Não há como fugir do problema: pedaladas fiscais são atos criminosos -
crime de responsabilidade fiscal, mais precisamente. O jurista Miguel
Reale Júnior, ex-ministro da Justiça, afirma que não se trata de uma
simples questão técnico-contábil. Contrariando o procurador-geral da
República Rodrigo Janot, Reale diz que os crimes contra as finanças
públicas devem ser levados ao STF. Aceito o processo, Dilma deverá ser
afastada - pelo menos temporariamente - do cargo, até decisão final:
Deteriora-se a situação econômica, entrando o País em recessão com
encolhimento do PIB em 2%, num cenário sem esperança, com provável ainda
maior redução dos investimentos e do consumo. E as chamadas
“pedaladas”, consistentes em valer-se a União de empréstimos nas suas
instituições financeiras (Banco do Brasil, Caixa Econômica, BNDES) para
suprir deficiências do Tesouro - visando a cumprir programas essenciais
como Bolsa Família, seguro-desemprego e Minha Casa, Minha Vida - não vêm
a ser uma questão meramente técnico-contábil.
A crise que vivemos tem como uma das causas o recurso às pedaladas,
pois, sem meios, se maquiou haver capacidade financeira com empréstimos
vedados pela lei, além de deixar-se de registrar tais débitos,
falsamente forjando-se um superávit primário. Transformou-se
ilicitamente dívida em superávit.
O descontrole da contas governamentais permitiu a continuidade de
benefícios fiscais, a gastança nos milhares de cargos em comissão, os
desvios de dinheiro em contratos com sobrepreços astronômicos, na
administração direta e indireta. A falência do Estado foi construída com
o escudo das pedaladas para disfarçar o rombo. E agora toda a
população, especialmente a mais pobre, paga a conta com inflação e
desemprego.
A importância da responsabilidade fiscal é de tal monta que condutas
de afronta às finanças públicas foram alçadas, pela Lei n.º 10.028/2000,
em crimes, artigos 359 A e seguintes do Código Penal, introduzindo-se
na lei do impeachment tais atos como passíveis de levar à cassação do
presidente. No caso, haveria também, em tese, o crime de falsidade
ideológica, previsto no artigo 299 do código, por se omitirem como
despesa do Tesouro as dívidas contraídas, gerando falso superávit
primário. Representação dos partidos de oposição imputa à presidente a
prática destes crimes comuns.
A Constituição de 1988, com relação ao processo por crime comum
contra o presidente da República, estabelece no artigo 86, § 4o, que na
vigência de seu mandato não pode o presidente ser responsabilizado por
atos estranhos ao exercício de suas funções, como, por exemplo, se
provocasse uma lesão corporal culposa dirigindo um veículo.
Em março do corrente ano, o procurador-geral da República, bem como o
relator no STF (PET 5263/DF), ministro Teori Zavascki, manifestaram-se
no sentido de, nos termos da Constituição federal, não poder o
presidente da República, na vigência de seu mandato, ser
responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
Indeferiu-se, com razão, a apuração de responsabilidade da presidente
por fatos anteriores à sua posse em 2011, relativos à Petrobrás e à
campanha eleitoral.
Surpreende agora Rodrigo Janot dizer, na sabatina no Senado, haver
uma questão jurídica em pauta, em vista da imunidade da presidente da
República no caso das pedaladas. Ressalto não haver, segundo penso,
nenhuma divergência no STF em face de crimes praticados pela presidente
se não estranhos às suas funções.
A orientação do STF, conforme se verifica em acórdãos do plenário,
relatados pelo ministro Celso de Mello (Inq 672-QO, julgamento em
16/9/1992 e Ação Penal 305/92), é no sentido de poder o chefe de Estado,
nos ilícitos penais praticados em seu ofício ou em razão dele, ainda
que vigente o mandato, ser submetido a processo-crime, desde que haja
autorização da Câmara dos Deputados.
Estabelece-se, em face do princípio republicano, caber a
possibilidade de responsabilizar penal e politicamente o presidente
“pelos atos ilícitos que eventualmente venha a praticar no desempenho de
suas magnas funções”. E alerta-se, na decisão, estarem excluídas de
responsabilização pelo artigo 86, § 4o, apenas as infrações penais
comuns cometidas pelo chefe do Executivo da União que não tiverem
relação alguma com o exercício do ofício presidencial.
Em decisão mais recente, também do plenário do STF, relatada pelo
ministro Sepúlveda Pertence (HC 83.154, julgamento em 11/9/2003),
asseverou-se: “O que o art. 86, § 4.º, confere ao presidente da
República não é imunidade penal, mas imunidade temporária à persecução
penal: nele não se prescreve que o presidente é irresponsável por crimes
não funcionais praticados no curso do mandato, mas apenas que, por tais
crimes, não poderá ser responsabilizado, enquanto não cesse a
investidura na presidência”.
No caso das pedaladas, o crime de responsabilidade fiscal não é
estranho ao exercício das funções de presidente: ao contrário, é próprio
dessas funções, com a realização de atos que diretamente se inserem nas
atribuições presidenciais, como a de exercer, com o auxílio dos
ministros de Estado, a direção superior da administração federal.
Nada mais específico da alta administração do que examinar e
determinar a destinação de recursos, mormente em face de programas
essenciais de governo. Sendo os crimes de responsabilidade fiscal
próprios das funções de chefe do Executivo, devem ser objeto de processo
criminal independentemente de terem ocorrido neste ou no mandato
anterior, pois importa é saber se o ilícito penal foi praticado no
exercício do ofício presidencial.
Ademais, a presidente era unha e carne com o secretário do Tesouro,
confessadamente responsável pelas pedaladas, com quem sempre se reunia.
Por mais distraída que fosse, a presidente não poderia deixar de ver
empréstimos no valor de R$ 40 bilhões.
As razões de Janot no Senado, no sentido de descaber processo contra a
presidente, são destituídas de base legal. Os crimes contra as finanças
públicas, que infelicitam o povo, devem ser levados à apreciação do
STF, que solicitará autorização à Câmara dos Deputados para prosseguir o
processo, com afastamento temporário da presidente, agora ré confessa
diante da proposta de Orçamento deficitário em 2016. Deficitário porque
sem a maquiagem das pedaladas. (Estadão).
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