando o decreto correspondente e procedendo às etapas seguintes de indenização e emissão de posse do território, de modo que os diferentes direitos sejam efetivamente assegurados. Urge, igualmente, que a área invadida seja desocupada, restabelecendo o Estado de direito que foi violado.
Trata-se um caso individual, porém emblemático da situação nacional. Em vez do acirramento dos conflitos, devemos nos dirigir para o seu equacionamento. Em vez de processos de mútua exclusão entre as partes em disputa, o seu reconhecimento recíproco. Para isto, deve ser o governo rápido em suas decisões e equânime em suas decisões. Não é o que está acontecendo.
Brasil, infelizmente, tem desenvolvido uma cultura de conflitos
Toda sociedade alicerçada na liberdade, em direitos e na segurança jurídica preza e respeita os seus acordos. Em situações deste tipo, demandas e interesses em conflito entram em processo de negociação e conciliação, em que as partes se reconhecem mutuamente enquanto portadoras de direitos. O progresso mede-se, assim, pela capacidade que cada um desenvolve de aceitar o outro como igual e em honrar o que foi acordado. Conflitos devem ser equacionados, sem o que o Estado termina vivendo em uma situação de completa instabilidade. Ninguém sabe o que esperar do dia de amanhã.
O Brasil, infelizmente, tem desenvolvido toda uma cultura de conflitos, como se pretensões de direitos devessem se resolver pela exclusão dos direitos de outros. Não apenas se aceita o conflito como, em alguns casos, chega-se a fazer o elogio da violência como um meio adequado de pressão. Tribunais são frequentemente deixados à mercê e, em seu lugar, surgem invasões de propriedades como se estas fossem um instrumento legítimo de pressão entre outros.
Fugindo a essa cultura, ocorreu no Paraná, em particular no município de Guarapuava, um conflito de direitos envolvendo a Cooperativa Agrária Agroindustrial, altamente produtiva e com todos os seus títulos de propriedade em ordem, e uma comunidade quilombola, reivindicando direitos sobre uma mesma área desta cooperativa.
O conflito durava anos e os ânimos só se acerbavam, quando ocorreu uma mediação entre as partes, feita, no último ano, pelo Incra e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Procurou-se a negociação e o envolvimento direto entre as partes envolvidas. Estava se desenhando um novo projeto, capaz, mesmo, de ser um exemplo nacional, um case, como se diz em linguagem empresarial.
A demanda quilombola inicial era, vou arredondar os números, de três mil hectares, demanda essa não aceita pela cooperativa. De um lado, títulos de propriedade legalmente registrados; de outro, um relatório antropológico determinando a mesma área como território quilombola. Nada que aproximasse as partes.
Após intensas negociações, que começaram com desconfianças mútuas, elas acordaram uma área a ser demarcada de aproximadamente 1.500 hectares, dando uma satisfação de direito a ambas. Houve um efetivo processo de reconhecimento, algo raro quando se trata de conflitos que envolvem movimentos sociais.
O acordo, ressalte-se, foi patrocinado pelo Incra e pelo MDA, que tiveram uma participação ativa em todo esse processo, contribuindo, decisivamente, para que fosse levado a bom termo. Em nenhum momento apostaram no conflito, mas na solução do problema. Muito particularmente, o Incra agiu como órgão de Estado que é, e não como defensor de uma das partes. Sua preocupação foi o Brasil, que está, evidentemente, acima de todos nós. Procurou, isto sim, avançar rumo a um novo modelo de resolução de conflitos sociais, baseado em decisões técnicas.
Foi editada uma portaria, de nº 5445, que selou esse acordo. Houve uma solenidade, no interior do Paraná, com a participação do ministro do Desenvolvimento Agrário, do presidente do Incra e do diretor de ordenamento fundiário. O clima era de cordialidade, com as partes já vencendo a desconfiança anterior. A coroação, por assim dizer, deste processo foi um abraço de confraternização entre o presidente da Cooperativa Agrária, Jorge Karl, e a líder quilombola, Dona Ana. Para quem presenciou, foi um ato emocionante.
Tudo pacificado, ficaram as partes aguardando o decreto presidencial, pronto para assinatura desde dezembro do ano passado. Frise-se que assinatura do decreto é uma demanda de ambas as partes, sendo de seu comum interesse que tudo se resolva rapidamente. A cooperativa seria indenizada pelo justo valor de suas terras e os quilombolas entrariam em posse de, doravante, seu território. Nada aqui os distancia. Não há nenhum obstáculo à publicação deste decreto. Contudo, nada ocorreu depois.
No dia 31 de maio, um domingo, uma área da cooperativa foi invadida. A surpresa e a indignação não poderiam ser maiores, pois não foi este o desfecho almejado. O acordo foi violado e, em vez de uma negociação que tinha sido um sucesso, voltou-se ao velho esquema do conflito. Pode-se entender que as lideranças quilombolas já estivessem cansadas de esperar, porém, isto é de responsabilidade do governo e não da cooperativa. Logo, em vez da invasão da propriedade de um parceiro de acordo, poderiam ter invadido o Incra, o MDA ou o Palácio do Planalto. A cooperativa, observe-se, não tem nenhuma culpa nesta demora, que também lhe prejudica.
A demora governamental está produzindo um clima de insegurança para todas as partes e uma estranha sensação de que os respectivos direitos estão, de certa maneira, suspensos. O que era para ser um case nacional está se tornando um “contracase”! Quem se engajará em uma negociação se o seu resultado não for respeitado?
Para se ter uma ideia de quanto se havia avançado nas negociações, chegou-se a cogitar que os quilombolas poderiam tornar-se cooperados, uma vez cumpridos os critérios das cooperativas, o que lhes asseguraria as condições de seu desenvolvimento socioeconômico. A sua sustentabilidade estaria assegurada. Como fica agora o clima de confiança?
Urge que o governo retome a iniciativa, publicando o decreto correspondente e procedendo às etapas seguintes de indenização e emissão de posse do território, de modo que os diferentes direitos sejam efetivamente assegurados. Urge, igualmente, que a área invadida seja desocupada, restabelecendo o Estado de direito que foi violado.
Trata-se um caso individual, porém emblemático da situação nacional. Em vez do acirramento dos conflitos, devemos nos dirigir para o seu equacionamento. Em vez de processos de mútua exclusão entre as partes em disputa, o seu reconhecimento recíproco. Para isto, deve ser o governo rápido em suas decisões e equânime em suas decisões. Não é o que está acontecendo.
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